Começaram por servir os idosos que, por não saberem ler, não podiam tirar carta de condução para automóveis ligeiros. Eram caros, pouco ou nada confortáveis e, em caso de acidente grave, o resultado oscilava entre ferimentos graves ou morte certa. Daí serem apelidados, na gíria, de “mata-velhos” ou “papa-reformas”. Passados anos, os microcarros continuam por aí. A surpresa é que são cada vez mais populares. Apontaram a um novo mercado, cheio de potenciais clientes: os jovens que não gostam de motociclos ou de “scooters” ou que, gostando, se vêem impedidos pelos pais de os utilizar, pensando os progenitores que com esta opção estão a proteger os filhos dos perigos das duas rodas. Mal sabem eles.

Sempre a crescer

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Cativando idosos e jovens, sem carta de condução, os microcarros estão cada vez mais elegantes e atraentes, sendo esta evolução crucial para atrair os clientes mais novos. E a prova é que nos primeiros seis meses de 2016, segundo a ACAP, o mercado cresceu 25,7% face aos valores homólogos do ano passado, com a Aixam a liderar e a crescer 38%, batendo a Ligier (+46,9%), a Microcar (+22,7%) e a Chatenet (+21,7%). Este crescimento é tanto mais relevante quanto acontece após um forte incremento das vendas em 2015, de 48,2% face a 2014, ano em que também as vendas já tinham conhecido um incremento de 27,6% em relação a 2013.

Os microcarros são homologados como quadriciclos, obedecendo por isso a um grau de exigência diferente dos automóveis convencionais. Um grau de exigência próximo do zero, em matéria de segurança. Mas circulam na via pública e, como tal, correm o risco de se verem envolvidos num acidente. Independentemente de quem for a culpa, uma coisa é certa: em caso de embate, o microcarro será sempre o elo mais fraco. Este tipo de veículo está particularmente mal apetrechado para defender a segurança dos seus ocupantes. Ou a vida. É esta a opinião de Michiel Van Ratingen, secretário-geral do European New Car Assessement Programme (EuroNCAP), organismo fundado em 1997 e sediado em Bruxelas, que visa o incremento da segurança rodoviária e que realiza regularmente “crash tests” para avaliar o grau de protecção.

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Depois de o EuroNCAP ter realizado os primeiros testes a microcarros, em 2014, e face aos perturbadores – ou mesmo escandalosos – resultados obtidos, Ratingen veio a público dizer que era “preocupante verificar que, por não serem obrigatórios os testes nesta classe de veículos, ao contrário do que acontece em todos os automóveis, este tipo de quadriciclos revela um nível de segurança muito inferior”. Responsável foi ainda mais longe: “Estes maus resultados devem levar-nos a questionar se os consumidores estão satisfeitos com o nível de protecção que lhes é oferecido.”

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Já este ano, em Abril, o EuroNCAP voltou ao tema, atirando mais uns microcarros contra a parede. Não foi só a cena que se repetiu. Lamentavelmente, os resultados também. Mesmo testando os mais recentes modelos de quadriciclos, não só os veículos ficaram completamente destruídos num embate frontal a 50 km/h contra uma estrutura deformável – destinada a ter um comportamento semelhante a um veículo estacionado –, como o boneco que seguia a bordo só não perdeu a vida porque nunca a teve. Os bonecos utilizados nestas provas são conhecidos como “crash test dummies” e estão equipados com uma série de sensores que permite avaliar o esforço e a perigosidade dos ferimentos a que um ser humano, adulto ou criança, estaria exposto nas mesmas condições.

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Após esta segunda bateria de testes, Michiel van Ratingen voltou à carga: “É desapontante verificar que os quadriciclos continuam a não garantir as soluções básicas de segurança que são comuns nos pequenos automóveis.” O responsável lança igualmente farpas à falta de regulamentação. “Ao não obrigarem os construtores a realizar melhorias no domínio da segurança, os legisladores continuam a permitir que os consumidores tenham a falsa impressão de que estes veículos estão aptos a transportar pessoas e a garantir a sua segurança.”

Desastre geral: em seis não se safa um

Os principais automóveis à venda na Europa estão “condenados” a serem submetidos aos testes do EuroNCAP, reconhecidamente mais exigentes do que os obrigatórios pelo legislador. Na norma europeia, o veículo atinge a 56 km/h uma barreira de betão, protegido por uma estrutura deformável, de modo a que o embate cubra apenas metade da frente do veículo – denomina-se “offset” e é a situação mais vulgar nos choques frontais. Com isto, pretende-se obrigar a que apenas metade do veículo tenha que dissipar a totalidade da energia resultante da colisão. Mas o EuroNCAP vai mais longe e força este mesmo embate a 64 km/h. São apenas 8 km/h a mais, o que parece quase nada, mas na realidade é um mundo à parte. Como a energia a dissipar depende do quadrado da velocidade, temos que, para um microcarro de 400 kg, a energia cinética é de 38.100 joules a 50 km/h, mas sobe vertiginosamente para 63.400 joules a 64 km/h. São “só” mais 66% de energia para absorver. E como os microcarros estão mal equipados para o fazer, toca aos ocupantes lidar com o excesso. Muito provavelmente, pela última vez.

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Há seis modelos que são atirados contra a parede a 50 km/h – não em “offset”, mas a cobrir a totalidade da zona frontal, o que reduz em muito o esforço a que o veículo é submetido –, incluindo alguns dos mais representativos do sector, nomeadamente o Aixam (modelo Crossover GTR – ver ficha com resultados), o Microcar (M.GO Family), o Ligier (IXO JS Line de quatro lugares), o Chatenet (CH30), o Bajaj (Qute) e o Tazzari (Zero). Os testes incluem o embate frontal total, protegido por uma estrutura deformável, e um embate lateral, igualmente a cargo de um chassi com quatro rodas a simular um veículo que embate no microcarro.

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Tenham atenção. Muita atenção

Os resultados dos “crash tests” aos seis microcarros são ordenados pelo número de estrelas obtido, que por sua vez depende da percentagem atingida no somatório de pontos relativos ao embate frontal e lateral, considerando apenas o condutor. Pequeno não tem de ser sinónimo de perigoso ou mesmo mortal, e a prová-lo, apresentamos igualmente os resultados de um automóvel convencional que, à semelhança dos quadriciclos, possui cerca de 3 m de comprimento. O Toyota IQ foi testado em igualdade de condições com os microcarros, ou seja, embatendo na parede a apenas 50 km/h. Ainda assim, como este modelo pesa 920 kg, a energia que a estrutura deste Toyota teve de absorver foi de 87.600 joules, ou seja, mais 38% do que a média dos “mata-velhos”. O IQ obteve 79 pontos (ver ficha com resultados), a que equivale um total de cinco estrelas. Se considerarmos exclusivamente o esforço a que o adulto ocupante é sujeito, mais uma vez para que fique em paridade com os microcarros, o IQ consegue 33 pontos (num máximo de 36), a que equivale 91%. O que pensar, então, do desempenho dos quadriciclos, cuja pontuação oscilou entre 22% e 38% (9,9 – 12 pontos). Este resultado é preocupante? Ou vergonhoso? Para o organismo europeu que zela pela segurança rodoviária, é ambos. Mas o que é mais grave, é que grande parte deste péssimo valor é alcançado no embate lateral. No choque frontal, dos microcarros testados, houve dois com apenas dois pontos, e três ficaram-se pelos quatro prontos. Ou seja, se o “crash test dummie” tivesse um pingo de vida dentro dele, tinha-a perdido no choque. E, se andasse, há muito tinha fugido dos quadriciclos para evitar nova tortura.

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Decisão informada

Debrucemo-nos apenas sobre os veículos da Aixam e da Ligier – os que pior desempenho tiveram e, tragicamente, os mais vendidos em Portugal. O Ligier IXO JLine, testado em 2014, é o pior com 22%, não lhe tendo sido, por isso, atribuída qualquer estrela. Obtém apenas 2 pontos no teste frontal. A razão? A explicação é simples, mas são vários os motivos. O cinto de segurança soltou-se do pilar B, o ponto de fixação superior, e o condutor afundou-se, sofrendo graves lesões abdominais (um fenómeno conhecido como “submarining”). Como se isto não bastasse, o volante entrou no habitáculo consideravelmente durante a colisão frontal, atingindo a cabeça do condutor com tal violência que a desaceleração seria potencialmente fatal. Depois, como o cinto de segurança cedeu (um erro grave de concepção que não acontece em nenhum dos automóveis convencionais testados), o embate do volante no peito foi tremendo, mais uma vez matando o boneco – “provocando um elevado risco de lesões graves ou fatais”, segundo o relatório. De caminho, a plataforma inferior do modelo, em fibra de vidro, fracturou-se e o assento do condutor colapsou.

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O Aixam, da marca líder das vendas em Portugal, não é muito melhor. Num teste realizado já este ano, o modelo Crossover GTR conseguiu uns magros 25%, com apenas 2 pontos no embate frontal, os mesmos do Ligier. A estrutura do Aixam resistiu melhor do que a do seu rival ao choque frontal, embora o EuroNCAP tenha informado o construtor que, após o “crash”, um parafuso da suspensão praticamente furou o depósito de combustível, pelo que urge alterar essas peças para evitar o risco de incêndio. Igualmente sem airbag, o Aixam viu o dummie bater com a cabeça fortemente no volante (que entra bastante para dentro do habitáculo), parecendo pelo vídeo que bate simultaneamente na traqueia. Segundo o relatório, há “riscos de lesões graves ou fatais no ser humano”. O cinto suportou as forças a que foi submetido mas, segundo os sensores do boneco, não é evidente que uma pessoa sobrevivesse à pressão exercida sobre o tórax, também ela capaz provocar de lesões graves ou fatais.

É necessário mudar de atitude

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Todos os microcarros à venda em Portugal, o mesmo acontecendo no resto da Europa, estão de acordo com a legislação em vigor. Contudo, não é menos verdade que a segurança de que os seus ocupantes usufruem, em caso de acidente, é mínima. Para o EuroNCAP, importa, sobretudo, sensibilizar o legislador para o erro que comete ao permitir que estes veículos sejam homologados com um nível de segurança muito inferior aos dos pequenos automóveis convencionais. Por outro lado, há que sensibilizar os utilizadores para os riscos que correm. Ao pé dos microcarros, modelos como o IQ e até o Smart de dois lugares são verdadeiros tanques. Se o “crash test” fosse obrigatório, os microcarros já seriam muito mais seguros. Foi assim num passado recente com os carros chineses – péssimos nos primeiros testes e perfeitamente dentro da média nas gerações seguintes. Não há motivo para que não se enverede por esse caminho. Devemos isso aos nossos avós e filhos.

Até no menos mau dos seis quadriciclos ensaiados, o CH30 da Chatenet, o condutor não está livre de perigo. Este modelo reuniu 12 pontos (6 no frontal e 6 no lateral), conseguiu 38% e duas estrelas. Apesar deste resultado – o melhor dos microcarros submetidos aos testes –, no embate frontal, a cabeça do “dummie” bate com uma violência tal na zona inferior do volante que também este “mata-velhos” não escapou à frase mais dura que o EuroNCAP utiliza para resumir as hipóteses de sobrevivência para o ser humano, prevendo também neste caso lesões graves ou fatais.

O quadro é negro. A segurança dos microcarros continua a deixar muito a desejar. Estes quadriciclos estão mais atraentes, mais versáteis e até mais velozes, mas têm necessariamente de se tornar mais seguros. Se as fotos e os vídeos já não deixam margem para dúvidas, imagine agora os riscos que correm os condutores deste tipo de veículos se, ao invés de embaterem a 50 km/h contra um veículo estacionado (como simulado nos “crash tests”), colidem a uma velocidade superior (a maioria ultrapassa os 70 km/h e muitos até mesmo os 100 km/h), ou fazem-no contra veículos em movimento – regra geral, mais pesados do que os microcarros, obrigando estes a suportarem a maioria do esforço durante o choque.

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