De 2 a 15 de janeiro, o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, vai contar-nos diariamente o que se passa: desde o início da viagem, a partir do Canadá, até ao dia em que derem a experiência por completa.
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Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Ontem, uma vez mais, fiquei acordado até às quinhentas, mas desta feita, por um excelente motivo: é que, pela primeira vez desde que cheguei à MDRS, pressenti que se ficasse acordado mais um bocadinho, conseguiria bater o cronómetro e fechar o dia com todas as minhas obrigações na estação completas a tempo e horas — do planeamento e logística aos afazeres domésticos (que tocam a todos sem olhar ao escalão hierárquico) e dos relatórios e reportagens aos projetos coletivos e colaborativos.

Como produtor de televisão, os dias de trabalho sobrecarregados e prolongados, com prazos sobrepostos e tarefas em competição não são nada a que não esteja habituado. Confesso, no entanto, que me surpreendeu a intensidade da vida aqui na estação, a falta de tempo para ler, relaxar e descansar. Surpreendeu-me também o facto de as minhas seis horas de sono regulares serem francamente insuficientes para as necessidades físicas do meu corpo neste local, e o quão a falta de privacidade me cansou mentalmente. Mas, em resumo: estou completamente atualizado, de relatórios enviados, fotos editadas, crónicas delineadas, e o nosso horário pronto de hoje até às cervejas no Colorado.

os homens saem juntos numa EVA a um local chamado Barainca Butte

Pela primeira vez todos os homens saem juntos numa EVA a um local chamado Barainca Butte — PJ Marcellino

Mas vamos com calma, que ainda temos três sols e meio em Marte, e como aqui os dias duram 24 horas, 39 minutos e 35 segundos, temos pela frente 86 horas e 29 minutos de um horário preenchidíssimo. Por outras palavras: ainda a procissão de Nossa Senhora de Marte vai no adro. Digo eu, que sou o Primeiro Oficial, e até faço o horário.

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Mesmo assim, não sei de tudo o que se passa aqui em casa. O nosso despertar de sol 9 foi bom exemplo. Saí do meu quartinho quente e escuro para a sala comum, plena de luz do sol nascente à minha hora habitual (7:30), ainda em pijama, estremunhado e esfregando os olhos sonolentos. Sento-me. Murmuro umas palavras. Pego na jarra do café (já volto ao café). E é com ela ainda na mão que ouço um ruído chegar à estação de walkie-talkie no piso de baixo, com um sotaque alemão imediatamente odioso: “Comandante! Comandante! Recebemos um relatório de radiação solar, ETA: 20 minutos. Repito, ETA: 20 minutos. Aos abrigos!”

Fuga para a redoma científica por causa da radiação

O engenheiro Simon Werner confere os mantimentos que foram levados para o abrigo (redoma científica) durante a simulação de radiação solar — PJ Marcellino

Olhamos todos uns para os outros, e notamos a ausência do engenheiro Simon Werner. Merda! Antes do café. Um a um, levantamo-nos e descemos a escada para colocar os fatos externos. O Werner avisa de novo: “Não se esqueçam de mantimentos! Não sabemos quanto tempo teremos que ficar escondidos da radiação.” Voltamos a subir, e de forma colaborativa agarramos água e alimentos nutritivos e de abertura fácil. Também agarramos todos os nossos tubinhos de espirulinas de estimação antes de descermos para colocarmos os fatos.

Quando estamos todos prontos, pegamos em walkie-talkies e seguimos pelos túneis da estação para a redoma científica, ponto de abrigo designado. Fechamos a porta pesada e passamos a meia hora seguinte à espera que seja decretado o fim da emergência, enquanto o Werner se distrai a inventariar as nossas escolhas de mantimentos e equipamento: além das bebidas que trouxemos todos, há doze walkie-talkies (dois por pessoa) mais um extra que o Werner tem, e o HSO Turner agarrou o kit de primeiros socorros e um livro de bolso (uma novela espacial).

Em termos de comida, temos um de nozes variadas, um saco de amêndoas secas, quatro géis calóricos, pepitas de chocolate, passas de uva, amendoins salgados, bolachinhas em forma de peixinhos dourados, uma garrafa de Nutella, várias barras de cereais. Não chegaria para que sobrevivêssemos por muito tempo, mas daria para nos aguentarmos um sol ou dois, penso eu. Tomamos nota de que trouxemos todas as nossas queridas espirulinas… todos, ou quase todos. Olhamos para a Aga, que está com cara de caso. A mãe da espirulina foi a única que as abandonou ao Deus-dará, sujeitas à intensa radiação solar deste incidente. Esperamos o pior. A galhofa é total.

Durante a reunião de debriefing, congratulamo-nos pela resposta calma, comedida, pela cooperação e entreajuda, e por uma evacuação total do pessoal da estação no prazo de 13 minutos, tempo de sobra. Também voltamos a apontar dedos à irresponsabilidade maternal da Aga, a única a deixas as suas bactérias para morrerem queimadas.

O Werner está contente, portanto, eu estou contente. Alguém faz a perspicaz observação de que, na MDRS 238 colaboramos todos sem hesitação nos projetos alheios. Ninguém se queixa, ninguém recusa. Mesmo os exercícios de emergência irritantes deste alemão, que ainda por cima deixa a ameaça de mais um ou dois — ou nenhum — até final do dia. Não há trégua.

sessão braided

Pedro José-Marcellino durante uma sessão com o sistema de comunicação em teste da empresa Braided Communications — PJ Marcellino

O dia prossegue de forma casual, uns com trabalho administrativo, outros com tarefas domésticas, e outros com sessões de Braided com o nosso engenheiro de comunicações e sistemas, o Observador, ou com os entes queridos.

De tarde, a tripulação divide-se , e pela primeira vez todos os homens saem juntos numa EVA a um local chamado Barainca Butte. Nesta região, muita da topografia usa nomes copiados dos de Marte, cuja nomenclatura obedece a regras específicas, usando muitas vezes nomes de cientistas e escritores, e aparecendo muitas vezes com nomes geográficos em latim ou grego. “Butte”, ou montículo de Barainca é um exemplo.

os homens saem juntos numa EVA a um local chamado Barainca Butte

Para chegar a Barinca Butte são 45 minutos de rover e duas horas e meia de caminhada — PJ Marcellino

A viagem nos rovers Opportunity (Oppy) e Curisoity (Cury) é relativamente longa (45 minutos), e a caminhada demora outras duas horas e meia, mas ficamos fascinados com a paisagem incrível, a diversidade de vermelhos e castanhos, e a verossimilhança do que vemos diante dos nossos olhos. Também encontramos uma planície aluvial erodida, onde o Werner — que é geólogo amador desde miúdo — identifica um manancial de fósseis conhecidos como “unhas do diabo”, ou ostras cretáceas. Não pertencem ao local, e parecem ali ter chegado numa enxurrada. Os desertos são sítios complexos.

Ainda paramos numas rochas incríveis ao pôr do sol, chamadas Kissing Camels, mas só para uma fotografia rápida. Temos que estar na estação antes do pôr do sol, e chegamos mesmo a tempo, felizes e cheios de tesouros — mas só invertebrados, que nos vertebrados não se pode tocar. Temos café e chá à espera. A minha espirulina, que levava pendurada ao pescoço, não está de boa forma. Esqueci-me que fora do meu fato estaria frio demais para ela.

paramos numas rochas incríveis ao pôr do sol, chamadas Kissing Camels

Rochas de Kissing Camels — PJ Marcellino

À mesa, a conversa é leve, divertida. Falamos de animais. Com as diferenças culturais e linguísticas, tentamos explicar a todos as diferenças entre diabos-da-tasmânia, wolwerines (glutões), gophers (geomiídeos), marmotas, cães-da-pradaria, fuinhas, martas, e por aí fora. Alguém menciona que são todos primos da Alice-o-ratinho-do-deserto. Relembramos o incidente do Alastair que me mordeu e tentou subir pela perna da comandante acima.

E, enquanto rimos às gargalhadas, a comandante dá um grito horripilante. Eu assusto-me com o grito, entorno o meu café e dou um grito quase tão grande como o dela. A Aga, em pânico, ri às gargalhadas, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. O Werner deduz que isto era uma partida minha e da comandante, e que estávamos a atuar. A Kay não entende o que se está a passar e o Turner olha para nós impassível, com aquele ritmo de Tennessee.

Quando finalmente nos controlamos, a comandante está branca de medo e jura a pés juntos que viu um roedor gigante debaixo do armário. Com as mãos assinala que tem “um rabo deste tamanho!” [um palmo]. Ficamos incrédulos. A Aga diz que acha que era a Alice (que é do tamanho de um dedão do pé). Não conseguimos parar de rir. As ratoeiras voltam a ser instaladas, e aventa-se a hipótese duvidosa de ser um cão-da-pradaria.

Ao jantar, ela opta por se sentar noutra cadeira, para não correr o risco de ver o terrível animal outra vez. Mas às tantas, sai-lhe outro grito horrendo, e desta vez gritamos todos de susto. Todos menos o Turner — ainda impassível — e a Aga, que geralmente é muito séria, mas que está vermelha de rir, numa resposta peculiar ao pânico.

Quando conseguimos parar e perguntamos o que foi desta vez, a comandante Robinson diz que viu a Alice assomar por baixo da porta do Werner (onde tinha sido apanhada uma vez). Claramente, um dos pontos de entrada dela. As ratoeiras são movidas. Todos nós achamos que a Alice é como o Candyman… quando se diz o nome dela três vezes, ela aparece (já aconteceu três vezes!). A comandante vai para a cama insistindo que viu um cão-da-pradaria, e enquanto continuamos a rir, ouvimo-la colocar uma pilha de roupas no chão, a cobrir a frecha da porta.