Em 2011, Anna-Karin Karlsson desafiou a linha que separa um par de óculos e uma obra de arte. A marca, batizada com o nome da designer sueca, tornou-se uma das favoritas entre as estrelas. Lady Gaga, Rihanna, Kim Kardashian, Kylie Jenner e Grace Jones, para quem desenhou o modelo “When Trouble Came to Town”, são testemunhas deste gosto pelo aparatoso e pelo extravagante. Karlsson nunca olhou para o mundo com outras lentes, porque a carreira como criadora de eyewear independente tenha sido uma espécie de acidente percurso. Em Londres, a paixão pela moda ganhou uma especialização.

Das armações feitas à medida, em Old Bond Street, passou a conceber verdadeiras peças de joalharia. O ouro de 24 quilates é uma matéria-prima indispensável, trabalhada com minúcia em Itália e no Japão. Recentemente, Anna-Karin Karlsson lançou umas lentes especiais. Uma recriação do vidro de que são feitas as janelas de casa, para que os seus clientes possam ver o mundo exatamente como ela o vê quando está em pleno processo criativo. Um período de alguma clausura, como a própria contou na entrevista ao Observador.

Karlsson cresceu longe do glamour que envolve o mundo da moda. Ainda assim, os elementos de uma paisagem campestre estão por todo o lado, das hastes que reproduzem as patas de pássaros às abelhas e borboletas que lhe sobrevoaram a infância. Excêntrica, admite a dificuldade em olhar para o low profile. De passagem por Lisboa, a designer apresentou a sua primeira coleção de joias, sonho há muito cozinhado, assente na mesma ideia de exuberância que a fizeram vingar no mundo dos óculos.

“Monkey Business”, com armação banhada a ouro e 14 macacos aplicados à mão. Custam 1250 euros

Para a maioria, estas são peças aspiracionais, com preços que começam timidamente nos 300 euros e chegam aos 1.600, legitimados pelo brilho amarelo do ouro, por curvas e contracurvas barrocas e por pedras preciosas que, em Portugal, têm poiso exclusivo na loja Olhar de Prata, na Avenida da Liberdade. Em Lisboa, a criadora celebrou o lançamento e oito anos da marca, da qual continua a ser a única proprietária.

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Há uma semana, o Metropolitan Museum celebrou o camp, uma estética à qual o seu trabalho como designer não é, de todo, indiferente.
Bem, eu praticamente estou a fim de tudo o que é chamativo. Desde muito pequena que sou obcecada por tudo o que é fascinante. Tenho uma irmã 14 anos mais velha e ela era a rapariga mais glamorosa do mundo. Há pessoas que têm a Madonna no mundo, eu tenho a minha irmã. Ela usava grandes correntes e tudo o que não havia no sítio de onde vim, onde as coisas não eram muito glamorosas. Mas a minha cabeça sempre foi, desde que nasci.

Cresceu no campo. Não havia glamour nesse sítio?
Não, de todo. Era uma cidade industrial. Quando era pequena não havia internet, por isso, costumava ligar a televisão e esperar que os desfiles começassem. Quando estavam a começar, havia uma senhora sueca que falava e eu só tremia: ‘Desaparece, quero ver o desfile’. Ver aquilo, independentemente das marcas, era como ar fresco. Miúdos da minha idade não estavam nem aí para as marcas e eu dizia coisas do género: ‘Não, este ano vai ser completamente Dior’. A minha irmã costumava comprar-me maquilhagem dessas marcas. Não tinha roupa, mas tinha maquilhagem Yves Saint Laurent, era a única miúda na escola com maquilhagem Yves Saint Laurent. Por isso, comecei a viver essa realidade glamorosa muito cedo.

Anna-Karin Karlsson esteve em Lisboa para o lançamento da primeira coleção de joias © FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

E já nessa altura olhava para os acessórios de uma forma especial?
Tinha uns seis anos quando pedi os meus primeiros stilettos. Os meus pais não mos deram, como é óbvio. Mas eu pedia-os todos os dias. Quando fiz nove, tive os meus primeiros saltos altos. Eram azuis com picos de metal e, assim que os meus pais viraram costas, calcei-os e tentei ir para a escola com eles. Mas a minha mãe veio a correr a trás de mim: ‘Eu vi-te’. E eu: ‘Mas eles ficam tão bem com esta roupa. Vá lá, deixa-me levá-los’. E tinha uns sapatos tipo mocassins, com franjas e umas pérolas de vidro que faziam barulho quando andava. Lembro-me que quando tinha uns 11 anos, houve um dia em que quis ir toda de verde, então tinha umas calças verdes néon, uns sapatos verdes néon, um top verde néon com uma camisa verde néon por cima. Fui assim a uma festa, ninguém fazia isso. As pessoas reagiam do género: ‘Lá vem ela outra vez’. Mas eu precisava daquilo.

As pessoas costumavam vê-la como uma criança excêntrica, talvez até meio louca?
Acho que as pessoas do sítio de onde venho são também muito generosas e compreensivas, de certa forma. Quando já era mais velha, as reações até eram de expectativa, tipo: ‘Vamos ver o que é que a Karlsson leva para a escola hoje’. Eu simplesmente escolhi não encaixar num formato. Sabe como é, queria dar nas vistas.

Tinha um campo de morangos, como na música dos Beatles. De que forma é que esse cenário campestre influencia a sua estética hoje?
Sim, era nas traseiras de casa. Costumava levar para lá o meu pequeno-almoço, sentava-me e comia. E é possível encontrar vários símbolos da minha infância no meu trabalho. Todos os pássaros, referências a flores, a insetos, as joaninhas. Os diamantes, que eram uma coisa que desenhava muito quando era pequena. Há muito da minha vida em cada peça.

E já era uma apreciadora de óculos de sol nessa altura?
Sim. Uma amiga da minha mãe tinha voltado da Florida com 80 óculos de sol. Deu-lhos para ela os vender. A minha mãe guardou-os no armário e eu fui lá buscar uns para mim. Eram grandes, com detalhes dourados. Esses foram, provavelmente, os meus primeiros óculos de sol. Quando comecei a trabalhar com óculos, comprei o meu primeiro par verdadeiramente luxuoso, uns Christian Roth. Na primeira vez que os pus — e eles eram mesmo grandes, em acetato — percebi que as minhas bochechas pareciam estar mais para cima e que ficava muito melhor com eles do que sem eles. Foi aí que entendi o que era o design de óculos independente, as diferenças e aquele pequeno toque que dá ao rosto. Comprei-os depois de estar a trabalhar há alguns meses. Poupei para isso e andava sempre com eles.

Os icónicos “When Trouble Came To Town”, desenhados para Grace Jones

Ser uma designer de óculos é uma profissão, no mínimo, original. Foi a carreira que sempre quis seguir?
Não, de todo. Apesar de ter crescido muito ligada à moda, nunca tinha pensado em trabalhar em moda. Era um universo demasiado superficial e eu gostava de pensar em mim como alguém com um pouco mais de profundidade. Bem, tinha o plano de abrir uma editora discográfica. Nada a ver. Quando estava no segundo ano do curso de produção, para me tornar numa produtora musical, engravidei e tive de fazer algumas mudanças no plano que tinha traçado. Grandes mudanças, na realidade. Acabei a fazer óculos. Quando me mudei para Londres, quase por acidente, comecei a trabalhar numa das óticas mais antigas do mundo. Aí, fazia imensos óculos por medida. Os homens iam a Savile Row para fazerem os seus fatos e depois vinham ter comigo para lhes desenhar os óculos. Eu vinha de uma escola de artes, por isso não foi muito difícil. Nesse mesmo ano, mandaram-me a Paris para encontrar novos talentos para a loja de Old Bond Street. Tinha 20 anos quando fui pela primeira vez. Levava uma mala de dinheiro para comprar as melhores peças para vender em Londres. Ia, mas sentia que aquilo não era o meu trabalho.

Acabei por voltar para Suécia com o meu filho. Candidatei-me a alguns trabalhos, mas não correu muito bem. O meu currículo não era brilhante e eu estava a morar numa casa de campo no meio do nada, mas era a casa que os meus pais tinham disponível. Estava ali, não tinha emprego, não tinha dinheiro, era mãe solteira. Senti que não estava onde devia estar. Nessa altura, há cerca de nove anos, comecei a pensar como é que podia chegar a esse lugar rapidamente. Aí, fiz um mapa — tinha 365 dias para me tornar bem sucedida. Prometi a mim mesma que ia trabalhar 20 horas por dia durante esse período. Porque tempo era a única coisa que tinha, não tinha dinheiro. Tracei o plano e esse ano foi bastante louco. Fui aceite para mostrar o meu trabalho na Semana da Moda de Paris. Fui nomeada para os prémios de moda suecos. Se sempre quis ser designer de óculos? Não. Mas tracei o plano e sempre soube que tinha de ser muito boa a fazer alguma coisa, fosse música ou design. O plano resultou.

Portanto, seguir uma carreira na música também foi uma possibilidade.
Sim, foi uma possibilidade. Na altura, houve qualquer coisa que me disse que isto ia funcionar a partir do momento em que começasse. O primeiro protótipo que fiz foi destacado numa revista. Pensámos: ‘Bem, isto funciona’. Escrevi a todos os editores e jornalistas. Não tive vergonha, pensei: ‘Vou contactar mil, pelo menos dois hão-de responder’. A V Magazine ligou-me, a Vogue ligou-me. Na música isso não acontece assim tão facilmente. Mas sim, poderia ter sido uma coisa ou outra. Mas, na verdade, foi a moda a dizer-me: ‘Bem-vinda a casa, minha criança há tanto tempo perdida’. Mas também não desisti de gravar as minhas músicas que poderão aparecer mais cedo ou mais tarde. Há tantas coisas que acho que tenho de fazer na vida que, recentemente, resolvi parar de me pressionar. Mas sim, da mesma forma que há óculos, também à canções em mim.

A loja Olhar de Prata, em Lisboa, onde podem ser encontradas as peças de joalharia da designer sueca © FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Lembra-se desse primeiro protótipo de que falou?
Hoje, tenho um homem em Inglaterra que esculpe à mão as peças que desenho. Mas a certa altura, tive do procurar ajuda na produção e percebi que tinha de ir a Paris. Fui, dormi no chão da casa de um amigo, estive numa exposição e percebi que tinha de falar com uma empresa especificamente. Entrei numa sala onde havia imensa gente a discursar e disseram-me: ‘Bem, devia estar no palco’. Subi ao palco com uma caixa que me deram. Foi surreal. Quando abri a caixa, saiu uma borboleta mecânica a voar. E havia um senhor asiático a sorrir para mim. Fui lá e disse-lhe: ‘Olá, você é a pessoa com quem preciso de falar. Esta empresa é sua, não é?’. E era, de facto. Disse-lhe que criava óculos de luxo, que estava a resultar e mostrei-lhe o artigo que tinha saído na Elle há uma semana. Ele disse: ‘Ok. Vou ajudá-la’. Disse-lhe que não tinha muito dinheiro e ele respondeu que isso se resolvia. Foi como começou. Esses primeiros protótipos chegaram alguns meses depois. Eu tinha enviado todos os meus desenhos para Hong Kong e quando os protótipos chegaram eram a minha vida toda. Além do meu filho, claro, aqueles óculos eram tudo. Na realidade, enfiei-os na cama e dormi com eles. O meu futuro era aquilo, não conseguia relaxar nem por um segundo.

Diria que a passagem por Londres foi o momento que desbloqueou esse talento?
Londres tem muitos lados diferentes. Eu já era muito criativa antes de ir para Londres. Londres fez-me ter de trabalhar, ter uma disciplina. Não importava o que acontecia, tinha de ir trabalhar. E obviamente foi onde aprendi tudo sobre óculos. É por isso que hoje estou tão confortável com a estrutura e com a forma como uns óculos têm de assentar que, literalmente, posso pôr bananas numa peça e saber que eles serão mais confortáveis do que quaisquer outros óculos com bananas. Também me senti muito livre em Londres. Ninguém reagia muito à minha aparência, a não ser as pessoas que me elogiavam e me convidavam para festas. Mas isso é porque, na verdade, visto-me sempre como se fosse para uma festa. Sinto muitas coisas diferentes em relação a Londres. Mas às vezes é assim: quando te apaixonas por alguma coisa, precisas de fazer um intervalo.

As peças têm um design muito próprio. Como é que consegue desenhar uma coleção sem perder a coerência?
Eu tenho visões e desenho-as. Desta vez, está tudo um pouco atrasado, mas tenho esta necessidade de sentir as coisas. Tenho de sentir e de ser honesta comigo própria. Ainda não surgiu, por isso sim, estou atrasada no trabalho criativo. Tenho de me sentar e pensar em desenhar óculos de mulher e óculos de homem e esse não tem sido, propriamente, o meu processo até aqui, muito baseado no que é preciso. Mas está a chegar, só preciso de um pouco mais de tempo. Tenho de estar num lugar sossegado e sozinha. Aí começo a ver coisas.

O colar “The Bug”. Custa 1450 euros

O que é que uns óculos podem dizer da personalidade de alguém, dos mais simples aos mais luxuosos?
Provavelmente, não vou reparar nos mais simples. Nem sempre reparo nas coisas simples, é o que é. É terrível da minha parte, mas sou assim. Com os óculos, se alguém usa algo divertido isso simplesmente deixa-me feliz. Se forem os meus óculos, então fico extremamente feliz. Também posso reparar: ‘Ah, são uns Dior de 1989’. Conheço-os bem, costumava comprá-los para lojas. Também posso encontrar um amigo que não vejo há muito tempo e perceber que ele não sabe o que está a fazer. Infelizmente, tenho algumas opiniões sobre os óculos que as pessoas usam. Quem me dera ser melhor do que isto e achar que toda a gente está ótima, mas não. Até podia achar isso se as pessoas tirassem tempo para fazer melhores escolhas, com significado. Se visse uns Christian Roth dos anos 90, aí pensaria que aquela pessoa tinha acertado. Mas julgo sempre os óculos, não as pessoas.

Como é que funciona o processo criativo? É uma sonhadora ou uma metódica?
Uma sonhadora, em relação a tudo. Tudo o que faço e afetado pelos meus sentimentos e sonhos. Tenho de sentir. Acontece com as pessoas com quem trabalhamos. A rapariga da campanha é a Rosanna [Plüss], uma artista sueca. Apareceu-me no Facebook como sugestão de amiga. Dissemos: ‘É a rapariga’. Da campanha aos óculos, tenho de sentir. Sonhar e sentir e tudo.

Atualmente, trabalha apenas nas suas coleções ou continua a fazer peças personalizadas?
Sim, no caso de alguém que vai trazer imensas atenções ou de um cliente com muito dinheiro. Com a Rihanna, por exemplo, a primeira vez foi através do stylist dela. Disseram-me: ‘Vamos ter a Rihanna aqui amanhã. Podes estar em Londres?’. E eu: ‘Claro, estou a voar para aí’. Na verdade, estava numa reunião de negócios e tive de dizer: ‘Senhores, tenho de ir ter com a Rihanna’. Parecia a mulher mais louca à face da terra, mas ela acabou mesmo por usar óculos nossos e foi fantástico. A Gaga estava na Suécia e temos uma amiga em comum. Acontece por diferentes motivos, mas são quase sempre os stylists que nos procuram. A Kylie Jenner, por exemplo, compra as coisas dela, então simplesmente aparece a usar os nossos óculos. É muito empolgante. Adoro a Grace Jones. Não a vi durante anos e de repente fiz uns óculos para ela. Um dia ela estava no estúdio e a Bea Akerlund, uma stylist, identificou-me numa fotografia. Na altura só fiz três exemplares — um para mim, um para a Bea e outro para a Grace Jones.

Enquanto dona de uma marca, também tem de pensar no negócio e em vender óculos. Como é que equilibra isso com a sua liberdade criativa?
Costumava seguir apenas o meu coração, o que continuo a fazer. Mas entretanto, percebi que é muito mais divertido quando as peças são vendidas e as pessoas andam com elas na rua. Temos uma colega na equipa, por quem normalmente os meus desenhos passam antes de irem para a produção. E ela comenta: ‘Ah, isto é interessante. Têm a certeza de que vamos produzir isto? Lembram-se de quando fizemos aqueles? Não venderam lá muito bem. Lembram-se de como foi?’. Possivelmente, gerimos isso com alguma edição, sim. Mas o mais difícil é ter alguém a pedir-me para desenhar uma coisa simples porque vendeu muito bem. Porque aí, passamos a ter apenas um produto.

Óculos e joias — a campanha da nova coleção Anna-Karin Karlsson

E agora uma coleção de joias. Já está a trabalhar nela há muito tempo?
Foi um processo de design que levou muito tempo, com muitos componentes novos e materiais que não conhecíamos. Foi completamente diferente do que estávamos habituados a trabalhar, anos a desenvolver estas peças.

Entretanto, o ouro de 24 quilates tornou-se numa espécie de imagem de marca. Mas quando começou não era propriamente muito consensual, pois não?
Bem, acho que antes de eu começar havia um monte de óculos aborrecidos. Depois, algumas das grandes marcas aproximaram-se muito depressa dos meus desenhos. Muitos desses designers candidataram-se aos mesmos empregos que eu e, pouco tempo depois, já estava a lançar as minhas próprias peças no mercado. Sim, mudei um pouco as coisas, embora já outras pessoas tivessem feito óculos excêntricos antes de mim. Mas acho que os tornei mais bonitos e mais poéticos. Pelo menos, espero tê-lo feito.

Qual a sensação de ver outras marcas e designers a lançarem óculos muito parecidos com os seus?
Não é uma boa sensação. Sinto mesmo que me estão a roubar. Dá vontade de pegar no telefone e de dar a minha morada para me enviarem o cheque. Já os amaldiçoei muitas vezes, mas parei e percebi que é só um incentivo para fazer um trabalho cada vez melhor.

Qual o maior elogio que já fizeram ao seu trabalho?
Acho que foi algo que um jornalista espanhol escreveu, mesmo quando comecei. Era um artigo longo, mas tão bom. Dizia que tinha vindo mudar o mundo dos óculos e que a minha coleção deixava os olhos com lágrimas. Era algo deste género. Na verdade, o meu objetivo é tornar o mundo mais bonito. E para isso, o que posso fazer mais, além de criar coisas que vão tornar o mundo mais bonito?