Há cerca de um ano, Portugal e a Europa no geral acordaram para um fenómeno chamado Taça Libertadores. Os motivos, porém, não eram os melhores. Na antecâmara de uma final mediática, por ser entre dois clubes de Buenos Aires que partilham há décadas uma rivalidade intensa e acesa, o autocarro do Boca Juniors foi apredrejado por adeptos do River Plate à chegada ao Monumental, na capital argentina. Depois de dias de indefinição, o jogo decisivo foi adiado e recolocado para o Santiago Bernabéu, em Madrid, na Europa.

O cenário de violência e instabilidade que levou ao adiar do segundo jogo da final — até à edição de 2019, a final foi disputada a duas mãos — trouxe uma atenção progressiva, crescente e latente à principal competição de clubes da América do Sul. De repente, toda a gente sabia explicar que se tratava da Liga dos Campeões daquele continente. Toda a gente sabia explicar que era ali que se encontravam e descobriam muitos dos jogadores sul-americanos que acabavam por vir parar às ligas europeias. E toda a gente sabia explicar o quão importante era o facto de o River Plate ter vencido o rival Boca Juniors e chegado à quarta conquista do próprio palmarés.

Ficha de jogo

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Flamengo-River Plate, 2-1

Final da Taça Libertadores

Estadio Monumental “U”, em Lima, no Peru

Árbitro: Roberto Tobar (Chile)

Flamengo: Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí, Filipe Luís, Arão (Vitinho, 86′), Gerson (Diego, 66′), Éverton Ribeiro, Arrascaeta (Piris da Motta, 90+4′), Bruno Henrique, Gabigol

Suplentes não utilizados: César, Rodinei, Rhodolfo, René, Vinícius Souza, Reinier, Lincoln, Thuler, Berrio

Treinador: Jorge Jesus

River Plate: Armani, Montiel, Martínez Quarta, Pinola, Casco (Paulo Díaz, 77′), Nacho Fernández (Álvarez, 69′), Enzo Pérez, Palacios, De la Cruz, Borré (Lucas Pratto, 75′), Suárez

Suplentes não utilizados: Enrique Bologna, Rojas, Gallardo, Angileri, Carrascal, Quintero, Santiago Sosa, Ponzio, Scocco

Treinador: Marcelo Gallardo

Golos: Borré (15′), Gabigol (89′ e 90+2′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Casco (30′), a Suárez (45+1′), Pablo Marí (55′), Enzo Pérez (71′), Rafinha (80′), Gabigol (90+2′ e 90+5′); cartão vermelho direto a Palacios (90+6′); cartão vermelho por acumulação a Gabigol (90+5′)

Passou praticamente um ano. Desta vez, os dois clubes argentinos encontraram-se nas meias-finais e não abriram espaço a uma reedição da final totalmente argentina. Desta vez, e felizmente, não existiram cenários de violência e instabilidade nos dias que antecederam a final. Mas desta vez, nunca Portugal olhou com tanta atenção para uma final de uma competição de clubes não europeia. Desta vez, ao leme do Flamengo, Jorge Jesus podia tornar-se apenas o segundo treinador europeu da história a conquistar a Libertadores e o segundo treinador da história a levar o clube brasileiro a essa mesma glória.

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Quando o treinador português chegou ao Brasil, durante o verão, o Flamengo já tinha deixado para trás a fase de grupos, onde ficou em primeiro num conjunto que também tinha o Quito do Equador, o Peñarol do Uruguai e o San José da Bolívia. Jesus ultrapassou os oitavos de final perante o Emelec, os quartos com o Internacional e as meias-finais com o Grémio, onde eliminou a equipa de Renato Gaúcho com um impressionante 0-5 na segunda mão. Este sábado, em Lima, no Peru — depois de mais uma alteração de local, já que o jogo estava marcado para Santiago do Chile mas a instabilidade política e social na capital chilena não permitiu a realização da final –, o Flamengo chegava à segunda final da Libertadores da própria história e tinha uma oportunidade de ouro para chegar também à segunda conquista da Libertadores da própria história. Para trás, ficava a memorável geração de 1981, liderada por Zico, que levou o clube à glória continental ao vencer o Cobreloa na final há 38 anos.

Pela frente, porém, Jorge Jesus tinha o campeão em título River Plate, que com Marcelo Gallardo procurava chegar à conquista da segunda Libertadores consecutiva e da quinta do clube a nível global. O treinador português, que ao longo de mais ou menos seis meses se tornou um autêntico ídolo no Rio de Janeiro, vivia também este sábado um dos dias mais importantes da carreira, onde podia também garantir o título mais importante da carreira. Com o Cristo Redentor vestido com uma enorme camisola do Flamengo na cidade carioca, existia em Lima uma certeza: em cenário de vitória dos rubro-negros, o Brasil deixava de estar a viver no ano dois e mil e dezanove e passava automaticamente a cumprir o ano dois mil e Jesus.

Marcelo Gallardo abriu o jogo ainda durante a conferência de imprensa, revelando de véspera o onze inicial do River Plate quando questionado sobre possíveis alterações táticas, e Jorge Jesus respondeu na mesma moeda ao indicar desde logo quais seriam os titulares da equipa brasileira. Nenhum dos treinadores fez bluff e ambos apresentaram os respetivos conjuntos na máxima força, com o português a repor a titularidade de vários indiscutíveis depois das poupanças feitas na semana passada contra o Grémio. No início da partida, perante um Monumental de Lima totalmente lotado e a respirar aquilo que é a Libertadores, Flamengo e River Plate estavam apostados em lutar pela vitória com todos os recursos disponíveis.

Os primeiros minutos de jogo trouxeram duas equipas em aparente estudo mútuo, com a bola muito dividida na zona do meio-campo. Bruno Henrique fez o primeiro remate da partida, ainda que muito ao lado, mas a verdade é que foram os argentinos a assumir um maior controlo dos desígnios do encontro com o passar dos minutos. Com uma pressão muito intensa e bastante eficaz, que colocava sempre mais do que um jogador a procurar desarmar o adversário, o River Plate foi estagnando a construção brasileira e conseguiu colocar-se em vantagem ao passar do quarto de hora inicial: com o primeiro remate enquadrado do jogo, Santos Borré aproveitou um erro de comunicação entre Arão e Gerson, que falharam a interceção a um cruzamento fraco de Fernández depois de uma perda de bola de Filipe Luís. O avançado colombiano atirou de pé direito e de primeira na grande área e bateu Diego Alves, deixando os adeptos argentinos ao rubro (15′).

Depois do golo sofrido, o Flamengo tentou reagir e controlou de forma superior a posse de bola. Ainda assim, a equipa de Jorge Jesus não conseguia transformar essa percentagem em oportunidades ou lances de perigo, já que falhava a grande maioria dos passes verticais ou era desarmado pela impressionante pressão argentina. Quando Arão se juntava aos centrais para tentar ganhar superioridade na fase de construção, algo que é um movimento habitual na equipa do Rio, Fernández pressionava mais alto e mais por dentro e repunha o três para três; quando Gerson tentava ser mais influente na ligação entre o setor intermédio e o mais adiantado, algo que só começou a acontecer na segunda metade da primeira parte, De La Cruz juntava ao meio e não permitia a mobilidade de Arrascaeta ou Éverton para receber a bola.

No meio de tudo isto, o quarteto ofensivo do Flamengo — Éverton Ribeiro, Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol — estava totalmente escondido entre a bem organizada defesa do River Plate. A equipa de Marcelo Gallardo, principalmente depois de estar em vantagem, procurava sempre explorar as costas da linha defensiva brasileira com passes a rasgar e de desmarcação que apanhavam Rafinha e Filipe Luís descompensados. Os argentinos, mesmo com menos de posse de bola, iam conseguindo ser mais perigosos do que o adversário, já que chegavam à grande área de Diego Alves com dois ou três passes e o Flamengo não o conseguia fazer mesmo depois de largos segundos com a bola controlada. Na ida para o intervalo, a equipa de Jorge Jesus ainda não tinha feito qualquer remate enquadrado com a baliza, estava a perder o duelo tático e estava a jogar contra uma equipa que já só tinha como objetivo resguardar uma vantagem valiosa que podia tornar-se decisiva.

Na segunda parte, o Flamengo voltou sem alterações mas a aparentar uma atitude mais intensa, beneficiando principalmente de um subir de rendimento de Gerson que foi notório nos últimos dez minutos antes do intervalo. O médio brasileiro, que funciona enquanto pêndulo da equipa, era de longe o melhor elemento do conjunto de Jesus e o principal motor dos escassos desequilíbrios que os rubro-negros conseguiam causar. Ainda assim, a entrada mais positiva do Flamengo em jogo foi também corroborada pelo primeiro remate à baliza, por intermédio de Gabigol (47′), que deixava adivinhar que o clube do Rio não iria vender barata a derrota na final da Libertadores.

O maior ascendente brasileiro, também aliado a um claro desgaste físico do River, que não estava a conseguir manter a intensidade aplicada na primeira parte, acabou por culminar na primeira verdadeira oportunidade de golo do Flamengo. Bruno Henrique arrancou na esquerda e assistiu Gabigol já dentro da grande área, mas o avançado rematou contra um defesa adversário e, na recarga, Éverton Ribeiro atirou para Armani encaixar (57′). A equipa de Jorge Jesus ia procurando de forma mais frequente as transições diretas e por vezes pelo ar, para escapar à bem montada primeira linha de pressão argentina, mas tinha dificuldades na hora do último passe e na definição do rumo dos ataques. A perder a 25 minutos do final e sem fluxo ofensivo suficiente para chegar ao empate, o treinador português acabou por sofrer mais um revés, quando Gerson — que estava a ser, sem sombra de dúvidas, o melhor da equipa — teve de ser substituído por Diego devido a dificuldades físicas.

Marcelo Gallardo refrescou a equipa com três substituições muito próximas umas das outras — a última, com a entrada de Paulo Díaz para o lugar de Casco, foi a assunção clara de que a prioridade era nesta altura defender e gerir e não atacar e procurar engordar o resultado. O Flamengo privilegiava a faixa esquerda do ataque e era por isso que Arrascaeta, normalmente tombado na ala direita da equipa, passou no último quarto de hora a jogar mais por dentro, para tentar atrair a linha intermédia do River e soltar espaço às arrancadas de Bruno Henrique. Jorge Jesus demorou a voltar a mexer na equipa (só o fez a cinco minutos dos 90′, quando lançou Vitinho), o Flamengo beneficiou de vários lances rápidos e de superioridade numérica mas ia falhando sempre na hora da decisão. O momento do milagre, o momento por que milhares esperavam em Lima, no Rio de Janeiro, em Portugal e um pouco por todo o mundo, apareceu já perto dos 90′.

Bruno Henrique surgiu pelo corredor esquerdo, tal como havia feito em toda a segunda parte, serviu Arrascaeta e o avançado serviu Gabigol ao segundo poste, com o avançado brasileiro a encostar para empatar a partida (89′). Com um River Plate totalmente desorganizado e destroçado, apanhado de surpresa pelo golo sofrido numa altura em que já só pensava na festa, Gabigol conseguiu segurar uma bola longa levantada a partir de trás, suportou a pressão dos centrais argentinos e atirou para o segundo golo, para a reviravolta e para a conquista da Taça Libertadores (90+2′). O avançado brasileiro acabou expulso por acumulação de amarelos, Palacios viu vermelho direto por agredir Bruno Henrique e depois do segundo golo dos brasileiros já pouco se jogou.

Com uma remontada inacreditável em três minutos e já em cima do apito final, o Flamengo conquistou a Taça Libertadores 38 anos depois da última vez: precisamente 38 anos depois de Zico e companhia conquistarem a mesma competição pela primeira vez na história do clube do Rio do Janeiro. Com muitas dificuldades contra uma equipa mais experiente nestas andanças, a perder durante quase toda a final, o Flamengo assentou na alma e no coração de Jorge Jesus para chegar ao impossível. No Brasil, vive-se a partir deste sábado o ano de dois mil e Jesus.