É habitual o hotel Martinhal Sagres convidar diversos chefes vindos de outras paragens para cozinhar no seu restaurante principal, O Terraço. Fê-lo, ao longo dos últimos dois anos, com Kiko Martins, Luís Pestana, Alfred Prasad ou Cláudio Cardoso. Menos habitual, porém, é esses chefes criarem novos pratos para estes jantares. E nada habitual — ou, por outras palavras, completamente inédito — é haver quem faça como o mais recente convidado, Daniel Estriga, do Conceito Food Store, que não só criou todo um menu para a ocasião como o pensou tematicamente: uma viagem entre Cascais (a sua cidade) e Sagres, pela costa, usando peixes e mariscos que se podem encontrar pelo caminho. “Foi um desafio. Podia ter trazido pratos do Conceito mas assim fez muito mais sentido”, explicou o chefe, que muitos em Lisboa ficaram a conhecer enquanto responsável pela cozinha do Gioia, projeto ao qual já não está ligado desde o início do ano.

Daniel Estriga na manhã do jantar em visita à Doca Pesca de Sagres.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

Uma das coisas boas de viajar sem sair do lugar é tornar desnecessária a aplicação do mandamento “se conduzir não beba”. Assim, o jantar pôde ser harmonizado — e bem — com vinhos Ninfa, de João M. Barbosa, produzidos na adega Porta de Teira, junto às salinas de Rio Maior. Uma localização que resulta em vinhos com perfis únicos, muito salinos e minerais. Ideais, portanto, para acompanhar um jantar deste género. É que apesar de o mar ficar a cerca de 30 quilómetros da vinha, nem sempre foi assim: “O Oceano Atlântico andou por lá há milhões de anos”, conta João Barbosa.

Esta viagem fez-se dos hábitos de Daniel, com produtos que conhece e trabalha com frequência, como o polvo cascalense, mas também de algumas das suas memórias, caso das férias passadas em Porto Covo ou dos jantares na famosa Tasca do Celso, em Vila Nova de Milfontes. A caminho do Algarve, o chefe ainda parou em Sesimbra para comprar espadarte, que serviria em tataki umas horas mais tarde.

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As cavalas que Daniel Estriga comprou no Mercado de Sagres.
(foto: © Tiago Pais / Observador)

Daniel chegou a Sagres a meio da manhã de sábado, o dia do jantar. Vinha com os sonos trocados, muito por culpa de outro bicho: o choco. “O prato de choco deu-me muito trabalho, ficámos a noite toda a fazer várias tentativas até acertar”, disse. Esses sonos trocados não o impediram, porém, de acompanhar o chefe residente d’O Terraço, Micael Valentim, numa visita à Doca Pesca e ao mercado locais, onde viria a comprar as cavalas, essenciais para o último prato do menu que iria servir. Menu esse composto por seis pratos (e uma sobremesa) com partida em Cascais — o Conceito fica em Bicesse, nos arredores da vila –, e passagens por Sesimbra, Setúbal, e duas paragens na Costa Vicentina até chegar a Sagres.

1º prato: Polvo da Linha

Depois de um couvert que incluiu pão e manteiga de algas, além de um creme de bacalhau, grão e coentros, (des)apertaram-se os cintos e a viagem teve início. E um bom início, com este polvo minimalista, cozinhado à lagareiro, temperado com azeite e vinagre balsâmico e servido com uma emulsão de alho francês e alho negro, espargos laminados e abacate com maçã verde e lima.

Explicação do chefe: “Escolhi o polvo porque é muito utilizado em Cascais, temos uma tradição de mergulho e de pescadores que os apanham. É dos produtos que mais gosto de trabalhar.”

Polvo da Linha (foto: © Tiago Pais / Observador)

2º prato: Gladiador dos Mares

O nome deixava (quase) tudo em aberto para a segunda etapa. Mas, afinal, o tal gladiador era apenas o espadarte que Daniel comprara nessa madrugada em Sesimbra. Fê-lo em tataki, com uma técnica antiga, pouco utilizada hoje em dia, que consiste em selar o peixe em água a ferver. A acompanhar, um molho ponzu, salada de algas, gel de alga nori, cebolo laminado e uns grãos de farinha torrada, em homenagem às refeições que os pescadores tomavam antes da faina.

Explicação do chefe: “Achei interessante fazer o tataki da forma tradicional, escalfando-o, porque este prato tem uma vertente asiática. A farinha torrada signfica a procura do tradicional, do que os pescadores em Sesimbra comiam, era como se fosse as suas barras de energia.

Gladiador dos Mares (foto: © Tiago Pais / Observador)

3º prato: O choco de Setúbal

Em Setúbal o choco serve-se frito e com batatas fritas, certo? Pois bem, Daniel Estriga desconstruiu essa receita e reconstruiu-a à sua maneira. O choco foi frito, cozido e posteriormente braseado. Para dar mais textura ao prato, o chefe acompanhou-o com um crocante de tinta de choco e nacos de falso carvão (merengue de tinta de choco) com sabor a pimentos. Não faltou o limão que normalmente se espreme por cima do petisco nem a maionese, também aromatizada com alho e limão.

Explicação do chefe: “Foi o prato que me deu mais trabalho até chegar à receita certa. Tivemos de tentar várias vezes, o choco foi primeiro frito, depois cozido, porque ficou com textura de borracha, e finalmente chamuscado.

O Choco de Setúbal (foto: © Tiago Pais / Observador)

4º prato: Sabor a férias em Porto Covo

Outra designação que não deixava adivinhar grande coisa. Mas valeu bem a surpresa: sargo apresentado sobre uma folha de arroz polvilhada com pó de alga, com mexilhão e percebes. A acompanhar, uma gulosa massada (massa pevide) de raia e lingueirão, enriquecida com espuma de ouriço do mar e molho de caldeirada. Tão gulosa, aliás, que o tacho acabou por ficar numa das mesas.

Explicação do chefe: “Este é um prato de memórias, das férias que passo em Porto Covo e em Vila Nova de Milfontes. Já tinha trabalhado esta massa em Lisboa e tive uma versão idêntica no Conceito. Escolhi o sargo porque é característico daquela zona.

Sabor a férias em Porto Covo (foto: © Tiago Pais / Observador)

5º prato: Nem só de pão vive o Alentejo

Ainda na Costa Vicentina, Daniel Estriga trouxe para a mesa uma raia (e o respetivo fígado) cozinhados a vapor num molho à Bulhão Pato, acompanhados por uma salada com canónigos, salicórnia, rebentos e óleo de coentros, amêndoa hidratada e, muito importante, pequenos pedaços de pão frito.

Explicação do chefe: “A raia é cozinhada a vapor mas não em água, antes do molho à Bulhão Pato. A salada é inspirada por uma de pão frito com amêndoa que comi uma vez na Tasca do Celso, em Vila Nova de Milfontes.

Nem só de pão vive o Alentejo (foto: © Tiago Pais / Observador)

6º prato: Cavala do Infante

O destino, Sagres, foi alcançado com este último prato. Que não veio sozinho: chegou à mesa com uma mensagem impressa num papel enrolado, ligeiramente queimado nas pontas, onde se podia ler sobre o significado da vila nas epopeias e conquistas marítimas do Infante Dom Henrique. E se foi dali que os portugueses partiram à procura do Mundo Novo, esse mundo veio refletido no prato, já que a cavala — apenas braseada — vinha imersa numa sopa thai farta em especiarias.

Explicação do chefe: “Não foi nada fácil tirar filetes destas cavalas que pouco maiores eram que sardinhas. O caldo e as especiarias simbolizam os Descobrimentos. Decidimos juntar-lhe uma carta sobre Sagres porque quisemos criar vários momentos diferentes, para que o jantar não fosse monótono.”

Cavala do Infante (foto: © Tiago Pais / Observador)

Sobremesa: À pesca com Diogo Lopes

Já em porto seguro, houve direito a sobremesa para rematar a viagem. A designação, À pesca com Diogo Lopes, deve-se ao uso de um molde de sardinha de autoria do chefe pasteleiro homónimo, responsável por essa área no Penha Longa Resort. O molde serviu para dar forma a uma capa de chocolate branco com recheio de panna cotta de citrinos. Por baixo, uma telha crocante de sésamo a imitar uma rede de pesca, areias de Cascais esmigalhadas, um bolo de chá verde no papel de rocha, gel de citrinos e, mais uma vez, pó de algas a remeter (ainda mais) para o ambiente marítimo. A viagem terminaria em definitivo pouco depois, com uma nova surpresa adocicada: umas pérolas de chocolate branco com recheio cítrico servidas em cascas de ostra que Daniel arranjara, com dificuldade, na véspera. Se começou bem, acabou melhor.

Explicação do chefe: “A minha ideia inicial era apresentar esta sobremesa de outra forma:primeiro pensei na espinha de um peixe depois na concha de uma vieira. Mas cada vez que a ia tirar do molde ela partia-se, por isso esta foi a solução que arranjámos.

À pesca com Diogo Lopes (foto: © Tiago Pais / Observador)