António Brigas Afonso foi diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira entre julho de 2014 e março de 2015, e José Azevedo Pereira exerceu previamente as mesmas funções, entre 2007 e meados de julho de 2014. Os dois foram ouvidos esta tarde no Parlamento por causa do “apagão fiscal” dos quase 10 mil milhões de euros transferidos para contas offshore sem terem passado pelo controlo do fisco.

Em causa está o facto de, entre 2011 e 2014, enquanto Paulo Núncio era secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, não terem sido publicadas as estatísticas da Autoridade Tributária com os valores das transferências feitas para offshores. Essa publicação de dados estatísticos tinha passado a ser feita em 2010, por despacho do antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais socialista, Sérgio Vasques, mas foi interrompida durante o Governo do PSD/CDS. Só este ano, com o retomar dessa publicação, o atual Governo detetou falhas em 20 declarações oriundas dessa altura.

Paulo Núncio já assumiu, em audição no parlamento, a responsabilidade política pela não-publicação das estatísticas, tendo dito ter dúvidas sobre se essa publicação não representaria uma vantagem para os potenciais infratores. Esta sexta-feira foram ouvidos Brigas Afonso e Azevedo Pereira, que levantaram algumas pontas soltas desta história.

Falha informática. Tese ganha força

Depois do presidente do Sindicato dos Impostos ter levantado a dúvida quanto à existência de uma falha humana e não de um erro informático, a tese de Azevedo Pereira veio dar razão à convicção já manifestada pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade. O antigo diretor-geral recolheu informação antes da audição e, apesar de não querer substituir-se à Inspeção Geral de Finanças, nem querer “livrar a pele”, ficou convencido de que seria uma falha do sistema informático. Porquê? Por causa do padrão dos erros que segue uma sequência linear e não escolhida em função de valores ou outros critérios.

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“A indicação que tenho é de que, a partir de um determinado nível, a informação deixou de ser transferida. É uma hipótese, mas faz sentido. Pode acontecer que uma sequência de carateres ou um caracter em particular sejam entendidos pela máquina como sinal de que o ficheiro terminou, a máquina dá como terminado o seu trabalho, indicando que a operação teve sucesso”, explicou.

E acrescentou, desdramatizando: “Se for isto, estou a levantar uma hipótese que me parece ser plausível, sem que tivesse havido qualquer orientação de natureza política, não me levem a mal estar a desdramatizar o tema. Se for um problema informático, é desagradável, não devia acontecer, mas de vez em quando há coisas que são muito difíceis de controlar”.

Afinal quando é que as declarações chegaram ao fisco?

As operações não controladas aconteceram entre 2011 e 2014, onde mais de 14 mil declarações relativas a quase dez mil milhões de euros de transferências para offshores não foram controladas pelo fisco. Mas a audição de Azevedo Pereira trouxe um dado novo à equação. Quando é que estas declarações feitas por bancos entraram na administração fiscal? Segundo o ex-diretor-geral de impostos, apenas uma foi entregue enquanto esteve no cargo até meados de julho de 2014. As outras, incluindo as declarações relativas ao ano de 2013, que teriam de ser comunicadas até ao final de julho do ano seguinte, chegaram depois.

O ex-diretor-geral fala em declarações tardias ou de substituição. E na sequência da informação pedida por Azevedo Pereira, o Ministério das Finanças clarifica que afinal entre as 20 declarações com falhas, há quatro e não duas, de substituição. E quando é que essas declarações chegaram? 19 foram entregues depois de Azevedo Pereira sair, em meados de julho de 2014.

Aliás, o ano de 2014, destaca-se por um número muito mais elevado de declarações com falhas. E uma delas só chegou mesmo em 2016, ou seja, num ano em que o novo Governo já estava em funções. Será uma declaração de substituição relativa ao operações feitas entre 2011 e 2014, e que não terá sido devidamente tratada porque terá ainda passado pelo sistema informático que processou as anteriores declarações, e que mudou em julho do ano passado.

Não se conhece o valor, nem o ano a que se reporta, mas espera-se que a diretora-geral de Impostos, que será ouvida na próxima terça-feira traga mais informação. Conclusões? Só depois da auditoria da Inspeção Geral de Finanças às falhas de controlo do fisco, prevista para março.

Brigas Afonso recusa ter recebido orientações políticas. Paulo Núncio mais preocupado com e-fatura

Da audição de António Brigas Afonso, que foi diretor-geral da Autoridade Tributária de julho de 2014 e março de 2015, ficamos a saber que a transferência para offshores nunca foi discutida com a tutela, e que o anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, tinha como “prioridade” a reformulação do sistema e-fatura, que permitiu ao Estado fiscalizar as receitas dos contribuintes e dos comerciantes.

O ex-diretor do fisco nota até que, como o projeto e-fatura era complexo, pediu várias vezes ao secretário de Estado que desse seguimento à nomeação de um subdiretor-geral do fisco para a área informática. Mas que essa nomeação — apesar de ter sido feito um concurso público — nunca teve seguimento da parte do Governo. “Apesar das minhas insistências perante o secretário de Estado, nunca foi nomeado ninguém para o cargo, o secretário de Estado não deu seguimento a esse meu pedido”, disse Brigas Afonso, sublinhando que o assunto “foi várias vezes abordado em reuniões com o secretário de Estado”, mas não com a ministra Maria Luís Albuquerque.

Brigas Afonso deixou claro que não tinha conhecimento da existência de estatísticas internas relacionadas com as transferências para offshores, sendo que se existiam não eram reportadas. Mas deixou a garantia: “Os dados eram tratados, independentemente das estatísticas”. Acontece que, havendo “imensas estatísticas internas comunicadas ao secretário de Estado”, aquelas em que os reportes mais incidiam tinham a ver com a cobrança de impostos, voluntária e coerciva. Sobre essa cobrança de impostos havia um reporte diário ao secretário de Estado. Mas sobre a existência de estatísticas de transferências para o exterior, Brigas Afonso não tem memória.

Sublinhando sempre que nunca lhe foram reportadas falhas informáticas que levassem a falhas na fiscalização das transferências para paraísos fiscais, Brigas Afonso nunca soube explicar como era feito o processo técnico de extração dos dados das declarações vindas dos bancos para a Autoridade Tributária.