Em janeiro de 2016, os Orelha Negra apresentaram no CCB, em Lisboa, o álbum que iria ser lançado nessa primavera. Foi um grande espetáculo, com as novas músicas a casar na perfeição com o arranjo estético, uma cortina translúcida e jogos de luz e aquele som, absolutamente no ponto. Foi um concerto-estreia daqueles de deixar água na boca: “se ao vivo é assim, como é que será em disco”. Justificava-se a espera, estava para breve.

Mas não estava. Os meses e as estações foram passando e, disco novo, nada. Ano e meio depois aí está ele, Orelha Negra — mais um disco homónimo, o terceiro — em todo o seu esplendor, mas inevitavelmente agarrado àquilo que ouvimos no passado. As memórias são boas a pregar partidas e foi preciso algum tempo para encontrar no disco as canções (sim, canções) que tínhamos conhecido no CCB.

Não foi fácil, foi quase uma luta. As referências eram outras, já manipuladas pelo passar do tempo, foi preciso admitir que a caixa de ritmos da nossa cabeça tinha de ser reiniciada. Em entrevista ao Observador, os Orelha Negra ajudaram-nos a perceber porque é que os temas que tocaram naquele janeiro já não são exatamente os mesmos.

Capa do álbum Orelha Negra (Meifumado, 2017)

O processo de construção musical dos Orelha Negra é complexo e demorado, tem o ritmo da conversa que tivemos em redor de uma pequena mesa de um café em Lisboa. Sam the Kid, DJ Cruzfader, Francisco Rebelo, João Gomes e Fred Pinto Ferreira são amigos de longa data, com percursos pessoais e musicais distintos, que se encontram nos Orelha Negra para fazer uma coisa que não fazem em mais lado nenhum: serem uma banda de hip hop/funk sem vocalista que desenhou um som que mais nenhuma banda em Portugal tem.

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Essa história está inscrita nos anteriores Orelha Negra (2010) e Orelha Negra (2012). Orelha Negra (2017) é mais um capítulo que reflete o gozo que têm em trabalhar em conjunto, uma ocupação que tem apenas uma regra: tem de ficar exatamente como eles querem, demore o tempo que for preciso. Daí que tenha passado ano e meio entre a apresentação ao vivo e o lançamento do disco — na verdade, este terceiro álbum está pronto desde o passado mês de abril; Fred explicou-nos que só vai sair agora por opção da banda, condicionada pelo tempo de impressão da versão em vinil.

Os Orelha Negra são os nossos melhores amigos

João Gomes afirma que dão sempre “primazia à perfeição do trabalho, em vez dos timings ideais para divulgar ou vender”, e que a apresentação das músicas antes do disco é algo que acontece desde o primeiro álbum. Usam isso como laboratório, como “uma forma de as fazer crescer mais”. Estas 13 novas canções estão agora, conclui, em “ponto rebuçado”.

Apesar disso, mais tempo tivessem e talvez Orelha Negra (o álbum) ainda levasse uns toques. A complexidade é imensa, foram usados mais de centena e meia de samples (excertos de música ou sons) e há ali faixas com 130 pistas (numa explicação simples, cada pista corresponde a uma camada de som), “é super complexo de arrumar, misturar e ajustar”, conta-nos o teclista da banda.

Fred dá outro exemplo:

“Lembro-me perfeitamente de ter feito uma bateria, estava completamente satisfeito, vem o Francisco e diz ‘experimenta mais assim ou mais assado’. Aceitei a ideia e a música deu um salto. De repente, a parte dele também mudou. É por coisas assim que o álbum demorou tanto tempo a ser acabado.”

Os Orelha Negra brincam com os samples do mesmo modo como brincam com as ideias, como quem atira ingredientes para a panela com a vantagem de conseguir tirar algum se estiver a mais no tempero. Depois de complicar, simplificam. Parece fácil mas não é, exige perícia e tempo. Quanto? O que for preciso.

[O vídeo do primeiro single, “Redenção”]

Já terá reparado que os Orelha Negra estão a construir o hábito aparentemente narcísico que é o de nomear os álbuns todos com o nome da banda, mas para eles trata-se apenas de uma questão de postura e atitude, de fugir da regra e do óbvio. Sam the Kid justifica: “É uma oportunidade para tu o batizares”. E acrescenta: “A música fala sempre mais alto. Qual é o nome do disco? Não interessa, ouve a música. Podíamos até ter ido mais longe e não ter dado um nome às músicas, mas isso se calhar já era demais.” Talvez, mas teria a sua graça.

Chega a ser estranho ver músicos com este calibre e experiência, juntos há 10 anos, a discutir as minudências da música que fazem, porque visto de fora parecem nunca estar de acordo. Não é uma coisa azeda, pelo contrário. Mandam bocas e riem-se, quando assumem que os cinco têm respostas diferentes para a pergunta básica: em que é que este disco é diferente dos outros?

A observação geral aponta para um disco mais denso, mais introspetivo, “todos são discos de viagem, este talvez seja uma viagem mais densa, mais psicadélica”, conta Francisco Rebelo. Todos parecem concordar que a componente estética contribuiu para o desenho final do álbum, em coisas como o nome a dar a cada música.

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A capa, desenhada por Rui Vieira, é fiel ao ambiente, que Sam descreve como “mais complexo na composição sem deixar de ser agradável ao ouvido”, um disco que procura surpreender, que apanha na curva aqueles que acham que já conhecem a nota que vem a seguir.

João Gomes entende que neste Orelha Negra “a utilização dos samples vocais é mais consciente, estão mais bem encaixados. Quem não nos conheça nem se vai aperceber que não temos vocalista.” É uma ausência que continua a ser distintiva, não há muitas bandas de hip hop sem uma voz guia. Optaram por ter muitas, espalhadas pelos samples que vão recolhendo aqui e ali, são tantos que lhes perderam o rasto.

Orelha Negra volume III — chamemos-lhe assim porque nos dizem que pode ser como quisermos — não é um disco fácil, exige tempo e precisa de ser escutado. Ouvir não chega, é preciso ligar o botão da atenção, coisa cada vez mais rara nos tempos que correm. A cada volta, mais uma descoberta, mais uma reta de hip hop seguida de uma curva (uma mudança de ritmo ou um detalhe) que julgávamos não ser possível estar ali. É um disco esguio e cheio de surpresas.

Os Orelha Negra são os primeiros a dizer que se esforçaram por criar um álbum capaz de surpreender quebrando a lógica da estrutura pop, com o cuidado de não o tornar erudito, não estão ali a fazer música para músicos. Foram lentos, brincaram aos lançamentos e trocaram-nos as voltas à expectativa, mas depois de algumas passagens pelo leitor de CDs não sobram amargos de boca: é tudo verdade, conseguiram.

[“Parte de Mim”, o tema que fecha o disco]

Orelha Negra, faixa a faixa

Perante uma banda que não se preocupa com o nome dos álbuns e não usa, de forma estruturada ou “clássica”, uma voz e um texto de onde é possível extrair o nome de uma canção, pedimos-lhes que nos descrevessem, numa palavra ou ideia, cada uma das 13 faixas de Orelha Negra Volume III (título nosso).

Os cinco atropelam-se com ideias distintas, cada um tem a sua leitura, têm até dificuldade em saber a que música nos referimos, reconhecem-nas melhor pelos nomes de código, aqueles fabricados no estúdio e que aparecem de um beat, de um sample ou até de uma piada qualquer. Tudo tem de ter um nome, mas agarrado a ele nem sempre existe um significado lógico. Umas vezes a expressão é meramente técnica, noutras, talvez a maioria, traz associada uma imagem ou emoção.

  1. Nascente – Macau
  2. Apolo 70 – Allien Boogie
  3. A Sombra – Power
  4. Duas Caras – Amor e ódio; sloppy
  5. OST – Complexidade
  6. Claire – Frágil; ar; deixa respirar
  7. Soul2 – Confusão; delírio experimental
  8. Skylab – Nostalgia; Daft Punk
  9. Fenix – Orquestral; épica
  10. Santa Ela – Estrelas
  11. Ready – Épico; gospel
  12. Última Volta – Circular; a vida em carrossel
  13. Parte de Mim – Mensagem; força (“apetece rimar em cima daquilo!”)

O mais curioso neste exercício é confrontar as sensações que tiramos da escuta do disco com as imagens que os artistas têm delas. Nestas coisas não há certo nem errado, por isso não se espante se encontrar imagens opostas. Para os Orelha Negra o desafio está ganho. O “teste” estará disponível já a partir desta sexta-feira dia 15.