Três treinadores, dois grandes insucessos, um enorme ponto de interrogação sobre o futuro. Depois do terceiro lugar alcançado no Mundial de 2014, onde perdeu nas grandes penalidades com a Argentina nas meias-finais antes de vencer o Brasil pelo último lugar do pódio, a Holanda entrou numa espiral recessiva por andar longe dos resultados e até da própria identidade que a tornou conhecida um pouco por todo o mundo. Nem era preciso ser uma “Laranja Mecânica” como foi outrora mas durante quatro anos, com o Europeu de 2016 e o Mundial de 2018 vistos do sofá, o filme andou entre comédia, drama e terror, com Guus Hiddink, Danny Blind e Dick Advocaat a terem pouca ou nenhuma capacidade de inverterem a situação. Depois, e como recuperava com propósito o The Telegraph esta semana, a equipa holandesa recuperou o seu mojo.

Holanda vence Inglaterra no prolongamento e vai jogar final da Liga das Nações com Portugal

Foi por causa da chegada de Ronald Koeman ao comando da seleção? Também mas não só. Foi por causa de uma nova geração que chegou finalmente ao patamar sénior e começa a preparar-se para tentar marcar a próxima década? Também mas não só. A BBC recuperou uma frase que está exposta na entrada da sede da Federação Holandesa de Futebol, em Zeist, e que foi dita um dia pela grande inspiração de todo o futebol nacional, europeu e mundial, Johan Cruyff: “Jogar futebol é uma coisa simples, jogar um futebol simples é a coisa mais complicada”. A Holanda conseguiu-o mas de uma forma diferente daquela que a levou ao estrelato – depois da era Cruyff, Neekens e companhia que foi duas vezes vice-campeã mundial e do período Van Basten-Gullit-Rijkaard e restantes estrelas (como Koeman) que se sagraram campeões europeus, agora a referência não ataca nem cria.

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Virgil Van Dijk chegava a este Holanda-Inglaterra com 64 encontros consecutivos sem sofrer um único drible. Isso mesmo, 64. E pelo meio não só comandou o Liverpool a um inglório segundo lugar na Premier League com 97 pontos tendo a defesa menos batida como liderou a equipa de Jürgen Klopp na vitória na Liga dos Campeões 14 anos depois. Cinco dias após essa final em Madrid onde voltou a estar imperial, o defesa assumiu de novo papel de destaque na meia-final da Liga das Nações. Não só pelos cortes, não só pelas bolas ganhas pelo ar, mas sobretudo pela liderança: aos 27 anos, o jogador que passou ao lado de todas as grandes formações holandesas quando era mais novo comanda um conjunto com muito talento e é a trave que aguenta os mais novos quando falham, como se viu no abraço e nas constantes conversas com De Ligt na primeira parte depois de um erro crasso do central do Ajax. Também por isso, esta é a era de Van Dijk. E parece ter vindo para ficar. Não se destaca como Depay nem é cerebral como De Jong mas tudo faz sentido no meio-campo e no ataque partindo de si na defesa.

Do lado da Inglaterra, que voltou a cair num prolongamento (3-1) depois da derrota no Mundial com a Croácia, há um grande mérito no presente e uma enorme dúvida para o futuro. Mesmo tendo sofrido dois golos no tempo extra por não querer abdicar da identidade de jogo que implementou na seleção, Gareth Southgate teve o mérito de agarrar num lote de jogadores com muita qualidade e trabalhar uma filosofia que poderá ser aplicada aos talentos das gerações mais novas que se têm destacado nas principais competições europeias e mundiais. No entanto, parece demasiado dependente em alguns momentos de jogadores em posições chave, como se viu na importância de Henderson quando entrou no meio-campo. Esse é o duplo passo ainda em falta na ideia do antigo central britânico: adaptar o coletivo aos momentos do jogo e não ficar refém de características individuais.

Ficha de jogo

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Holanda-Inglaterra, 3-1 (a.p.)

Meia-final da Liga das Nações

Estádio Dom Afonso Henriques, em Guimarães

Árbitro: Clément Turpin (França)

Holanda: Cillessen; Dumfries, De Ligt, Van Dijk, Daley Blind; De Roon (Van de Beek, 68′), Wijnaldum, Frenkie De Jong (Strootman, 113′); Bergwijn (Pröpper, 91′), Memphis e Babel (Promes, 68′)

Suplentes não utilizados: Vermeer, Bizot, Hateboer, Aké, Van Aanholt, De Vrij, Vilhena e Luuk de Jong

Treinador: Ronald Koeman

Inglaterra: Pickford; Kyle Walker, Stones, Maguire, Chilwell; Rice (Dele Alli, 106′), Delph (Henderson, 77′), Barkley; Sterling, Jadon Sancho (Lingaard, 61′) e Rashford (Harry Kane, 46′)

Suplentes não utilizados: Butland, Heaton, Rose, Eric Dier, Joe Gomez, Keane, Alexander-Arnold e Wilson

Treinador: Gareth Southgate

Golos: Rashford (32′, g.p.), De Ligt (73′), Kyle Walker (97′, p.b.) e Promes (114′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a De Ligt (30′), Dumfries (45′), Harry Kane (70′) e Van de Beek (106′)

Com Southgate a prescindir de todos os elementos que participaram na final da Champions (Henderson, Dele Alli, Harry Kane, Alexander-Arnold, Danny Rose, Eric Dier e Gomez) mas sem uma relação causa-efeito direta, foi a Holanda que esteve melhor na meia hora inicial, aproveitando (e forçando) a incapacidade dos britânicos em sair com bola controlada a partir da primeira fase de construção. Bergwijn, num lance onde fletiu da direita para o centro para fugir a Maguire antes de rematar para defesa segura de Pickford (7′), e Depay, numa jogada parecida mas a sair da esquerda para nova intervenção do guarda-redes britânico (20′), tiveram as únicas oportunidades num encontro repartido mas com maior ascendente dos holandeses.

Um erro de De Ligt acabou por mudar a tendência do encontro: passe atrasado de De Roon, mau domínio de bola do central do Ajax, recuperação de Rashford na área e falta para grande penalidade clara que ninguém protestou. O avançado do Manchester United, que nos últimos sete jogos marcou quatro golos (mais do que em todas as internacionalizações anteriores), não perdoou e fez o 1-0 em Guimarães quando a Inglaterra não tinha feito sequer um remate até esse minuto 32. Pouco depois, primeira saída de qualidade com a bola a entrar bem no meio-campo antes de Jadon Sancho passar com um túnel por De Ligt e criar mais um lance promissor; a seguir, Delph, num remate de ressaca após bola parada, atirou forte para defesa de Cillessen (42′). Tudo corria mal nesse período à Holanda e ao próprio De Ligt, que teve ainda uma boa oportunidade para empatar nos descontos antes do intervalo mas cabeceou ao lado quando estava em boa posição após canto da direita.

Ao intervalo, Rashford, um dos jogadores ingleses que não tinha falhado um passe sequer ao longo dos primeiros 45 minutos (os outros foram os médios Rice e Delph), ficou nos balneários por lesão e entrou para o seu lugar Harry Kane. A Inglaterra ganhou outros argumentos na frente do ataque, com um jogador menos móvel mas mais forte e a servir de referência, e Sancho aproveitou os movimentos de arrastamento provocados pelo goleador do Tottenham para surgir na área sozinho com tudo para fazer o 2-0, num lance que ficou nas mãos de Cillessen. Pouco depois, Kyle Walker teve um erro parecido com o de De Ligt embora mais longe da área, Depay ganhou a bola mas o remate de longe foi travado por Pickford (55′).

No entanto, a melhor entrada da Inglaterra não teve continuidade muito por culpa da falta de capacidade que o meio-campo britânico tinha para continuar a levar bola até às unidades mais adiantadas. Quase de forma inconsciente, as linhas baixavam. E baixavam. E baixavam. Tanto que a Holanda precisava apenas de circular a bola em velocidade aproveitando a mobilidade do jogo entre linhas para se aproximar com objetividade da baliza de Pickford. À entrada do último quarto de hora, De Ligt, como que corrigindo o erro no golo inglês (e o sinal que fez nas celebrações junto dos adeptos holandeses apontou muito nesse sentido…), fez o empate: canto na direita batido com o arco contrário por Depay e aparecimento do central ao primeiro poste para desviar de cabeça para ao 1-1, em mais um lance de estratégia com muito trabalho à mistura (73′). De Ligt, sempre apoiado por Van Dijk, parecia outro e, cinco minutos depois, tirou de carrinho um golo que parecia feito a Kane na área.

Tudo empatado na parte final do tempo regulamentar, até porque quando isso foi contornado entrou o VAR em ação: na melhor jogada do encontro, com Stones a arriscar jogar a partir da sua área com um passe longo para Chilwell antes de toda uma boa combinação ofensiva que isolou Lingaard, o avançado do Manchester United ainda marcou mas estaria ligeiramente adiantado (e ligeiramente é mesmo muito ligeiramente, num lance de decisão complicada) e o golo foi anulado a oito minutos do final. Já com Henderson e Van de Beek em campo, o jogo estava bom, partido e recomendava-se: a Inglaterra, que tinha conseguido o equilíbrio em falta no meio-campo, podia ter marcado por Kane e Sterling; a Holanda, que tinha conseguido a criatividade em falta no meio-campo, podia ter marcado por Depay e Promes. No entanto, tudo ficou adiado para o prolongamento.

Depois de uma longa época onde muitos dos jogadores chegaram ou passaram os 50 encontros oficiais, as pernas, ou a falta delas para responderem ao que a cabeça pensava, acabaram por ter muita influência no desfecho final. Aliás, por alguma razão os jogadores, quando dão entrevistas, explicam muitas vezes que não conseguiram fazer melhor em determinado momento de uma partida porque a falta de frescura tira lucidez e capacidade de decisão. Essa foi a felicidade da Holanda, esse foi o maior demérito da Inglaterra: em dois lances muito parecidos, primeiro com John Stones como principal protagonista e depois com Ross Barkley a borrar também a pintura de uma exibição muito interessante, Kyle Walker (na própria baliza, 97′) e Quincy Promes (114′) fizeram o 3-1 final que premiou a boa entrada em campo do avançado do Sevilha e colocou o conjunto de Ronald Koeman na primeira decisão de sempre da Liga das Nações frente a Portugal, no Dragão.