Luc Besson quer ser o George Lucas, ou o Peter Jackson, ou o James Cameron europeu. Ou os três numa pessoa só. O seu “Valérian e a Cidade dos Mil Planetas”, baseado na banda desenhada (BD) de ficção científica de Jean-Claude Mézières (desenhos) e Pierre Christin (argumento), uma das criações cimeiras da história da BD franco-belga (faz 50 anos em 2017), não é apenas a concretização de um velho sonho do realizador de “O Último Combate”, “Nikita — Dura de Matar” e “O 5º Elemento”. O filme é o mais caro já feito em França, na Europa e na história do cinema independente (custou cerca de 200 milhões de euros) e significa o primeiro passo na criação de uma “franchise” de peso e longa duração, como as que dominam agora a indústria cinematográfica americana (“Guerra das Estrelas”, os super-heróis da Marvel e da DC, a série dos “Avatar” de Cameron).

[Veja o trailer de “Valérian e a Cidade dos Mil Planetas”]

Só que esta é uma “franchise” feita no Velho Continente, recorrendo, entre outros, aos novos e riquíssimos parceiros de Hollywood, os chineses, e lançando mão dos mesmas matrizes e estratégias comerciais, narrativas e tecnológicas desta, para criar uma série de “blockbusters” de ficção científica (Besson sonha com dez filmes de Valérian) que apelem às plateias globais (sem esquecer o mercado dos EUA) e se meçam com as bisarmas americanas. Rodado em Paris na EuropaCorp do realizador, sem um cêntimo dos grandes estúdios de Los Angeles e distribuído por um independente nos EUA, financiado com pré-vendas internacionais, pelos co-produtores chineses e outros, e do próprio bolso de Luc Besson, e exibindo efeitos especiais a cargo das mesmas IL&M de Lucas e Weta de Peter Jackson que trabalham para as superproduções hollywoodescas, “Valérian e a Cidade dos Mil Planetas” é uma arrojada aventura cultural, industrial e comercial.

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[Veja a entrevista com Luc Besson]

E como dizem os americanos, o filme é uma “venda difícil”. Tem que vencer a relutância dos leitores e admiradores ferrenhos da BD de Mézières e Christin, que estão – compreensivelmente – de pé atrás com esta adaptação (mesmo que os “pais” de Valérian e Laureline tenham acompanhado a produção de perto, e aprovado o resultado final, Besson não é propriamente conhecido pela sua subtileza e contenção como argumentista e realizador); e tem que agradar a quem nunca viu Valérian mais gordo. Nestes incluem-se os americanos (parte da inusitada ferocidade com que o filme está a ser recebido pela crítica nos EUA tem a ver com este desconhecimento), que são já bombardeados semana sim, semana não, com fitas mastodônticas baseadas em “comics” de super-heróis caseiros.

[Veja a entrevista com Dane DeHaan e Cara Delevigne]

Necessariamente, “Valérian e a Cidade dos Mil Planetas” é falado em inglês e a maior parte dos atores principais são americanos e britânicos, de Clive Owen a Ethan Hawke (o excêntrico elenco conta até com Herbie Hancock no ministro da Defesa interplanetário e Rihanna numa alienígena polimorfa e dançarina de varão). Se o filme tivesse sido rodado há 30 ou 40 anos, Alain Delon ou o falecido Bernard Giraudeau teriam sido escolhas imediatas para interpretar Valérian. Quem lhe dá corpo e coração é Dane DeHaan, um daqueles actores que parece bastante mais novo do que realmente é (31 anos), e o seu Valérian não convence nem pelo aspecto, nem pela personalidade, nem pelo comportamento. Já a Laureline de Cara Delevingne está bastante mais próxima da personagem, sobretudo pelo feitio. É pena que Besson não lhe tenha pintado o cabelo de ruivo, para a “colar” mais à parceira de Valérian.

[Veja a entrevista com Clive Owen]

BD e cinema são artes vizinhas, contíguas, mas cada qual existindo no seu universo estético e expressivo específico. Qualquer adaptação ao cinema deixa sempre algo a desejar, mesmo quando é feita em animação, como já sucedeu com Tintin, Astérix ou Lucky Luke e o próprio Valérian, este no Japão. Era impossível que Luc Besson conseguisse emular de forma totalmente satisfatória a complexidade narrativa e a exuberância gráfica do universo dos agentes espácio-temporais de Mézières e Christian, e “Valérian e a Cidade dos Mil Planetas” é mais feliz no segundo departamento do que no primeiro. Isto embora o argumento (que foi beber a “O Embaixador das Sombras”), muito mais simplista do que qualquer das histórias dos álbuns, contemple vários dos temas constantes na série: a desconfiança para com militares e políticos, as preocupações ecológicas ou a visão muito crítica das ações dos humanos no contexto das relações intergaláticas. O o que não implica que as espécies alienígenas sejam todas idealizadas e pacíficas – longe disso.

[Veja a entrevista com Rihanna]

Onde o filme marca muitos pontos é mesmo na construção do intrincado futuro em que as aventuras de Valérian e Laureline decorrem, ou começam (aqui, eles são mais agentes espaciais do que temporais), na visualização da imensa e babélica estação espacial-mundo Alpha (Point Central, nos álbuns), onde coexistem centenas e centenas de espécies galácticas nos seus respetivos “habitats”, e na caracterização e inserção na história de personagens alienígenas recorrentes nos álbuns. É o caso do venal e interesseiro trio de Shingouz ou do pequeno Transmutador de Bluxte, que reproduz de imediato e em grande quantidade qualquer objeto que ingere, e que ocupa um lugar central na narrativa. A frenética sequência na Zona Interdita, por exemplo, onde Laureline pensa que vai ser noiva à força, para descobrir que afinal é jantar “gourmet” de gala, é todo um delirante programa.

[Veja a entrevista com os criadores da BD, Mézières e Christin]

Luc Besson, que escreveu o argumento, conseguiu ainda transportar em boa parte para a tela a modalidade de ficção científica imposta por Mézières e Christin na série, que é em parte influenciada pela literatura anglófona e pelos “comics” clássicos do género, mas também caracterizada por uma imaginação rica e estrambólica em termos de criaturas e “gadgets” e por uma menorização dos aspectos “hard tech” e das explicações científicas complexas (“Na expressão ‘ficção científica’, prefiro a palavra ‘ficção’ à ‘científica’, disse certa vez Christin”). O que torna os álbuns da dupla, e esta fita com eles, numa gostosa mistura de “space opera” tradicional com o seu lado artesanal, e de aventura cósmica hipertecnológica.

[Veja Mézières desenhar Valérian e Laureline]

O ritmo mata-cavalos imprimido por Besson a “Valérian e a Cidade dos Mil Planetas” faz com que a acção se desgarre a espaços, a história se emaranhe aqui e ali e a realização se deslumbre pontualmente com a sua própria opulência visual. Mesmo assim, e com as reservas já apontadas (de que a escolha infeliz de Dane DeHaan é a maior), o filme é muito mais potável do que um apreciador da série de BD desde a primeira hora (como é o autor destas linhas) poderia temer, sobressaindo clara e positivamente de entre tudo o que tem sido feito nesta ingrata área das adaptações de BD franco-belga ao cinema. E que é melhor e tem mais personalidade e mais sumo do que 99,9% dos filmes Marvel e DC cujo modelo adota e a que quer dar luta no seu próprio território, isso é tão certo como o sol nascer e se pôr todos os dias.