É melhor esquecermos Antony Hegarty, até há pouco tempo vocalista da banda Antony and The Johnsons e responsável pelo álbum I Am a Bird Now (2005). Antony mudou de nome há três ou quatro anos e deu a novidade ao mundo no ano passado. Anohni, assim se chama agora, é uma pessoa transgénero e vê a mudança de nome como uma alteração formal que levará os outros a reconhecerem definitivamente a sua identidade.

“Tinha que explicar constantemente que não sou um homem”, conta, em entrevista telefónica. “Mudar de nome, quando sentimos que chegou a altura certa, constitui um ritual de passagem para uma pessoa transgénero, foi o que fiz e estou muito contente. Escolhi um nome mais feminino porque me tratavam quase sempre no masculino, ainda que me considere, e sempre tenha considerado, transgénero.”

O tema parece apenas do domínio íntimo, mas tem óbvia dimensão política. A identidade de género da cantora tem-lhe servido de mote artístico e inspira opiniões que expressa em entrevistas ou em trabalhos paralelos como curadora e artista plástica.

Mas esta entrevista não será o momento para esse tipo de explicações. A menos de 24 horas do regresso a Portugal, para dois concertos no Coliseu do Porto e de Lisboa – esta terça e quarta, às 21h30, respetivamente –, Anohni prefere falar do novo álbum, Hopelessness, o mais ideológico de quantos assinou até hoje.

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hoplessness

Sobre a temática transgénero, pouco se alonga. Recordamos-lhe que no início dos anos 2000, a avaliar por algumas entrevistas à época, parecia menos interessada do que hoje em ser uma voz ativa. “Não, sempre falei muito sobre pessoas transgénero”, comenta.

Mas será que mudou a maneira de ver o assunto? “Nada mudou, tenho a mesma opinião que sempre tive”, insiste. E pouco mais lhe ouvimos, exceto, de forma quase impercetível, que não gosta de se dizer discriminada como transexual, pois não é esse o tipo de linguagem e postura que tem na vida.

Canções realmente novas

Anohni está sentada no passeio, à entrada de um aeroporto na Irlanda, e não pára de espirrar por causa de uma alergia. A ligação por telemóvel torna-se impraticável por momentos, quando passam aviões. E ela parece impaciente. A conversa é pouco dinâmica até se desviar para o novo álbum. Anohni quer sublinhar uma mensagem: deixou de ser uma pessoa passiva perante a realidade.

O disco, no qual se baseiam os dois concertos em Portugal, começou a ser divulgado em 2015 através de “4 Degrees”, sobre as mudanças climáticas, e já este ano com o single “Drone Bomb Me”, com teledisco realizado por Nabil Elderkin e participação da modelo Naomi Campbell.

“É um disco muito pessoal, mais até do que noutras ocasiões, porque reflete o que sinto nesta fase da vida”, diz Anohni. A chave para o entender está menos na música – “pop, plástica, acessível”, descreve a autora – do que nas letras. Hopelessness funciona como um “cavalo de Tróia”: esconde um ataque sob uma aparência inócua.

No site oficial, Anohni apresenta as letras das 11 canções traduzidas em 16 línguas, incluindo a variante brasileira do português, o que tem por objetivo chegar a públicos de todo o mundo e serve o sentido universalista do álbum. “Há uma noção de urgência, mas tenho dificuldade em aceitar a palavra político para classificar estas canções”, analisa.

Aquilo que hoje descrevemos como política é a ideia de alguém que diz a verdade e de outro alguém que mente. Este trabalho serve para questionar o que está realmente a acontecer em termos de ecologia, da nossa espécie, ao nível dos governos, da política externa, das grandes empresas, quais as causas e os efeitos do nosso comportamento como consumidores”, resume.

Olhando o seu passado neste aspeto particular, a artista não gosta do que vê: “Fui uma pessoa passiva e quase complacente em relação ao mundo, tive um comportamento traiçoeiro e pomposo, o que é completamente ridículo”, afirma. “Agora sinto necessidade de falar da natureza, do aumento da temperatura, que a cada ano bate recordes, das espécies que morrem na Grande Barreira de Coral e de todas as outras que se vão extinguir até ao fim do século. Pretendi criar uma banda sonora que ajude quem se debruça sobre estes assuntos.” Se vai resultar, ainda é cedo para se saber, admite.

Um dos temas mais arrojados, em termos de texto, intitula-se “Obama” e fala naturalmente sobre o presidente americano. A cantora, de 45 anos, nascida no Sul de Inglaterra e radicada nos EUA há 35 anos – primeiro em São Francisco, depois em Nova Iorque – confessa que votou em Obama por duas vezes, mas está desiludida porque “as coisas estão piores do que antes de ele ser presidente, não internamente, mas em termos de política externa”.

Com a mesma canção pretende também de demonstrar empatia com Chelsea Manning (transexual feminina) e Edward Snowden, dois informadores perseguidos pelas autoridades americanas por terem ajudado a revelar documentos secretos sobre a Guerra do Iraque e os serviços de espionagem.

Sendo o título genérico Hopelessness (ou “desesperança”), poder-se-á pensar que o disco vem para perturbar consciências, mas Anohni desfaz essa interpretação. “Quero iniciar um diálogo sobre o que está a acontecer no planeta, quero participar, é a minha vez de tentar mudar. Sempre pensei nestas coisas, mas desta vez usei uma linguagem vívida, o que constitui até uma revelação para mim. Percebi que conseguia expressar-me numa linguagem sem rendilhados, é uma experiência nova.”