Os presidentes passam, os treinadores mudam, os jogadores trocam mas o Sporting continua com aquela pequena molécula de ADN sui generis que permitiu, por exemplo, que esta noite estivessem nas bancadas do Emirates Stadium cerca de 5.300 adeptos verde e brancos – uma das maiores marcas de sempre nos registos que são conhecidos, ao nível do que aconteceu nos encontros europeus em Sevilha e Madrid nas décadas de 80 e 90. Nos bons ou nos maus momentos, com sentido de maior apoio ou crítica, os leões marcam presença. Esse ficou como primeiro cartão de visita para Marcel Keizer, como que a melhor capa para o caderno de notas que estreou esta noite. E que deve estar carregado de linhas escritas, acrescente-se.

Desvinculado do Al Jazira, o técnico holandês deverá chegar a Lisboa em breve, agarrando na equipa leonina a partir da próxima segunda-feira, após a receção ao Desp. Chaves. Por certo trará as suas ideias, assentes numa escola holandesa que descende da figura que provavelmente mais contribuiu para a evolução do futebol no binómio jogador-treinador: Johan Cruyff. No entanto, Keizer é um treinador que se descreve como alguém que tenta adaptar o seu modelo aos jogadores com que conta. Depois dos 15 jogos iniciais e perante o que viu em Londres, é muito provável que o tenha de fazer perante as carências mais do que evidentes que existem em algumas posições. E no grande dilema coletivo, Tiago Fernandes ofereceu a primeira resposta.

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O jogo com o Arsenal começou a ser preparado apenas na segunda-feira mas, num plano figurado, tudo teve início à meia hora da partida nos Açores, quando Battaglia caiu no chão agarrado ao joelho com uma lesão que aparentava ser grave (e foi mesmo, ao ponto de ter sido sujeito a uma intervenção cirúrgica ao joelho que o deverá colocar fora dos relvados durante seis meses). Entre todos os pontos onde o Sporting caiu em relação às últimas temporadas, é na posição ‘6’ que se encontra o maior dos maiores problemas – a falta de um elemento com as características de William Carvalho é por demais evidente porque os leões deixaram de ter a qualidade na primeira fase de construção que faz toda a diferença para soltar Bruno Fernandes e os alas. Entre as opções existentes, o argentino era o que melhor disfarçava essa lacuna. Agora, “encostou”.

Sporting aguenta nulo em Londres frente ao Arsenal e dá passo importante na Liga Europa

Ficha de jogo

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Arsenal-Sporting, 0-0

4.ª jornada do grupo E da Liga Europa

Emirates Stadium, em Londres (Inglaterra)

Árbitro: Gediminas Mazeika (Lituânia)

Arsenal: Petr Cech; Lichtsteiner (Maitland-Niles, 74′), Holding, Sokratis, Jenkinson (Kolasinac, 60′); Guendouzi, Ramsey; Smith Rowe, Mkhitaryan, Iwobi e Welbeck (Aubameyang, 30′)

Suplentes não utilizados: Martínez, Mustafi, Torreira e Nketiah

Treinador: Unai Emery

Sporting: Renan Ribeiro; Bruno Gaspar, Coates, Mathieu, Acuña; Gudelj, Miguel Luís (Petrovic, 85′), Bruno Fernandes; Nani, Diaby (Jovane Cabral, 83′) e Montero (Bas Dost, 68′)

Suplentes não utilizados: Salin, André Pinto, Jefferson e Carlos Mané

Treinador: Tiago Fernandes

Ação disciplinar: cartão amarelo a Lichtsteiner (20′), Bruno Gaspar (41′), Acuña (67′), Guendouzi (71′) e Miguel Luís (74′); cartão vermelho direto a Mathieu (87′)

Na conferência de imprensa de antevisão, Tiago Fernandes nunca colocou o foco em específico nesse pormenor, talvez porque fosse um dado quase garantido de que Petrovic, pelo menos neste jogo no Emirates, iria ser titular como tinha acontecido no jogo com o Arsenal em Alvalade. Era a decisão natural mas o técnico interino pensou de outra forma. Até certo ponto, bem: juntou a Gudelj o miúdo Miguel Luís, campeão europeu de seleções nos Sub-17 e nos Sub-19, procurou garantir mais uma unidade para encurtar espaços entre linhas e tentou testar uma fórmula que permitisse outra saída na zona à frente dos centrais sem que Bruno Fernandes fizesse “piscinas” no corredor central. Em alguns jogos como visitante, este pode ser um modelo interessante e a repetir; contra o Arsenal, foi um teste para outros compromissos porque ficou literalmente a meio.

Os primeiros minutos deram uma sensação enganadora em relação ao que se podia assistir porque, nessa fase mais inicial, ainda houve alguma (mesmo que pouca) capacidade de tentar levar bola até ao último terço. No entanto, aos 15 minutos, Gudelj cortou uma bola de carrinho, Miguel Luís deu na referência Montero mas o colombiano estava a meio do meio-campo verde e branco, acabando por perder a bola (nas primeiras 12 vezes em que recebeu, ficou sem ela dez). Ficava ali, num simples lance, um exemplo paradigmático da falta de profundidade que as ações ofensivas tinham. Remates sem ficarem prensados nos ingleses, apenas um e para a bancada, de Gudelj. Mas se esse aspeto era pequeno, a resistência defensiva tornava-se grande.

Até ao intervalo, houve apenas um lance de perigo, com Guendouzi a combinar bem na direita, a cruzar tenso, Mathieu a fazer a antecipação a Welbeck perante a aproximação do internacional britânico e Coates a tirar já perto da linha de golo (17′). Além disso, o mesmo avançado atirou para defesa fácil de Renan Ribeiro, ainda antes de sair num lance em que caiu sem falta com Bruno Gaspar mas onde pode ter contraído uma lesão grave, e um disparo desenquadrado que foi parar à bancada onde estão em massa os adeptos leoninos. De resto, muita bola do Arsenal, algumas boas aproximações, zero ocasiões.

Logo a abrir o segundo tempo, ainda nem um minuto tinha passado, Aubameyang começou a dar nas vistas e, após um bom trabalho de Mkhitaryan na direita com cruzamento tenso, apareceu ao primeiro poste para um desvio que ainda deu a ilusão de ter batido na trave da baliza de Renan Ribeiro (46′). Diaby teria um remate forte a bater em Jenkinson quando parecia ir na direção da baliza mas seria de novo o gabonês a atirar com perigo, desta feita à malha lateral (58′). Os jogadores do Sporting olhavam uns para os outros, tentavam corrigir posições, aprofundavam aquele sentido de entreajuda e sacrifício que caracterizou a exibição e viriam mesmo a segurar a boa entrada nos gunners após o intervalo.

O Sporting, que ganharia apenas um canto a 12 minutos no final, tocou três vezes na bola na área dos londrinos e não fez um remate enquadrado com a baliza (tal como já tinha acontecido em Alvalade) mas também foi conseguindo aguentar um Arsenal que fez apenas mais um tiro para defesa fácil de Renan, neste caso de Mkhitaryan e de forma meio atabalhoada, após um passe de Iwobi. Para a imagem do que é o conjunto verde e branco, foi um jogo com linhas demasiado baixas para o normal e sem a mínima ligação com as unidades mais atacantes (que passavam mais tempo a ajudar os laterais do que outra coisa); para o que é esta equipa, com um técnico interino e a fazer o primeiro jogo sem Battaglia, foi o possível que se tornou quase perfeito. E nem de bola parada, num livre que valeu o cartão vermelho a Mathieu (num lance originado por um passe errado de Bruno Fernandes no meio-campo), Aubameyang conseguiu desfazer o nulo, o segundo dos ingleses esta temporada.

Tiago Fernandes fez o primeiro e último jogo europeu no comando do Sporting, logo no Emirates Stadium. Ofensivamente, a imagem que os leões deixaram foi semelhante ao número de remates enquadrados em 180 minutos de dois jogos com o Arsenal: zero. Mas o que fica é também um ponto que vale mais do que isso: 1) foi apenas o segundo jogo em que a formação de Unai Emery não marcou – o primeiro tinha sido na primeira jornada da Premier League, em agosto, com o Manchester City; 2) foi um resultado que permitiu aos leões darem um passo importante rumo à próxima fase da Liga Europa, até pela vitória do Qarabag na Ucrânia frente ao Vorskla Poltava; 3) foi a primeira vez, sete anos e 27 jogos depois, que a equipa não sofreu golos na condição de visitante para as provas europeias. Aquela utopia das ideias do Futebol Total vai começar na próxima semana; até lá, o futebol a meio e sem baliza conseguiu a sua vitória vestido com um redondo zero.