Não consta que Barack Obama tenha estado pelos lados da Messe de Monsanto da Força Aérea portuguesa na segunda-feira ao final da tarde. Ainda assim, se por acaso lá tivesse passado para a ocasião da comemoração em terras lusas do 68º aniversário da Força Aérea norte-americana, o mais certo era encontrar o 44º Presidente dos EUA na fila para cumprimentar o homem mais cobiçado daquela festa de discursos de ocasião e croquetes: Spencer Stone.

Spencer Stone e força aérea americana

Até o embaixador norte-americano em Portugal, Robert A. Sherman (à esquerda), quis tirar uma fotografia com o herói do TGV francês. (Fotografia: Miguel Soares / Observador)

Perdão, é de Airman Spencer Stone que falamos, o jovem de 23 anos da Força Aérea dos EUA que, de férias da sua missão na Base das Lajes, calhou ter livrado um comboio de alta velocidade de se tornar o palco de um atentado terrorista. Recorde a história, contada na primeira pessoa:

“O meu nome é Airman Spencer Stone. Sou da Força Aérea dos Estados Unidos e estava numa viagem pela Europa com os meus amigos, num comboio que partiu de Amesterdão em direção a Paris, onde um tipo apareceu com uma AK-47, uma pistola, um x-acto e cerca de 300 balas. Ao que parece ele tinha o plano de matar muita gente e eu e os meus amigos ajudámos a dominá-lo.”

Spencer Stone já anda a dar entrevistas sem pausa há quase um mês, pelo que ganhou uma notória tendência para a síntese dos factos — o que poupa em tempo perde em detalhe. Caso o leitor esteja recordado do que se passou naquele 22 de agosto, não faça caso dos próximos cinco parágrafos e avance até depois do vídeo. Se não for esse o caso, ora continue.

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O herói vestido à Barcelona

O comboio prometia uma boa ligação wi-fi, mesmo a calhar para a viagem passar mais depressa, mas o sinal acabou por ser pouco para os smartphones de Spencer e dos seus dois amigos de infância: Anthony Sadler, também ele da Força Aérea, e Alek Skarlatos, que não fugiu muito da vocação dos seus companheiros e trabalha como guarda no estado norte-americano do Oregon. Ora, sem Internet, e com o embalo do TGV, Spencer adormeceu.

Até que o revisor, numa velocidade de quem corre atrás de um passageiro que circula sem bilhete, atravessou a carruagem de um lado ao outro. Lá ao fundo, junto à casa de banho, dois homens lutavam. De um lado, estava Mark Moogalian, um bancário francês de 28 anos. Do outro, Ayoub el Qhazzani, um marroquino referenciado pelos serviços secretos franceses e espanhóis, brandindo uma espingarda AK-47. O bancário atacou-o, fazendo por lhe tirar a arma. Aí, numa jogada que Moogalian não previra, o presumível terrorista passou a ser merecedor do epíteto de atirador e sacou de uma pistola que tinha escondida nos bolsos. O tiro entrou pelo pulmão esquerdo do bancário, fez ricochete algures no tórax e subiu até à artéria carótida.

Uns quantos lugares atrás, Spencer, vestido à Barcelona FC, combinou com Alek, vestido à Bayern de Munique, e com Anthony, vestido à Los Angeles Basketball, que tinham de fazer alguma coisa. Vai daí, Spencer salta para cima do atirador, aplicando-lhe um golpe de jiu-jitsu feito à medida para sufocar quem vier por mal. Com a traqueia esmagada pelos braços deste jovem massudo com 1,90m, Ayoub el Qhazzani ainda tentou disparar-lhe um tiro de pistola contra a cabeça — mas a arma estava encravada. E, em desespero de causa, usou a sua última arma: um x-acto, com o qual chegou a cortar o polegar esquerdo de Spencer até ao osso. Só parou quando Alek, já apoderado da arma de fabrico russo do atirador, desferiu tantas coronhadas na cabeça do marroquino que este desmaiou. O terceiro comparsa, Anthony, ocupou-se de assegurar que mais ninguém tentava replicar o plano do atirador que, inconsciente, ficou deitado no chão de mãos e pés atados.

No meio disto tudo, o pescoço de Mark Moogalian, o bancário, esguichava sangue por todo o lado. Spencer tratou então de despir a sua camisola do clube catalão, usando-a como garrote para a ferida. E, para ajudar, enfiou os dedos na carótida do francês, a quem acabou por salvar a vida.

Já depois do seu pico mais alto, este cenário pós-apocalíptico foi registado em vídeo pela mão de um dos norte-americanos que preveniram aquilo que poderia ter sido o segundo ataque terrorista em solo europeu deste ano, depois dos atentados de 7 de janeiro em França.

https://www.youtube.com/watch?v=HHXmhk1sXM4

“Dormi na mesma cama do Presidente Obama”

Poucos dias depois, a fama de Spencer Stone, o herói do TGV, disparou em flecha. O ponto mais alto terá sido quando se sentou com Barack Obama na famosa Sala Oval da Casa Branca. Quando lá chegou, o Presidente norte-americano convidou-o a sentar-se na cadeira reservada ao vice-Presidente, Joe Biden. Além disso, ainda com o olho vermelho de sangue, com pontos por tirar e com um braço ao peito, não escapou a nenhuma televisão norte-americana, às quais contou, ao detalhe, aquela viagem de comboio entre Amesterdão e Paris. Também fez o mesmo no talk show de Jimmy Kimmel, acabando por sair de lá um com um Chevrolet por estrear. Além disso, recebeu a condecoração mais alta de França, a Legião de Honra, das mãos do Presidente gaulês François Hollande. E já foi anunciado que será condecorado com o Purple Heart (“Coração Púrpura”), a mais alta distinção para militares norte-americanos feridos em serviço.

No meio disto tudo, e apesar dos contratempos, Spencer acabou mesmo por visitar Paris. Só que em vez de ficar num hostel barato da capital francesa, acabou por ficar alojado no quarto mais distinto da casa oficial do embaixador dos Estados Unidos: o mesmo usado por Obama quando visita França. “Dormi na mesma cama que o Presidente Obama”, conta, relembrando com ironia aqueles dias em que ainda tinha as feridas abertas. “Sujei os lençóis com sangue, manchei o colchão. Certamente que adoraram isso.”

Comida portuguesa? “Adoro Kebabs!”

Não foi, pois, de estranhar que Spencer Stone fosse a pessoa mais cobiçada na comemoração do 68º aniversário da Força Aérea norte-americana. O jovem de 23 anos, que está em missão na Base das Lajes, acabou por levar a si todas as luzes da festa — em vão, um funcionário da embaixada lembrou aos jornalistas que aquele evento era “para assinalar o aniversário da Força Aérea” e não “só uma coisa à volta do Airman Spencer Stone”. É que, estando lá, ninguém diria.

Enquanto Robert A. Sherman, o embaixador dos EUA em Portugal, fazia um discurso enaltecendo a cooperação no âmbito da NATO entre as forças aéreas portuguesa e norte-americana, a maior parte dos presentes ocupava-se a fotografar o Airman com os seus telemóveis. De pé, a três metros do embaixador, Spencer estava destacado num só plano. Vestido de azul e com uns sapatos pretos brilhantes como um espelho de frente para o sol, tentava seguir o discurso do diplomata (“O Spencer Stone representa aquilo que a América e as forças armadas têm de melhor”). Por fim, aplaude-o — por força da lesão no polegar esquerdo, que ainda está numa tala e mal se mexe, bate com a mão direita no cotovelo do braço oposto.

Depois de ouvidos os três hinos necessários — o português, o norte-americano e o da Força Aérea yankee — deu-se a vez de cortar o bolo com as velas a marcar “68”. A cobertura levava duas bandeiras em cima: de um lado a dos EUA, do outro a portuguesa. Na hora de cortá-lo, Spencer dividiu a faca com o general Pinheiro, da Força Aérea portuguesa. Num esforço conjunto, encetaram a iguaria com a lâmina afiada a irromper pelo verde-esperança da bandeira portuguesa.

Spencer Stone e força aérea americana

(Fotografia: Miguel Soares / Observador)

Spencer, garante, adora Portugal. E os portugueses, pelo menos os que conheceu na ilha da Terceira, onde fica a Base das Lajes. “Adoro os portugueses, são tão simpáticos. Adorei os Açores, quero ficar lá para sempre”, diz, embora esteja perto da saída, seis meses depois de lá ter chegado em missão. “Adoro a ilha e os seus habitantes. São amigáveis e estão sempre prontos a ajudar.” Por fim, disse que adora a comida, embora esta não seja propriamente lusitana. “Adoro a comida… Kebabs? Doner Kebab! É a minha preferida. Desculpem, não sou muito fino”, disse aos jornalistas presentes no evento, entre risos.

Logo depois da entrevista, em que lhe foram apontadas duas câmeras, outros tantos microfones e quatro gravadores, não demorou muito até Spencer ser chamado para mais fotografias. Desta vez eram os empregados, que faziam agora uma pequena pausa na distribuição de canapés pelos convidados na cerimónia. “Anda lá aqui, anda, vamos tirar uma fotografia todos juntos”, disse-lhe um deles. Por fim, despede-se de cada um deles com um aperto de mão firme. Por sorte, a sua mão direita escapou incólume às facadas do atirador marroquino. Mesmo a calhar para todos os passou-bem que se seguiram.