Marcelo Rebelo de Sousa é sobretudo um homem racional, apesar de estar empenhado em passar a imagem de afetividade que cultiva desde a campanha eleitoral. O primeiro discurso que o Presidente da República fez, esta segunda-feira, nas comemorações do 25 de abril, foi um exercício cerebral na tentativa de baixar a tensão e a emotividade, e de marcar a equidistância entre as partes desavindas no sistema partidário (apesar de continuar a parecer mais distante do seu partido).

Marcelo fez um balanço dos quatro desafios fundamentais do pós-25 de abril para reconhecer que a evolução desde os anos 90 pode parecer frustrante aos mais jovens; colocou três perguntas para provar que os consensos políticos são possíveis, apesar dos caminhos diferentes à esquerda e à direita e fez dois apelos à unidade dos portugueses.

Dois apelos: união e bom senso

O mote de Marcelo é, desde a campanha eleitoral, “descrispar” o ambiente político pós-eleitoral e procurar consensos. O valor essencial é evitar a instabilidade, que não abre caminhos, mas “fecha horizontes”.

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Daí que o Presidente tenha puxado de uma frase para chamar os dirigentes políticos à razão: “Troquemos as emoções pelo bom senso”. Marcelo referiu-se muitas vezes, nos últimos meses, à emotividade elevada por o Governo não corresponder ao vencedor das eleições. A direita estava zangada pela solução pós-eleitoral e a esquerda irritada com os anos da troika. É um recuperação da vontade para ajudar a “sarar as feridas” a que Marcelo se referiu na tomada de posse. O PR quer que os partidos sejam racionais e se concentrem na solução dos problemas. Não foi isso que lhe ofereceu o PSD: o discurso de Paula Teixeira da Cruz foi exatamente no sentido contrário. Muito emocional. Cheio de recriminações.

Minutos depois de ouvir a dirigente social-democrata que pertenceu às suas direções no partido, Marcelo Rebelo de Sousa fez o principal apelo: “Unamo-nos no essencial”, pediu, apesar de saber como ainda é difícil neste contexto. “Sem com isso minimamente negarmos a riqueza do confronto democrático, em que governos aplicam as suas ideias e oposições robustecem as suas alternativas”, acrescentou.

As três perguntas e as três negações: consensos impossíveis? Não, não e não!

Se o discurso encerrasse uma contradição era esta. O PR reconhece que há duas visões distintas do país, muito ideológicas na base, divergentes, mas acha que apesar disso é possível chegar a consensos em aspetos essenciais — em áreas onde direita e esquerda nunca estão de acordo. “Felizmente”, disse o Presidente, há “dois caminhos muito bem definidos e diferenciados quanto à governação, ao modo de se atingir as metas nacionais.” Diferentes em aspetos tão determinantes como “o papel do Estado” ou as prioridades na forma “de criar riqueza”.

Apesar de classificar esta diferença “salutar e fecunda”, acha que isso não impede a criação de consensos. É então que lança as suas três perguntas.

Primeira pergunta: “Quer isto dizer que vamos prosseguir em clima de campanha eleitoral?” Não. O país “exige” estabilidade política para haver estabilidade “económica e social”. E o facto de não haver eleições em breve é sinal de “pacificação democrática”. Pela iniciativa de Marcelo, não haverá tão depressa eleições:

Portugal não pode nem deve continuar a viver, sistematicamente, em campanha eleitoral. Exige estabilidade política, crucial para a estabilidade económica e social. O estar adquirida, finalmente, essa estabilidade é um sinal de pacificação democrática que deve reconfortar os Portugueses.

Segunda pergunta: “Os consensos setoriais de regime são impossíveis?” Também não, responde Marcelo. E cita áreas — com muito boa vontade — em que nem é preciso formular acordos para que haja consenso: como na Saúde, onde “o que aproxima” é “mais do que afasta”. Constitui, na sua opinião, um passo para se alterar o sistema político, dar estabilidade ao sistema financeiro, Justiça e Segurança Social. Sabe-se que nestas áreas os consensos são ainda mais difíceis, quer pelas posições estratégicas dos vários partidos, quer por questões ideológicas de fundo. Mas o PR está apostado em tentar. Mensagem para a direita, possivelmente para Passos Coelho, mas que também pode aplicar-se à esquerda:

Quem se pretenda alternativa, de um lado e de outro, demonstre, em permanência, a humildade e a competência para tanto.

Terceira questão: “A unidade essencial entre os portugueses é questionada pelas duas distintas propostas de Governo?” Mais uma vez, Marcelo nega. Justificação: a visão diferente e a “contraposição de duas fórmulas de Governo não atinge o fundamental na unidade dos portugueses”. Dá o povo como exemplo. As pessoas “sofreram sacrifícios, cortes, penalizações” e depois “uniram-se”. E assim “puderam começar a reacreditar no futuro”. Isto apesar de, “para uns, a governação atual” ser “promissora. Para outros, um logro.” Mais uma vez o PR a traçar uma linha de equidistância. Mas a mostrar que tem legitimidade acrescida para fazer estas exigências:

A resposta a estas três questões só pode ser negativa para os Portugueses. E, em particular, para o Presidente da República, cujo mandato nacional é, por sua própria natureza, mais longo e mais sufragado do que os mandatos partidários. E não depende de eleições intercalares.

Os quatro desafios, críticas à Europa e recados aos partidos

Marcelo é um otimista por natureza. Reconheceu, porém, na parte em que fez um balanço dos 42 anos do regime, que quem só se lembrar dos anos mais recentes corre o risco ter uma visão muito negativa da democracia: “O saldo é positivo para quem tiver a memória dos anos 70″, mas “pode começar a ser preocupantemente descoroçoante para quem só se lembrar dos anos 90 e da viragem do século”.

Na primeira parte da sua intervenção, o PR começou por fazer um balanço da democracia e levou a cabo mais uma tentativa de pacificação. Desta vez, em relação ao passado, legitimando as sensibilidades das várias forças políticas sobre a revolução. “Essas visões diferentes foram acolhidas pela Constituição, num “compromisso possível entre diversas revoluções”. Pediu uma saudação para os capitães de abril, que nos anos dos governos de direita não participavam nas cerimónias.

“Descolonização, democratização, integração europeia e construção de uma nova economia” foram os quatro desafios enumerados por Marcelo Rebelo de Sousa, a que o país teve de responder nas últimas quatro décadas. Portugal estava numa situação singular: “Quatro desafios, vividos quase em simultâneo, como nenhum outro antigo Império Europeu Ocidental moderno havia enfrentado.” E sem que houvesse “guerra civil”.

Quatro desafios destes em tão pouco tempo tiveram “custos” que, “somados a crises externas e a fraquezas internas legitimam as queixas e frustrações” dos portugueses, reconheceu o PR. A seguir, apontou o que fazer: cuidar mais da língua e valorizar a cultura. No sistema político, “repensar o fechamento no sistema de partidos” e “recriar formas de aproximação entre eleitores e eleitos, ser mais efetivo no combate à corrupção e mais transparente na vida política”. Defendeu que se devia ir “mais longe quanto à mulher na política”.

Quando elencou o que era preciso melhorar, Marcelo sublinhou a necessidade de haver uma posição mais crítica dos governos portugueses na União Europeia (e aqui sim, poderia ler-se uma crítica velada ao PSD, que tem alinhado nos últimos anos com as posições europeias dominantes): “O Portugal que acredita na Europa tem de lutar por uma Europa menos confidencial, menos passiva, mais solidária, mais atenta às pessoas, e sobretudo que não pareça aprovar nos factos o oposto daquilo que apregoa nos ideais”.

Pediu também aos políticos para olharem para além das crises conjunturais: “O Portugal do desenvolvimento tem de dar horizontes de esperança, que não sejam o ir de crise em crise até à incerteza total. Sem ficar refém pela dívida ou pela dependência intoleráveis”.

Numa frase sobre como ultrapassar o pessimismo reinante, varreu quase todo o espetro partidário: “A solução não passa por populismos antieuropeus”. Esta seria para o PCP e para o Bloco de Esquerda. Nem passaria “por tentações de culpabilização constitucional”. Isto era para os partidos de direita. Para o PS ficou outro recado: “Governar com voluntarismo mas com especial atenção a que o possível seja suficiente”.