Podia uma qualquer equipa no mundo ganhar a um Barcelona parado no tempo entre uma renovação adiada e um presente inquinado? Podia. Mas podia uma qualquer equipa no mundo golear este Barcelona? Não, apenas uma e num contexto específico. Porque há um fator diferenciador entre o Bayern de hoje e todos os outros conjuntos: não se contenta com o que tem, quer sempre mais e se houver essa possibilidade vai procurar ser melhor. O atropelo no encontro dos quartos aos catalães ficou devidamente expresso nos números sem precedentes na história do clube blaugrana mas houve uma outra imagem que ficou do lado dos germânicos, com Thomas Müller a dizer à equipa para não desacelerar e manter aquela forma de jogar. Por um lado, e por paradoxal que pareça, é sinal de respeito perante o adversário; por outro, demonstra no seu ponto mais alto uma mentalidade como poucos.

O avançado que se tornou o jogador com mais golos marcados ao Barcelona em jogos a contar para a Champions já tinha estado num outro resultado que deixou o mundo em choque, quando a seleção da Alemanha cilindrou nas meias do Mundial de 2014 o anfitrião Brasil por 7-1. Ainda assim, e segundo o próprio, o triunfo na Luz foi mais concludente do que aquele que ainda hoje não é esquecido em Belo Horizonte. “É muito difícil explicar. A nossa equipa está neste momento numa forma incrível. Obrigado pelo troféu de melhor em campo mas temos 12 ou 15 jogadores que merecem este prémio. É difícil baterem-nos. Foi muito divertido”, referiu. “Nesse jogo de 2014 nós nunca tivemos um controlo tão grande do jogo. Fomos muito bons mas agora dominámos o encontro de uma forma impiedosa. Por isso é que devemos falar apenas deste jogo, o resto é passado”, completou.

Hansi Flick assumiu o comando do Bayern no início de novembro após uma copiosa derrota destes mesmos nomes que esmagaram agora o Barcelona frente ao Eintracht Frankfurt, que ditou a saída do croata Niko Kovac. E não foi propriamente um impacto imediato porque depois de dois triunfos na Bundesliga e outros tantos na Champions teve também dois desaires seguidos com Bayer Leverkusen e B. Mönchengladbach. A partir daí, agarramos apenas nos números para poupar uma linha de séries e parágrafos: 29 encontros oficiais entre Campeonato, Taça e Liga dos Campeões, 28 vitórias e um nulo, 93 golos marcados (média superior a três por jogo) e 22 consentidos (menos de um por jogo). A única surpresa nos quartos com os catalães foi mesmo o peso do triunfo e a forma como o mesmo apareceu porque, em tudo o resto, limitou-se a prolongar a série da melhor equipa da atualidade.

Flick deu para receber e tornou-se um case study não só no futebol mas também em qualquer outra organização que queira ser equilibrada, vencedora e marcante. O treinador, que antes bebeu um pouco de tudo entre os bancos e os gabinetes para se tornar melhor número 1 de uma equipa (treinou o Hoffenheim, foi coordenador no Red Bull Salzburg quando Trapattoni era o técnico, esteve oito anos como adjunto de Joachim Löw na Mannschaft, passou para diretor desportivo da seleção alemã e voltou esta época para adjunto do Bayern muito provavelmente a pensar já numa saída de Niko Kovac), deu o palco que os “pesos pesados” como Boateng ou Müller tinham perdido sendo fundamentais na equipa, deu a confiança para que os mais novos crescessem de forma sustentada percebendo que têm capacidade para se tornarem “pesos pesados” e deu metros a uma equipa que de certa forma reinventou o que deve ser o futebol da atualidade: serem 11 que parecem 14 ou 15, sendo mais e fazendo parecer os outros menos com o mesmo número de jogadores apenas por uma melhor ocupação de espaços com e sem bola.

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Era por esta ideia que o Lyon, mesmo tendo causado dupla surpresa ao afastar a Juventus e o Manchester City, ia ter em Alvalade o grande teste à capacidade da equipa na alta roda. Com Marcelo e Marçal cada vez mais fortes numa linha defensiva a três (além de Anthony Lopes na baliza, que foi uma das figuras do último jogo), Dubois e Cornet mais adaptados à função de tomar conta de um corredor, o trio do meio-campo a disfarçar lacunas de posicionamento com uma invulgar capacidade de sair em transição tendo Aouar como grande destaque e unidades móveis na frente capazes de criar desequilíbrios como Depay, o conjunto de Rudi Garcia enfrentava agora uma nova questão e um outro possível problema: manter a mesma ideia de jogo sabendo que as linhas iriam estar mais recuadas e reagir à adversidade contra quem joga como um 0-0 na cabeça mesmo que ganhe por 8-2.

“Temos grande intensidade e grande qualidade. Isso dá-nos confiança. Estou calmo e relaxado porque a equipa está muito bem mas sabemos que temos que ter a mesma intensidade do jogo com o Barcelona para chegar à final. O Lyon defende bem e corre muito. Sabemos que temos que fazer bem as coisas e que não podemos errar. Deixou pelo caminho a Juventus e o Manchester City, acho que isso diz tudo”, pediu Hansi Flick no lançamento do jogo. “Não somos os favoritos mas, mesmo que tenhamos menos hipóteses de estar na final, a verdade é que existe a possibilidade de isso acontecer. A minha equipa pode alcançar tudo, não tem limites. O Bayern está a escalar uma montanha para chegar à final e, às vezes, basta uma pedrinha no sapato para estragar tudo. Queremos ser essa pedrinha no sapato. Depois de vencer a Juventus e o City, temos muita confiança”, argumentou Rudi Garcia.

Não foram apenas palavras do técnico francês, que durante 15 minutos criou mais do que um antídoto para travar este super Bayern – encontrou o veneno para colocar os alemães numa posição desconfortável a que não costumam estar habituados, de forma muito organizada no plano defensivo mas sobretudo a conseguir aproveitar da melhor forma as poucas debilidades que os germânicos ainda têm. Foi assim que, logo aos quatro minutos, Caqueret conseguiu intercetar um passe de Thiago Alcântara, lançou de imediato Depay pelo meio aproveitando o espaço entre centrais que estavam mais abertos para darem linhas de passe mas o holandês passou por Neuer mas atirou ao lado (4′). Pouco depois, e já no seguimento de mais duas investidas travadas no limite por Neuer e Boateng, Toko Ekambi ganhou a Alphonso Davies e Alaba e rematou com estrondo ao poste (17′).

Em termos defensivos, o Bayern tinha apenas criado uma boa oportunidade num remate falhado por Goretzka que quase enganou Anthony Lopes (10′). De resto, muita posse, raríssimos espaços perante as linhas juntas a 20 metros dos franceses, pouca exploração da profundidade, nenhum pragmatismo dos laterais quando subiam. Em termos coletivos, os germânicos sentiam mais dificuldades do que até deveriam prever na teoria; na prática, veio ao de cima o plano individual para soltar tudo o resto a partir de Gnabry, que fez a diagonal da direita para o centro antes de arriscar um remate indefensável para o luso-francês (17′). Contra qualquer equipa, isto era apenas um problema; contra o Bayern, tornou-se o fim. E aquele Lyon caçador tornou-se em mais outra presa.

Os franceses deixaram de esticar jogo e explorar a profundidade, perderam capacidade nas transições e sobretudo começaram a perder bolas trás de bolas ainda no primeiro terço perante o efeito das zonas de pressão mais altas do Bayern, aqui sim um pouco à semelhança do que tinha acontecido com o Barcelona nos quartos (ou ontem com o PSG frente ao RB Leipzig). Se esta máquina de Flick tem uma quinta ou uma sexta velocidade, bastou uma quarta para regressar às ações ofensivas a colocar pelo menos quatro unidades em zona de finalização, como aconteceu no segundo golo após cruzamento de Perisic onde Lewandowski falhou o toque à primeira, Anthony Lopes defendeu à segunda e Gnabry, na recarga, fez o 2-0 (33′). A resistência gaulesa sofria o mais duro revés porque o Bayern sentiu que o adversário estava frágil e atacou para chegar ao intervalo com o jogo quase resolvido.

Rudi Garcia lançou Thiago Mendes, depois Dembélé e Reine-Adelaide (e Kenny Tete, um dos melhores laterais direitos na Europa sem ser os de primeira linha e que devido ao rendimento de Dubois tem ficado no banco) mas não mais conseguiu reentrar no encontro. Perisic, num lance onde apareceu em posição privilegiada, viu o luso-francês fazer uma grande intervenção a evitar o 3-0 (52′) antes de Ekambi aparecer também isolado perante Neuer sem conseguir o golo que relançaria a partida (58′). Mesmo frente a um Bayern que apareceu a meio gás depois do intervalo e sem a mesma disponibilidade para manter as habituais zonas de pressão alta que de uma maneira ou outra conseguem sempre criar desequilíbrios, os gauleses não voltaram a entrar no encontro e a final esperada vai mesmo confirmar-se com os dois campeões pelos respetivos países, sendo que Lewandowski, a acabar, fez o 3-0 de cabeça após livre lateral de Kimmich que dá uma ideia “errada” do que se passou em campo (88′).

Pela primeira vez a eliminar, o futebol teve lógica e ganharam os melhores. O melhor dos melhores, esse, fica para domingo no PSG-Bayern. E se é certo que o coletivo dos germânicos é mais forte no plano teórico, o atgaque dos franceses tornar-se na prática uma ameaça que deixa antever uma grande final europeia.