O apelo chegou através de uma professora, mal se soube que os dias que aí vinham eram de confinamento. Uma mãe confidenciara-lhe que não podia ficar fechada em casa com a filha e com o marido, porque ele era agressivo e a violência iria escalar. Não iria suportar e seria demasiado perigoso.
Foi esta a informação que, logo no início da declaração do estado de emergência, a professora fez chegar, via Messenger, diretamente à secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade. Rosa Monteiro leu-a, como tantas outras que lhe chegam diariamente, e comunicou-a de imediato à equipa da CIG (Comissão para a Igualdade de Género) para que tomassem medidas. A professora foi contactada e acabou por ter um papel preponderante neste caso. Combinou com a vítima um encontro na escola, argumentando que tinha que tratar de documentação para o ensino à distância. Nesse encontro estavam as técnicas que iriam apoiá-la e que lhe explicaram todos as alternativas. E abriram-lhe caminho a uma nova vida: ela e a criança foram colocadas num casa de abrigo, longe do homem que a agredia.
Desde 30 de março até esta segunda-feira foram acolhidas nas casas de abrigo da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica 257 mulheres e crianças. Foram também acolhidos três homens na única casa que existe no país para os receber. Mas o total de vítimas acompanhadas durante este período foi muito maior: desde 30 de março até 10 de maio, foram 7.061 os pedidos de ajuda, o que significa uma média de 2.500 pessoas atendidas por quinzena — período em que agora deve ser feito um relatório técnico para reportar os casos (o que não acontecia em 2019, por isso não há termo de comparação).
Neste momento há 58 vítimas (mulheres) protegidas em duas estruturas criadas em finais de março que permitiram ter mais 100 vagas para quem se vê obrigado a sair de casa para escapar à violência. É que, desde que as portas das escolas e das casas de cada um se fecharam para evitar a propagação do novo coronavírus, levantaram-se dois problemas: o primeiro relacionado com um possível aumento de casos em confinamento, como já tinha acontecido na China e na Itália, o segundo relacionada com uma reorganização dos espaços que, normalmente, servem para acolher estas vítimas até que elas consigam seguir em frente autonomamente. Com a Direção-Geral da Saúde a exigir apenas um agregado familiar por cada quarto e a impor um quarto vazio para isolamento em caso de suspeitas de infeção pela Covid-19, as casas que já existiam ficaram praticamente lotadas e era preciso criar mais alternativas para as possíveis vítimas que poderiam surgir.
Novas vagas serviram para responder a regras da DGS e para acolher novos casos
“Comecei a ficar muito preocupada”, conta a governante em entrevista ao Observador. “Não sabíamos o que ia acontecer”, explica, pelo que recorreu à Associação de Apoio à Vítima e ao Gabinete de Atendimento à Família de Viana do Castelo para encontrar soluções. Numa operação relâmpago foram criadas 100 novas vagas, o que implicou não só a instalação do espaço como o recrutamento de mais funcionários e até o pedido de material informático para que as crianças que estão nos abrigos pudessem continuar o ensino à distância.
À APAV calharam os casos do centro até ao sul do país, com 35 das 100 vagas em instalações por si geridas. Segundo disse ao Observador Daniel Cotrim, responsável da APAV pelas casas de abrigo, já tiveram por duas vezes a lotação completa, com 61 mulheres e crianças que ali passaram.
Nas contas da secretária de Estado, que englobam os números nacionais, 172 das 257 mulheres e crianças já conseguiram a autonomização, seja para outras casas de abrigo, para darem os primeiros passos de uma nova vida, seja para outras casas, algumas de familiares ou amigos. “Houve casos com uma situação de habitação e de emprego resolvidas e resolveram passar as suas quarentenas no seu meio próprio de vida do que na casa”, explica Rosa Monteiro, que lembra que “estes números são sempre dinâmicos”.
Em média, estas vítimas ficaram cerca de 14 dias nesta resposta de emergência, o equivalente ao período de quarentena, e só depois foram levadas para outras casas de abrigo ou foram encontradas outras soluções. “Não há um tempo para se ficar em emergência” adverte por seu turno Daniel Cotrim, depende de cada caso.
Uma das realidades que esta pandemia trouxe e que tem surpreendido os técnicos que lidam todos os dias com o problema da violência doméstica é uma solidariedade nunca antes vista. Rosa Monteiro viu algumas vítimas terem a hipótese de ir viver para segundas casas de familiares e amigos. Daniel Cotrim, que há anos coordena o acolhimento destas famílias na APAV, destaca o mesmo: “Durante muito tempo, as pessoas tinham de recorrer ao apoio social e agora, com alguma solidariedade, há familiares disponíveis para os ajudar”. Para reforçar esta tese, a governante lembra mesmo como as grandes distribuidoras do país contribuíram com alimentos para estas vítimas ou como tantas empresas, de combustível e até de transportes, passaram a mensagem das formas de apoio à vítima e para onde deviam ligar caso fossem alvo de violência psicológica e/ou física.
Apesar de esta centena de novas vagas ter sido criada como situação de emergência, Rosa Monteiro desconhece quando é que esta oferta irá terminar. Não há, para já, um prazo definido. “Na verdade, enquanto houver vítimas a serem recebidas nestas casas, esta medida prevalecerá”, diz.
Polícia diz que há menos casos, instituições não
Logo no início da declaração do estado de emergência, o CIG apostou numa forte campanha para divulgar novas formas de recurso à denúncia por parte das vítimas e para evitar que a questão da pandemia se sobrepusesse à violência doméstica. Além das linhas que já existiam para denunciar qualquer caso, como o 800 202 148 do Serviço de Informação às Vítimas de Violência Domestica da CIG, ou o 144 da Linha Nacional de Emergência Social , ou mesmo o 112, foi criado um e-mail (violência.covid@cig.gov.pt) e um serviço de SMS gratuito (para o número 3060) impossível de ser rastreado no telefone ou nas contas. Do outro lado está sempre um técnico que aconselha o que a vitima deve fazer.
“Pedi à Vodafone, à Dra Ana Veríssimo, se me conseguia ajudar a criar uma nova linha de SMS que permitisse o anonimato e o não rastreamento dos contactos. Ao fim de uma semana estávamos a lançar esta resposta e foi muito importante no pedido de confinamento para as mulheres fazerem os seus pedido de ajuda”, diz Rosa Monteiro Monteiro ao Observador.
Entre 19 de março e o último domingo (24 de maio), o número verde (800), a linha SMS e o email da CIG receberam 537 contactos. Todos eles foram encaminhados. “Quando comparamos os dados com o primeiro semestre do ano passado, é mais do dobro”, constata.
Feitas as contas, foram recebidas 222 chamadas de ajuda para a linha telefónica (800), 183 SMS (este serviço desde 27 de março) e 132 e-mails.
“É um número muito significativo”, diz. Principalmente quando as forças de segurança concluíram, em finais de abril, que o número de denúncias de violência doméstica tinha caído neste período. Na área da PSP, por exemplo, entre 13 de março e 17 de abril foram registadas 476 participações, numa média de 32 por dia. Em período igual de 2019 tinham sido 673 participações (o que significa uma média de 45 por dia dia). A diminuição foi de 29%.
“Não podemos basear-nos apenas nos números das forças de segurança”, adverte, no entanto, Rosa Monteiro. “Na rede nunca houve uma diminuição ou a diminuição que foi referida pelas forças de segurança em termos de denúncia, até porque muitas mulheres, mesmo antes da Covid, procuram primeiro a informação, para depois racionalizarem a sua estratégia de vida junto destas equipas, muitas vezes só depois é que a mulher vai fazer uma denúncia”, disse.
Diferentes perfis de vítimas durante confinamento e agora
Para a APAV, pela voz de Daniel Cotrim, houve, no entanto, uma diferença no perfil das vítimas que procuraram estes serviços durante o estado de emergência. “A grande maioria das situações são mulheres ou famílias em situações disfuncionais, em que existem conflitos, mas que pela situação do stress ambiental, de estarem em confinamento, apurado pelas questões económicas”, acabam em episódios de violência. Estas mulheres normalmente saem de casa sem os filhos, mas querem depois juntar-se a eles e à família, quase que desculpando a agressão registada com o contexto vivido. “Enquanto organização referenciamos, elas não ficam sozinhas. Mas não deixa de ser um crime de violência doméstica”, diz.
Já nas últimas semanas, a par das medidas de desconfinamento, aparecem nos serviços da APAV mulheres com os filhos “porque os maridos foram já trabalhar e querem refazer as suas vidas”, explica. Durante o período do confinamento houve violência, na maior parte dos casos até já havia antes, mas “tinham medo de sair, porque estavam controladas e tinham medo de ficar doentes”, explica Daniel Cotrim.
Com esta nova liberdade, “foi-lhes possível sair”. Na última semana, segundo conta, os casos aumentaram e a 1 de junho, com o regresso à normalidade, os pedidos de ajudam devem voltar a disparar, segundo Daniel Cotrim. “Em crise é mais difícil pedir ajuda. É preciso que as respostas sejam integradas, na saúde, no trabalho, nas rendas”, adverte.