Não sou leitor de Ian McEwan, mas se ele recorre tanto aos “flashbacks” nos outros livros como em “Na Praia de Chesil”, cujo argumento adaptou do seu romance homónimo, a sua escrita está em risco de “overdose” de saltos temporais. O filme, realizado em estreia por Dominic Cooke, passa-se em 1962 (tendo em conta a história, o poema “Annus Mirabilis”, de Philip Larkin, vem-nos logo à cabeça, talvez de forma demasiado óbvia, se era essa a intenção do escritor e argumentista) e abre com um terrível e embaraçoso acontecimento durante a noite de núpcias das personagens principais, os jovens Edward (Billy Howle) e Florence (Saoirse Ronan). E a seguir, tudo o que o antecedeu é contado numa jiga-joga cronológica, passado-presente, passado-presente  – até há, a certa altura, um “flashback” dentro de um “flashback”. Que mal fez o tempo linear a McEwan?

[Veja o “trailer” de “Na Praia de Chesil”]

Edward e Florence acabaram de se formar em Oxford, e apesar de não serem do mesmo estrato social, e de terem pais antitéticos (classe média e simpáticos e excêntricos os dele, abastados e snobes os dela) gostam ambos de música (clássica para ela, que é violinista num quarteto, jazz e blues para ele), apaixonam-se e casam-se. Só que estamos em 1962, fora de uma grande cidade, numa sociedade cheia de constrangimentos e preconceitos, e escassa de informação em certas áreas, como a da educação sexual. Edward e Florence casam-se virgens, e com um enorme défice, teórico e prático, da mais básica interacção carnal. Junte-se a isto o facto de Florence ter um segredo de família que a oprime e que não conta a ninguém, nem mesmo ao marido, e que Edward tem um feitio volátil e aquilo a que no Brasil chamam “orgulho besta”, e eis o palco pronto para o pior.

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[Veja a entrevista com Saoirse Ronan]

“Na Praia de Chesil” é uma tragédia de amor jovem em que factores sociais, acontecimentos familiares, terrores íntimos e falhas de carácter se combinam cruelmente para comprometer o futuro de um casal. Billy Howle e Saoirse Ronan, uma actriz que é pura e simplesmente incapaz de ser menos do que excelente, compõem soberbamente Edward e Florence, seja nos momentos de empatia, convívio e entusiasmo de pressentimento de felicidade futura, seja nas manifestações de intimidade desconfortável e desastrada. Que têm o seu auge no jantar de núpcias no quarto do hotel, levado a um tal grau de pungência pela dupla de actores e pela forma como está escrito, posto em cena e filmado por McEwan e Cooke, que nos sentimos tão incomodados como impotentes perante o que se está a passar.

[Veja a entrevista com Billy Howle]

A fita colecciona todas a qualidades que já nos habituámos há muito a associar à produção de “prestígio” britânica, baseada numa obra de um autor de respeitabilidade literária estabelecida. O sentido minucioso e abrangente da época em que a história decorre, que vai das roupas usadas, dos livros lidos e dos objectos do quotidiano, aos costumes, comportamentos e atitudes; o realismo comedido, exacto, simétrico; o tom dramático na medida absolutamente certa; e os actores secundários, que aqui incluem Emily Watson na mãe fastidiosa e irónica de Florence, ou Adrian Scarborough no paciente e bondoso de Edward, todos imediata e absolutamente convincentes nos seus respectivos papéis, e que, sentimo-lo, eram capazes de interpretar os seus opostos também de forma tão competente e satisfatória.

[Veja a entrevista com Ian McEwan]

Só que surge um pauzinho na engrenagem da máquina narrativa. “Na Praia de Chesil” entra em colapso no último acto, passado já próximo de nós no tempo, e súbita e fatalmente invadido por um sentimentalismo espreme-lágrimas deslocado e tão ridículo e desastrado como a maquilhagem com que tentaram envelhecer as personagens de Edward e Florence, conseguindo apenas que Billy Howle e Saoirse Ronan – sobretudo ele – pareçam fugitivos de um filme de terror de série B. Uma catástrofe, aquela que está no centro da história, bastava. Mas tinham de estragar tudo, com o forçar do consumo lacrimal e com um dos trabalhos de caracterização mais chapadamente “fake” dos últimos anos no cinema, e o filme acaba por morrer na praia.