De 2 a 15 de janeiro, o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, vai contar-nos diariamente o que se passa: desde o início da viagem, a partir do Canadá, até ao dia em que derem a experiência por completa.
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Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — A sessão com
que a psicoterapeuta e mestre-jardineira Dra. Kay Sandor, nossa avó de serviço, nos presenteou ontem depois de jantar bateu a toda a tripulação que nem um Valium. O chá de camomila veio do jardim dela em Galveston, Texas, e era tão forte que o ansiolítico semelhante à benzodiazepina contido na flor seca nos apagou a todos até esta manhã. Adormeci com a luz acesa e os óculos no rosto e só acordei às 9 horas, em pânico por me ter deixado dormir duas horas mais do que a conta. Mas quando saí do quarto, deparei-me com todos ainda de olhos dorminhocos e de pijama como eu. A camomila não falha.

Este sol 10 em Marte, começou, portanto, muito lento e pachorrento. De resto, estes dois próximos dias foram mais ou menos planeados para o serem, permitindo à tripulação descansar e recuperar o fôlego. Temos uma tripulação brilhante e multi-hifenizada, com características profissionais, culturais e sociais fascinantes, e opiniões e filosofias diversas sobre a exploração, a aventura, a pesquisa espacial e sobre Marte, a expansão interplanetária, as estruturas de poder, e as narrativas geradas à volta de tudo isto, o que nos dá uma profundidade e riqueza impressionantes. Mas estas pessoas também precisam de descanso, e hoje foi um dia para trabalhar lentamente.

Quanto a mim, depois de delinear os horários finais, e tendo sacrificado a maior parte do meu tempo em projetos coletivos, encontrei-me quase sem tempo para filmar entrevistas para uma curta documental que ainda está por definir. Não sei que ângulo terá, não sei que temas abordará, se será mais entrevista, ou mais vérité. Veremos o que me ocorre depois de uns dias de descanso e depois de processar tudo isto. Mas sei que não posso sair deste deserto sem ter as entrevistas no saco, portanto usei a prerrogativa executiva para bloquear duas manhãs de filmagem no horário comum. Hoje entrevistei as três mulheres na tripulação, amanhã os três que faltam.

Oficina do engenheiro na missão MDRS 238

A oficina RAM é a cabine de um Chinook doado à Mars Society — PJ Marcellino

A oficina RAM oferece o melhor estúdio disponível, já que a estufa é demasiado quente e húmida, a redoma científica tem um eco que não conseguiria corrigir, e o habitáculo principal é ruidoso, com sons causados por todos os sistemas de suporte de vida. Digamos que a RAM não é particularmente fotogénica, e que é tão fria que todo o equipamento tem que estar almofadado com saquinhos de aquecer as mãos.

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Mas também tem um certo ar espacial ou, pelo menos, militar. Aliás, a base desta unidade doada por um produtor de Hollywood é a cabine de um Chinook, um helicóptero militar da Boeing que é frequentemente usado em missões humanitárias aí na Terra.

As primeiras entrevistas deram-me tudo o que necessitava. Ou talvez mais. Continuamos com o excelente hábito de apoiarmos os projetos alheios. Mas foi difícil conseguir alinhar os horários de toda a gente. Aliás, tive de proibir o Werner de lançar emergências inoportunas que importunassem as minhas filmagens. Não conseguiria recalendarizar.

Terminei mesmo a tempo de almoçar e de me preparar para a última das minhas EVA de rover. Amanhã é o meu dia de descanso, portanto nesta saída tive que tirar a barriga de miséria e conduzir o Spirit até me fartar. Arrastamos quase sempre connosco em todas as EVA o pobre do engenheiro Werner, sobretudo devido aos conhecimentos geológicos e paleontológicos que tem. Desta feita, porém, deu mostras de querer ficar na estação, portanto foram os dois artistas e a comandante.

zona aluvial conhecida por The Moon

“A comandante não gostou da paisagem ameaçadora, e optou por ficar no topo da colina, observando-nos ao longe” — PJ Marcellino

O destino era uma zona aluvial conhecida por The Moon (A Lua), por razões amplamente evidentes pelas fotografias. Faltam-me palavras para descrever a imensidão cinzenta e as montanhas vermelhas no horizonte, e os planaltos não erodidos que criaram montanhas que mais parecem mesas. A comandante não gostou da paisagem ameaçadora, e optou por ficar no topo da colina, observando-nos ao longe.

zona aluvial conhecida por The Moon

Pedro-José Marcellino e Aga Pokrywka aventuraram-se pelo vale The Moon abaixo — PJ Marcellino

Eu e a Aga, no entanto, aventurámo-nos vale abaixo, naquela que foi talvez a EVA mais intensa e mais exigente do ponto de vista físico, mas também impressionante do ponto de vista geológico. A lama solidificada deixou marcas de erosão espalhadas por todo o lado, que a qualquer momento do inverno se podem transformar em flashfloods, ou enxurradas de lama perigosíssimas e repentinas. Temos tido muita mais sorte do que a tripulação anterior.

O Werner já tinha encontrado na lama seca amostras de gipsite que, dizem os cientistas, é um minério de cálcio composto por sulfato de cálcio hidratado, também descoberto pelo rover Opportunity em Marte. Desde então, tem sido como uma das provas mais cabais quanto à existência anterior de fluxos de água corrente no planeta vermelho.

Neste Marte análogo, a gipsite brilhava na lama ao pôr do sol, e acabei por encontrar um depósito que compensou a marcha lenta e penosa. Andamos em marcha lenta porque, mesmo com temperaturas negativas no exterior, dentro dos fatos isolados suamos imenso, sobretudo com movimento físico como estas caminhadas íngremes.

Também temos os movimentos restringidos. O equipamento de ventilação é pesado, e se nos movermos rápido demais, o oxigénio que entra não consegue substituir o dióxido de carbono que expelimos ao ritmo necessário. O capacete também é incómodo e com visibilidade limitada a uns 95-100 graus à nossa frente. Olhar para o lado não ajuda. Para maior visibilidade, só movendo o corpo inteiro. Ou seja, é preciso ter a noção das nossas limitações no terreno.

No regresso, exaustos, a estrada esburacada parecia feita para nos dar mais dores de costas. E, com quase uma hora de viagem pela frente, todos os rádios inexplicavelmente deixaram de funcionar, forçando-nos a comunicar por gestos lentos e imprecisos. Penso que nos sentimos felizes por regressar à estação, onde o jantar me competia a mim.

Burritos, e a continuação de um dia de descanso, a fazer puzzles e a experimentar o Oculus Quest 2 da Stardust Technologies, a startup aeroespacial canadiana que é um dos nossos parceiros tecnológicos, e cuja tecnologia encaixa no âmbito da saúde mental e bem-estar das tripulações. A Kay e a comandante optaram pela meditação e o relaxamento. O Werner, como bom engenheiro, fez o passeio pela ISS (Estação Espacial Internacional) e pareceu fascinado. Eu tentei, mas pôs-me zonzo em dois minutos. É muito possível que eu não desse para astronauta.