Primeiro vieram os ventos fortes, mas não mais fortes do que é normal em Macau nesta altura do ano. Depois vieram as chuvas torrenciais e o vento tornou-se tão forte que as janelas começaram a estoirar e os autocarros estacionados começaram a tombar nas ruas como brinquedos. Nas pontes, as pessoas seguravam os seus veículos contra o vento e muitos perderam a batalha. Era apenas mais um tufão — só que, em menos de duas horas, transformou-se no mais forte a atingir a Região Administrativa Especial (RAEM) desde que há registos, ou seja, há 50 anos. A velocidade do vento chegou a atingir os 180 quilómetros por hora.

A intempérie passou, mas os destroços são tantos que parece que o perigo ainda está à espreita. Para domingo já há um novo alerta. As ruas estão atapetadas com as copas das árvores que tombaram, à frente das lojas estão pilhas de entulho que tornam todas as ruas iguais, todas irreconhecíveis. O mercado central de Macau, o Mercado Vermelho ficou dois metros submerso, tudo o que lá estava dentro estragou-se. O abastecimento dos supermercados diminuiu muito e duas garrafas de água de meio litro já podem custar 15 euros.

As ruas da cidade velha foram algumas das mais afetadas pelo tufão Hato (D.R.)

Nos muros perto do Lago de Nam Van, formaram-se manchas castanhas — são centenas de baratas, todas em cima umas das outras, a tentarem fugir dos rios em que as ruas se transformaram. Há 10 mortes confirmadas já esta sexta-feira pela Proteção Civil de Macau e as famílias agora interrogam-se porque é que o alerta 10, o último da escala, que avisa as pessoas para não saírem de casa, não conduzirem veículos nem mandarem os filhos para a escola só foi dado depois das 10h da manhã, quando a rotina diária já tinha começado.

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O diretor dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) de Macau, Fong Soi Kun, apresentou a demissão na quinta-feira, um dia depois da passagem do tufão Hato pelo território. O próprio chefe do executivo de Macau, Fernando Chui Sai On, admitiu que o governo não fez o suficiente.”Embora tenhamos feito previsões e tomado medidas preventivas face a este desastre, não podemos deixar de reconhecer que o que foi feito não foi suficiente. Aqui, em nome do Governo da RAEM, peço imensas desculpas à população”, declarou Fernando Chui Sai On.

Governo ajuda com 3.000 euros, mas é pouco para quem investiu tudo

Manuel António Brito Lai é chinês, e, que ele saiba, não tem Portugal no sangue — mas tem na cultura, nas tradições da família e na sua carreira. E tem nacionalidade portuguesa, como tinha toda a gente nascida no território antes da passagem para a China, em 1999.

Da família, herdou a arte da costura. Há mais de 40 anos que é alfaiate em Macau e fez “muitas fardas de gala” para os oficiais do Exército, onde ele mesmo serviu durante quase 20 anos. A sua pequena alfaiataria, mesmo no centro da cidade, na rua Nossa Senhora do Amparo, sofreu alguns danos mas Manuel Brito Lai está otimista, apesar de começar a conversa com o Observador enumerando os prejuízos.

“Os meus tecidos ficaram todos molhados, os mais delicados, como os veludos e as sedas que uso para o forro dos fatos dos oficiais do governo, não posso recuperar. Algumas encomendas já feitas, as linhas, os botões, metros de entretela, está tudo sujo, para um alfaiate é mais ou menos a mesma coisa que estar perdido”, diz Manuel Brito Lai, num português que pratica “cada vez menos”. Com 85 anos, continua a trabalhar e passou os últimos dois dias a limpar a loja.

O governo de Macau está a ajudar os negócios que foram mais afetados com cerca de 3.000 euros o que, no caso da Alfaiataria António Manuel, “até vai dar para recuperar bastante porque as máquinas principais estão na China”, conta.

Durante as limpezas, uma das empregadas da loja perguntou-lhe se podia pôr para o lixo um banco de madeira velho, com a almofada coçada e as pernas já inchadas da água, mas ele disse que não. Pegou no banco e rasgou o forro: lá dentro, escondida, estava a sua boina de militar, que ele não queria perder.

Também os donos do café Tuga e Lola, que abriu há menos de um ano, perderam tudo. O investimento rondou os 50 mil euros, um valor que só poderão recuperar recorrendo à linha de crédito que o governo abriu. Tal como os proprietários do restaurante Casa do Porco Preto, que tem pouco mais de dois anos. O gerente do estabelecimento falou com a Tribuna de Macau sobre o medo do futuro.

António Manuel Brito Lai, alfaiate de Macau, com nacionalidade portuguesa, mostra a boina do Exército (D.R.)

“Nos anos 80 houve um que foi mau mas nada deste género”

Quem conta o episódio da boina não é António Manuel mas sim Vitório Rosário Cardoso, de 38 anos, vice-presidente do PSD no território e consultor na área de internacionalização de negócios. Tem andado a limpar as ruas a par com a população das zonas mais afetadas e mostra-se preocupado, principalmente, com a falta de informação sobre os feridos que possam ter dupla nacionalidade precisamente por terem, como António Manuel, nascido em Macau, na altura em que era “Macau, Portugal”.

“São pelo menos 140 mil pessoas aquelas que têm passaporte português, mesmo sendo chinesas, muitas não falam português mas por vezes ficam um pouco esquecidos nestas alturas. As vozes mais ouvidas são as dos expatriados, mas dos outros as autoridades lembram-se menos. É preciso saber se há feridos ou mortos com passaporte português”.

A Direção-Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas garantiu ao Observador que tem estado em permanente contacto com os serviços de Macau e que não há registo de qualquer vítima com passaporte português.

Vitório Cardoso nasceu em Macau mas a sua família é uma “misturada com mais de seis gerações a pular entre Portugal e Macau”. O avô era de Proença-a-Nova, a avó é chinesa. Na quarta-feira, por volta das 10h da manhã, saiu de casa para ir ver a sua avó mas já não conseguiu lá chegar. “O vento empurrava os carros, as árvores caíam enquanto eu caminhava, quando cheguei perto de São Tiago da Barra e deixou de haver prédios que contivessem o vento tive que voltar para casa”, conta, acrescentando que “já tinha havido alguns tufões fortes nos anos 80, mas nada que se compare a isto”.

A sua avó, diz, é um desses português dos quais “ninguém fala”. “A minha avó não fala uma palavra de português mas ela, como centenas de milhar de chineses, cresceram dentro dessa cultura portuguesa e hoje, se alguém disser à minha avó que ela já não é portuguesa, ela zanga-se a sério”, conta o consultor.

Já Patrícia Silva, dentista numa clínica privada dentro do casino Venetian, sentiu todo o seu prédio a abanar e esteve muito tempo sem luz e sem água. “A falha foi terem dado o alerta demasiado tarde. Disseram que era um 8 mas depois passou de um 8 para um 10 num piscar de olhos e as pessoas já não se puderam preparar”, diz em entrevista ao Observador.

“Percebi que estava complicado quando comecei a ver da janela os carros aos ziguezagues na rua e as chapas das obras em frente à minha casa a voarem a alturas superiores ao meu sexto andar”. Por volta do meio-dia, quando o vento ficou realmente destruidor, a dentista sentiu necessidade de “virar a mesa da sala e ficar atrás dela caso o vidro da sala partisse”.

Os alarmes do prédio dispararam todos, as paredes e o chão tremeram, conta Patrícia Silva, que se considera “bastante sortuda” em comparação com a destruição que depois viu na televisão, quando finalmente a luz voltou.

Ruas irreconhecíveis, lama, lixo e falta de água

Os prédios novos ficaram bastante danificados, mas nada se compara à destruição que a parte velha da cidade sofreu. As ruas adjacentes à Avenida Almeida Ribeiro — ou a San Ma Lo, como até os portugueses lhe chamam — ficaram irreconhecíveis.

“A água do rio subiu demasiado rápido, inundou toda a zona do Porto Interior, que normalmente já está sujeita a inundações, mas nada deste género acontecia há muitos anos, pelos que nos têm dito as pessoas”, diz ao Observador Liane Ferreira, jornalista e tradutora residente em Macau. Ela e os outros jornalistas do jornal Tribuna de Macau passaram “os últimos dias sempre na rua” e só aos poucos é que as coisas começam a melhorar. A luz ainda não voltou a todo o território e o abastecimento de água também não está normalizado.

“A água entrou dentro das lojas que ocupam o rés do chão dos prédios nestas zonas antigas e trouxe consigo tudo o que tinham no interior: roupa, produtos alimentares que estavam dentro de armazéns de distribuidores, o marisco seco das lojas dos pescadores, todos os frascos das farmácias de medicina tradicional, todos os chás que eles vendem, tudo veio para fora. É um cenário que normalmente não se associa a Macau, uma cidade de luz e dinheiro” disse a jornalista.

Esta sexta-feira, a décima vítima mortal foi encontrada num silo automóvel e as autoridades temem que possam ser encontradas mais pessoas em garagens e estacionamentos subterrâneos onde terão ido tentar salvar os seus veículos ou a mercadoria das suas lojas.

“Na quinta-feira, os mergulhadores continuavam a inspecionar os parques de estacionamento em busca de alguém que estivesse preso. Para mim, isto é a parte assustadora. Temos duas pessoas que morreram presas numa loja, afogados e apanhados de surpresa pelas águas, com certeza. Existem ainda outras três mortes num parque de estacionamento”, conta Liane Ferreira.

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Já na sexta-feira, a jornalista de 30 anos esteve em Coloane, uma das ilhas de Macau, onde quase toda a construção é rasteira e algumas caixas de correio ainda têm o símbolo dos CTT. “Estive a ajudar nas limpezas, a retirar das casas móveis e eletrodomésticos estragados, a limpar as estradas de árvores e do lixo para se poder retomar a circulação. Se tudo correr bem, amanhã os camiões de recolha já podem ir limpar — até porque domingo ou segunda-feira chega outro tufão”.