É um debate aparentemente circunscrito a meios académicos e profissionais, mas ameaça ganhar repercussão pública: que destino dar aos bens arqueológicos à guarda do Estado e àqueles que venham a ser encontrados, partindo do princípio de que o Estado já não tem espaço para os guardar? Neste debate, a diretora-geral do património aponta apenas uma certeza: “Não temos dúvidas nenhumas de que é uma situação sensível e tem de ser vista com muita atenção. Mas tem de ser vista. É melhor encarar a situação do que pensar que ela não existe.”

Ao Observador, na quarta-feira à tarde, durante uma visita ao Forte de Peniche — onde a partir do próximo ano ficará instalado um novo museu público, o Museu Nacional Resistência e Liberdade —, Paula Araújo da Silva não se alongou em comentários. Mas disse que “o assunto está em discussão, não está fechado”.

“Não vamos fazer sair nenhum documento definitivo sem recolher contributos de todas as entidades que estão preocupadas com o assunto, tal como nós estamos preocupados. De qualquer forma, o documento final será sempre entendido apenas como manual de boas práticas”, sublinhou a responsável direta pela política museológica pública e de salvaguarda do património cultural.

Em causa está uma proposta escrita, em discussão pública até 30 de abril, em que a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e o Centro de Arqueologia da Câmara de Lisboa apresentam “recomendações de boas práticas na gestão de espólios” em termos de “recolha, seleção e descarte”. É sobretudo este último aspeto que está a gerar controvérsia. O descarte implica a eliminação de bens móveis (os achados arqueológicos) através de destruição física, de despejo em lixeiras ou por meio de reenterramento no sítio da escavação, refere a proposta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não há referências diretas a uma nova política de descarte, mas diz-se que nos últimos 20 anos a “atividade arqueológica conheceu uma forte expansão”, principalmente em Lisboa, o que levou a um “aumento verdadeiramente colossal” no volume de bens recolhidos no subsolo. Por isso, “urge adequar as infraestruturas nacionais às reais necessidades”, lê-se. A proposta tem âmbito nacional e sugere, por exemplo, que o descarte possa ocorrer quando vestígios encontrados tenham pouco potencial para estudo científico ou exibição em museus, sejam pouco significativos, não se revistam de raridade ou já haja vestígios idênticos numa determinada coleção museológica.

“Grave incumprimento da lei”

Uma petição pública na internet, que até quarta-feira à noite tinha recolhido apenas 177 assinaturas, pede ao Estado que mande construir “ edifícios apropriados” ou que faça “parcerias” como “organismos públicos ou privados” para solucionar a falta de reservas, ou seja, de espaços onde guardar bens arqueológicos.

A petição foi criada por Leonor Rocha, professora no departamento de história da Universidade de Évora, e sustenta que o conteúdo do documento proposto pela DGPC “constitui um grave incumprimento da lei”, nomeadamente a Lei de Bases do Património Cultural, de 2001. “Aponta para um recuo dos pressupostos da atividade arqueológica para os princípios do século XX”, lê-se.

Leonor Rocha disse entretanto ao Observador que os docentes de arqueologia da Universidade de Évora “estão contra” a proposta da DGPC e em breve pretendem enviar uma carta à ministra da Cultura.

A proposta alvo de contestação foi apresentada pela primeira vez há cinco meses e resulta de conclusões de um grupo de trabalho composto por sete pessoas: arqueólogos da DGPC e da Câmara de Lisboa, da Universidade Nova de Lisboa, da empresa ERA Arqueologia S.A. e um “arqueólogo independente”. O grupo de trabalho foi criado por proposta do Centro de Arqueologia da Câmara de Lisboa.

Na capital, há vestígios do passado ocultos no subsolo ou integrados nos edifícios, sendo disso exemplo a Casa dos Bicos, o Castelo de São Jorge, o parque de estacionamento do Largo de Camões ou a loja Garrafeira Napoleão, na Rua dos Fanqueiros, de acordo com informação publicada pelo município.

Questionada na quarta-feira sobre esta matéria, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, disse estar a par, mas recusou-se a comentar, remetendo para a DGPC. Também sem tomar posição, Paula Araújo da Silva afirmou que “é preferível haver orientações do que cada um fazer o que pensa ser melhor a determinado momento”, acrescentando que a DGPC “está atenta”.