Imaginem o que é dormir no chão de uma cela sobrelotada, acordar de manhã com um tipo morto de um lado e um assassino em série tatuado da cabeça aos pés do outro, e estar um homem enforcado mesmo à nossa frente. É apenas rotina na penitenciária de Klong Prem, em Bangkok, ironicamente conhecida como “Bangkok Hilton”. E o resto da rotina do dia inclui refeições intragáveis, condições de higiene indescritíveis, privacidade inexistente, lutas no pátio, violações colectivas na cela, guardas corruptos, tráfico de drogas interno e a necessidade de se estar constantemente alerta para não se ser brutalizado e morto num abrir e piscar de olhos. Porque ali, um maço de cigarros ou uma embalagem de analgésicos têm muito mais valor do que uma vida humana.

Foi precisamente a Klong Prem que foi parar Billy Moore, um inglês de Liverpool a viver nas margens da legalidade na Tailândia. Billy era um delinquente, toxicodependente e lutador de Muay Thay, a arte marcial tailandesa e desporto nacional do país. E conseguiu aguentar-se porque se agarrou ao Muay Thay como única forma de sobrevivência e de ligação à sanidade, conseguindo ser seleccionado para a equipa da prisão e passando a gozar de alguns privilégios. Nomeadamente, o luxo de uma cela partilhada ainda com assassinos e criminosos de toda a sorte, mas em menor número e lutadores de Muay Thay como ele, formando assim uma irmandade. Moore contou a sua história num “best-seller”, “Prece ao Nascer do Dia”, filmado pelo francês Jean-Stéphane Sauvaire e interpretado por Joe Cole, o John Shelby da série “Peaky Blinders”.

[Veja o “trailer” de “Prece ao Nascer do Dia”]

Por coincidência, a fita estreia-se poucos dias depois da equipa de jovens futebolistas e do seu treinador terem sido salvos da caverna na Tailândia, e nela encontramos quer o lado mais negro deste país, quer o reverso da medalha dos exemplos de solidariedade, abnegação, sacrifício e coragem humana dados naquela situação. “Prece ao Nascer do Dia” é um retrato do pior, mais baixo, mais degradante, mais egoísta e e mais selvático a que o homem pode descer. Enquanto “filme de prisão” que descreve os horrores de se estar encarcerado em condições sub-humanas num país estrangeiro, mete “O Expresso da Meia-Noite”, de Alan Parker, num chinelo.

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[Veja a entrevista com o actor e o realizador]

Sauvaire não acciona o efeito de empatia nem tenta vitimizar ou desculpabilizar Billy Moore, que não era boa peça. Desde os 16 anos que fazia vida de crime e andava metido nas drogas, e já tinha estado preso várias vezes em Inglaterra, antes de ter ido para a Tailândia. Mas o realizador não o desumaniza por completo, pois Joe Cole mostra o homem imaturo, desesperado e vulnerável que Moore era (ver a sua relação com o “ladyboy” Fame), sob a carapaça da agressividade potenciada pela dependência da heroína, que devidamente canalizada para o Muay Thay, acabou por lhe salvar literalmente a vida e tirá-lo daquele inferno carcerário. (O verdadeiro Moore aparece mesmo no final do filme).

[Veja o verdadeiro Billy Moore]

Autor de documentários como “Carlitos Medellín” (2004), sobre a violência no quotidiano dos moradores de uma zona pobre da cidade de Medellín, na Colômbia, em especial no auge do domínio dos cartéis da droga, e de uma fita sobre as crianças-soldado africanas, “Johnny Mad Dog” (2008), Jean-Stéphane Sauvaire filma aqui com um realismo bruto, sujo e feio que nos é esfregado na cara plano sim, plano sim, e uma agressividade extrema da imagem e do som. Isto torna “Prece ao Nascer do Dia” em algo paradoxal, um híbrido de filme de “arte e ensaio”  e de “exploitation” de artes marciais, um documento sem concessões sentimentais ou moralizantes com exibicionismo da violência embutido.

[Veja imagens da rodagem]

No Festival de Cannes de 2017, a fita foi, curiosamente, exibida na secção Projecções da Meia-Noite, na companhia de dois policiais de acção sul-coreanos. Tinha qualidades para estar presente no certame, mas não respeitabilidade suficiente para passar de forma mais visível. O que falta também a Jean-Stéphane Sauvaire é a noção de que “Prece ao Nascer do Dia” tem ganga que devia ter sido rapada na montagem, para evitar saturar o espectador com tanto massacre visual e sonoro. A história ficava mais bem contada e com igual impacto, sem ter sido preciso esticar o filme para as duas horas de duração que agora parecem ser a norma, quer em Hollywood, quer numa co-produção independente e internacional (França/GB/Cambodja/EUA/China) como esta.