Lionel Messi conseguiu em 2012 na passagem do Barcelona frente ao Bayer Leverkusen, Cristiano Ronaldo repetiu o feito em 2017 nos triunfos do Real Madrid diante do Bayern. Até à presente temporada, só dois jogadores tinham conseguido marcar cinco ou mais golos numa só eliminatória da Liga dos Campeões – um recorde que quase não é recorde porque são mais extraterrestres do que jogadores quando chegamos aos registos individuais que somaram ao longo da carreira. Depois, apareceu um tal de Ilicic. Podia ser Lewandowski, Neymar, Mbappé, Benzema ou um qualquer outro que se queira intrometer numa luta circunscrita a dois ao longo de década e meia mas não, foi um esloveno de 32 anos não muito conhecido da alta roda do futebol europeu. Há não muito tempo, uma Final Eight da Liga dos Campeões falava de muito menos dele; agora, falava-se dele e muito menos dos outros.

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O herói da Atalanta nos oitavos com o Valencia, somando ao golo apontado na goleada da primeira mão em San Siro por 4-1 mais um póquer no Mestalla (4-3), era a principal ausência dos transalpinos no encontro inaugural dos quartos da competição que se vai disputar a partir de agora em Lisboa. Aliás, foi quase como se a sua época tivesse terminado nesse encontro em Espanha, o último da paragem por causa da pandemia – se até aí levava 21 golos em 29 jogos oficiais entre Serie A, Taça de Itália e Champions, a partir desse momento não jogou muito (apenas cinco partidas) e nem conseguiu marcar mais. Se existe um exemplo paradigmático do impacto que o novo coronavírus e o confinamento tiveram nos atletas de alta competição, ele tem um nome: Ilicic. E o jogo também era por ele.

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Depois do empate em Turim em Juventus, na 32.ª jornada de um Campeonato que então estava mais longe de ficar resolvido até pela recuperação da Atalanta, o avançado não mais voltou a jogar. Primeira explicação: uma lesão no tornozelo que deveria ser bem debelada tendo em vista também o final da temporada. Segunda explicação: teve necessidade de ir à Eslovénia resolver problemas pessoais. Terceira explicação: não houve. Mas não houve na fase em que os responsáveis admitiam que contar com o internacional frente ao PSG era uma utopia. De acordo com a imprensa transalpina, Ilicic estaria a passar por uma depressão, podendo mesmo reconsiderar a continuidade no futebol tal como fizera há dois anos, numa primeira instância após a morte súbita de Davide Astori quando uma inflamação bacteriana nos gânglios linfáticos lhe provocou um grave problema de saúde que o deixou em risco de vida. O clube manifestou o total apoio ao jogador e não forçou qualquer regresso precoce, percebendo o problema em causa. Também por ele, este era o jogo de uma vida para o conjunto de Bérgamo.

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A imagem de todo o plantel junto com a camisola de Ilicic no final do encontro que até acabou com a derrota frente ao Inter, que impediu um histórico segundo lugar na Serie A, mostrou bem o espírito vivido pelo conjunto de Gian Piero Gasperini. O técnico construiu ao longo de quatro anos uma autêntica máquina ofensiva de futebol, apoiada numa ideia de jogo muito assente no papel dos alas e da relevância das três unidades atacantes, com e sem bola. Ao todo, foram 115 golos em jogos oficiais na presente temporada – 98 na Serie A, um registo que já não se via desde a Juventus campeã em 1958. A isso juntou-se a identidade regional que rejuvenesceu um clube que levou mais de 40 mil adeptos a Milão para ver o jogo com o Valencia em San Siro. Agora, por todas as razões conhecidas e pela forma como a pandemia afetou a cidade de Bérgamo, o David entrava com uma motivação de Golias.

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“Estarmos nesta fase significa que não vamos perder: ou ganhamos ou aprendemos. Mostrámos que mesmo sem grande reputação e grandes investimentos é possível chegar longe na Liga dos Campeões com outros valores: entusiasmo, qualidade e sacrifício. Esses recursos são ilimitados, disponíveis para todos. Acho que as pessoas gostam disso. Vamos tentar não desiludir. Estamos também conscientes da expectativa que existe para este jogo e pela paixão que Bérgamo sempre teve pela Atalanta, ainda para mais depois de toda a tragédia que aconteceu. Carregamos os sentimentos das pessoas connosco. Queremos que Bérgamo se orgulhe de nós e, se possível, queremos dar um sorriso à cidade”, resumiu Gian Piero Gasperini na antevisão do encontro do PSG.

Do lado dos franceses, a tarefa inglória de ser favorito nuns quartos da Champions onde tudo deveria ser aberto e uma sensação que foi sendo expressa sobretudo na imprensa gaulesa de que uma vitória era quase o cumprir de uma obrigação e uma derrota seria o equivalente a mais uma temporada falhada. Nas finais ganhas da Taça de França e da Taça da Liga, frente a Saint-Étienne e Lyon, o PSG mostrou uma organização defensiva mais estável do que tinha acontecido até esse momento, ainda antes de uma longa paragem desde março depois do cancelamento da Ligue 1, ao contrário do que aconteceu nas outras principais ligas europeias. Depois, a ideia era fazer brilhar as unidades ofensivas. Neymar, Mbappé (que entretanto se lesionou), Sarabia, Icardi. E era neles que recaía a aposta em chegar a uma meia da Champions 25 anos depois no dia em que a equipa cumpriu o 50.º aniversário.

“Se o Mbappé treinar bem e se nada de extraordinário acontecer, ele estará com a equipa amanhã [quarta-feira]. A Atalanta ataca com muitos jogadores no meio-campo adversário, num estilo único mas o PSG tem as suas possibilidades de vencer, mesmo sabendo que será difícil. Vai ser uma partida muito tática e mental. As duas finais que disputámos depois de cerca de quatro meses de paragem foram importantes para criar um espírito competitivo extraordinário”, comentou Thomas Tuchel, antes de abordar também o papel que Neymar poderia ter no encontro depois das boas indicações deixadas nos últimos jogos: “Ele está sempre sob pressão. É difícil imaginar quanta pressão tem em cima mas está acostumado. Estou convicto que fará um grande jogo”.

Todas as atenções estavam centradas no brasileiro, todas as atenções ficaram ainda mais centradas no brasileiro quando se confirmou que Mbappé começaria no banco, todas as atenções ficaram ainda mais, mais centradas no brasileiro no terceiro minuto, com Neymar a aproveitar uma má transição defensiva da Atalanta após uma jogada onde Zapata saiu da zona dos centrais para assistir Papu Gómez para um remate à figura de Keylor Navas para se isolar mas, perante Sportiello, atirar ao lado (com Mbappé a levar as mãos à cabeça no banco com o falhanço). Os franceses tentaram entrar a dominar, os italianos dominaram sem ter isso em perspetiva na entrada. Razões? A pressão mais alta na saída do adversário, bem mais eficaz do que aquela que o PSG fazia, e a capacidade de ganhar mais vezes a segunda bola com outro critério na circulação. Hateboer, num desvio de cabeça para grande defesa de Navas após passe de Papu Gómez (12′) e Djimsiti, após um livre lateral (14′), ameaçaram o golo.

Aos poucos começou a haver mais PSG, com mais posse e jogo no meio-campo adversário. Mal a bola começou a passar mais pelos pés de Ander Herrera e Gueye a qualidade aumentou, sendo que, por mais do que uma ocasião, Neymar apareceu como grande (ou único) desequilibrador do último terço dos franceses. Fintava, cruzava, ia à procura da profundidade ganhando todos os lances em sprint, mas não fazia milagres. E foi a Atalanta a prolongar momentos depois o seu milagre, inaugurando o marcador numa jogada com um ressalto e insistências à mistura mas onde ficou visível a capacidade da equipa em colocar muita gente na frente, neste caso com Pasalic a rematar em jeito de pé esquerdo por cima de Navas (26′). Apenas dois minutos depois, em mais uma diagonal da esquerda para o centro, Neymar rematou a rasar o poste; de livre direto, obrigou Sportiello à primeira defesa da noite (35′); isolado na área descaído na esquerda, atirou muito por cima (42′). 1-0 ao intervalo.

O segundo tempo começou sem alterações, com outras características de um jogo mais quezilento, com vários cartões amarelos distribuídos e poucas ou nenhumas oportunidades a não ser uma segunda bola ganha mais uma vez pelo central Djimsiti ao segundo poste que rematou com força de primeira mas ao lado da baliza de Navas (58′). Estava na hora de começar a dança dos bancos, estava na hora de ser lançado Mbappé no lugar de Sarabia, estava na hora de Gasperini começar a rodar o ataque com unidades mais disponíveis em termos físicos. O jogo não melhorou, a intensidade também não, a tendência acentuou-se: mesmo sem criar grandes chances, o PSG inclinou o campo, dispondo de uma soberana hipótese por Mbappé após assistência de Neymar defendida com os pés por Sportiello, que até esse minuto 73 não teve propriamente muito trabalho entre os postes. Mas tudo ia mudar.

Como um dia escreveu Paulo Coelho, “o mundo está nas mãos daqueles que têm a coragem de sonhar e de correr o risco de viver seus sonhos”. Esta é a definição da Atalanta, que aos 90′ vencia por 1-0 e tinha um pé nas meias da Champions. Depois, em três minutos, tudo mudou: Marquinhos empatou, Choupo-Mating fez o 2-1 aos 90+3′ aproveitando o claro desequilíbrio emocional dos italianos e o PSG passou de vencido a vencedor nos descontos. E com uma curiosidade que parecia estar escrita neste desfecho cruel para a grande revelação da prova: Neymar foi o grande desequilibrador, Mbappé fez a assistência mas o golo pertenceu ao avançado que chegou a custo zero em 2018 a Paris depois de ter terminado contrato com o despromovido Stoke City da Premier League.