Assinalando o seu décimo aniversário, a Guerra&Paz acaba de publicar o Mein Kampf de Hitler, depois do Manifesto Comunista e antes da anunciada edição do Livrinho Vermelho de Mao Tsé-Tung, ou Mao Zedong (em chinês simplificado?). Não é uma versão inteiramente nova: é “uma versão feita pela equipa da Guerra e Paz, cotejando a edição brasileira (…) com a edição inglesa de James Murphy, ambas feitas com base no original alemão”; a tradução do publicista irlandês foi uma das primeiras traduções integrais do livro em inglês e começara por ser, antes de tradutor e Ministério da Propaganda alemão se terem, ao que parece, desentendido, uma encomenda do próprio governo do Terceiro Reich.

Mein Kampf — “A minha luta” — é um tijolo. Esta autobiografia-manifesto acusa umas centenas de páginas em qualquer das diversas pesagens das suas diferentes edições integrais (na edição americana que tenho são perto de 700). O tamanho contou, talvez, como parece acontecer no caso de outros best-sellers. Foi publicado inicialmente em dois volumes: o primeiro saiu em 1925, o segundo cerca de um ano depois. A primeira edição do primeiro volume era em formato grande, com 400 páginas, uma sobrecapa em que figurava uma fotografia a preto e branco de Hitler, “varando o leitor com os olhos”, de fato escuro; numa larga faixa vermelha o título, em carateres góticos; por debaixo, a capa era de cartão vermelho liso em que se destacava uma cruz gamada; a partir de 1930, “os dois volumes serão juntos num só”, em papel fino, formato de bolso, capa escura: parecia-se a uma Bíblia.

Mein Kampf foi publicado pela Franz Eher Verlag, a editora do partido, uma minúscula empresa cuja fortuna este êxito improvável haveria de fazer — sobretudo desde que Hitler subiu ao poder em 1933. O livro também enriqueceu o autor. O primeiro volume tinha tido uma tiragem inicial, já respeitável, de 10 mil exemplares. Transformado em “Bíblia” do nacional-socialismo com a ascensão do autor e do Partido ao poder e depois ao poder absoluto, os muitos milhares da obra completa passaram a milhões – doze milhões de exemplares vendidos até à Segunda Guerra Mundial, segundo Antoine Vitkine, no seu Mein Kampf – Histoire d’un livre (Flammarion, 2009). Ou melhor, numa parte importante, comprados: foi distribuído pelo “Estado” alemão às bibliotecas, às escolas, aos recém-casados. Mas já antes do ano triunfal o livro tinha vendido umas centenas de milhares de exemplares e continuou a vender-se, na Alemanha e no estrangeiro: nas listas de best-sellers internacionais ocupava o sétimo lugar em 1939, ano das suas primeiras edições integrais em inglês.

A capa da nova edição da Guerra & Paz, que hoje é publicada

A capa da nova edição da Guerra & Paz, que hoje é publicada

Entre novembro de 1923 e dezembro de 1924, Hitler estivera comodamente encarcerado na fortaleza de Landsberg am Lech, na Baviera, a uma centena de quilómetros de Munique. Fora condenado a vários anos de cadeia por uma patética tentativa de golpe de força contra a República dita de Weimar, para cuja Chancelaria seria legalmente nomeado dez anos mais tarde, depois de umas eleições vitoriosas. Quando foi detido chefiava há três anos o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o novo nome que recebera por sua iniciativa o Partido dos Trabalhadores Alemães, um grupúsculo político em que se alistara havia outros tantos anos e no qual rapidamente se distinguira como orador e meneur. Faziam-lhe companhia em Landsberg muitos dos seus camaradas de luta cujos nomes são hoje bem conhecidos de um público que parece insaciável na sua curiosidade pela história do III Reich e das suas obras.

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Máquina de escrever

Era tratado com respeito e recebia muitas visitas. Foi na cadeia que escreveu o primeiro volume de “A Minha Luta”, que começara por ser apenas uma vaga ideia de “balanço” ou “ajuste de contas” com os seus inimigos “internos” e os “traidores” do seu próprio campo político. O título que o livro acabou por ter foi ideia do seu “administrador” Max Amann, amigo e seguidor fiel e pouco instruído. É sem dúvida melhor do que o inicialmente previsto, de uma prolixidade muito “germânica”: Quatro anos e meio de combate contra as mentiras, a tolice e a cobardia. Segundo Vitkine, Hitler, depois de finalmente ter decidido pôr mãos à obra, passava muitas horas por dia debruçado sobre a máquina de escrever, todo entregue à magna tarefa. A máquina era uma Remington do último modelo, oferecida por um destacado e distinto apoiante financeiro do Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, Emil Georg, do Deutsche Bank. O papel em que o livro era escrito ofereceu-lho uma nora de Wagner, outra admiradora, que lho deu como presente de Natal juntamente com diverso material de escritório e uma modesta mesa de madeira.

Noutras versões do fabrico do livro diz-se que Hitler o ditou, a princípio, ao seu chauffeur Emil Maurice e depois, na sua maior parte, a Rudolf Hess. Parece certo que o original, em qualquer caso, foi objeto de um importante trabalho de edição levado a cabo por Hess e outros colaboradores. O segundo volume foi escrito em liberdade, no chalé dos Alpes que depois seria o célebre Berghof. Embora não fosse grande crente no poder da escrita (“Sei” – escreveu no Prefácio – “que os homens são conquistados menos pela palavra escrita do que pela palavra falada”), tomara-lhe o gosto. Em 1925, na sua declaração de impostos, Adolf Hitler, ex-combatente desempregado, militante político, pintor nas horas vagas, deu como profissão: escritor.

A Histoire d’un livre de Antoine Vitkine não é a primeira história publicada em livro do poderoso calhamaço de Hitler. Como refere o próprio Vitkine, foi precedido por uma Geschichte eines Buches: Mein Kampf 1922-1945, do austríaco Othmar Plöckinger, em 2006. Ao contrário do seu antecessor, Vitkine não se detém pudicamente em 1945:

A derrota do III Reich e a morte do seu autor não mudou nada neste aspeto: o Mein Kampf nunca deixou de ser um best seller. De 1945 em diante o livro de referência do nazismo continuou a vender milhões de exemplares. Segundo a revista americana Cabinet vender-se-iam todos os anos 20.000 exemplares da versão ou das versões em inglês. Em França, um editor de outros tempos continua a distribui-lo com toda a legalidade. Figura nas listas das melhores vendas em vários países: na Turquia [país onde Mein Kampf é rei], venderam-se 80.000 exemplares num só ano; na Índia, é objeto de uma predileção sem precedentes.”

Outros exemplos da ampla difusão do livro de Hitler são a Rússia, o Egito, a Indonésia, o Líbano ou Espanha. Hoje vende-se também em assinalável número através da Amazon, na versão digital, e é um dos mais vendidos nas categorias em que a loja o classifica. Em Portugal teve uma polémica publicação em 1998, da Hugin. Agora, setenta anos passados sobre a morte do autor e caído no domínio público, o Mein Kampf vai na terceira versão portuguesa em poucos meses: a primeira da E-primatur, outra publicada em fascículos e, agora, esta nova edição da Guerra & Paz.

Das livrarias aos tribunais

Vae victis – dizia-se em Roma. Ai dos vencidos. Com a rendição da Alemanha e a morte de Hitler, a “Bíblia nazi” torna-se um ativo altamente tóxico, que queima as mãos de quem o possui – mas muitos alemães não o destroem: escondem-no, e enterram-no (devidamente acondicionado). No Processo de Nuremberga em que os Aliados julgaram, condenaram e fizeram enforcar numerosos dignatários do III Reich, o Mein Kampf foi usado como contundente testemunha de acusação. Há quem tenha chamado ao livro “uma conjura à luz do dia”. Nesse tribunal improvisado pelos vencedores foram extensamente lidas extensas passagens da obra, as mais “incriminatórias”. Não as tinham lido os réus – ou os outros alemães? Tivessem lido. O facto, contudo, é que toda a gente tanto fora como dentro da Alemanha podia ter lido o livro e os seus múltiplos resumos e comentários; os discursos de Hitler ou de Goebbels, difundidos em todas as línguas, não eram propriamente um segredo de Estado. Mas o que a maior parte dos alemães via era um país que renascia, “ordem e progresso”, os cumprimentos das Chancelarias estrangeiras ao Führer und Reichskanzler, um Chefe de Estado reconhecido como os outros, a espetacular realização dos Jogos Olímpicos em Berlim (1936), com a participação dos Estados Unidos, da Suécia, de França ou da Grã-Bretanha.

Finda a Segunda Guerra Mundial, as potências aliadas ocupantes determinaram que todos os direitos sobre o livro passavam a pertencer ao Estado da Baviera, que sempre se recusou a permitir quaisquer edições do Mein Kampf na Alemanha e se bateu nos tribunais de vários países onde havia tribunais para impedir a divulgação das traduções que sistematicamente se negava a autorizar (incluindo Portugal, onde teve vencimento judicial, quando da tradução já referida de 1998). Era, de certa maneira, uma questão “simbólica”. O livro não estava proibido e além dos exemplares de antes da guerra que se encontravam nos alfarrabistas e das traduções já existentes houve sempre maneira, desde 1945, de ter acesso ao livro maldito. Mein Kampf é, para os mais furibundos, um livro “vil”.

Para Ralph Manheim, na sua diligente e conscienciosa “Nota do Tradutor” da versão publicada nos Estados Unidos pela Houghton Mifflin em 1941, reeditada em 1999, é um livro em que a lógica fraqueja, muitas vezes “desconexo”, escrito num “estilo sem cor e sem movimento”, num alemão plebeu. Para o prefaciador de outra tradução inglesa, não passa de “um livro longo, maçador, bombástico, repetitivo e extremamente mal escrito“. Mas numa época em que a liberdade de expressão tem abrangido qualquer desvario, barbaridade ou vitupério, em que são recebidos com bocejos os panfletos mais virulentos e nunca ninguém se lembrou de banir as obras completas do Camarada Estaline ou os pensamentos de Mao Tsé Tung, ainda se escreve que “à luz das suas consequências, Mein Kampf pode ser considerado o livro mais perigoso da história”. Parece atribuir-se ao texto de Hitler um singular poder de maligna e inescapável sedução.

Mein Kampf vai ser publicado na Alemanha pela primeira vez desde o fim da Guerra, por iniciativa do Instituto de História Contemporânea de Munique, ao fim de três anos de trabalho. Será acompanhado de cerca de 3.500 notas. A edição terá cerca de duas mil páginas.