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1 de abril é quando um político quiser

Sim, os políticos mentem. Qual é a novidade? Mentem tanto quanto mais gente houver para acreditar. E acredite: nunca vão deixar de mentir. Você é que tem de saber os truques e identificá-los.

Havia uma crise grave. O FMI estava para regressar a Portugal. Mesmo assim, Marcelo Rebelo de Sousa não hesitava em arranjar um problema ao novíssimo Governo PS/PSD do Bloco Central (1983-85). O social-democrata deixara de ser ministro há semanas e já fazia comentários na Rádio Renascença, no programa De Fio a Pavio. No dia 19 de junho de 1983, antecipava uma notícia que era obrigatório desmentir: o executivo preparava-se para fazer uma desvalorização do escudo e anunciar esquemas de poupança forçada. No dia seguinte à crónica do “criador de factos políticos”, Luís Esteves, assessor de Soares, desmentia Marcelo no Diário de Notícias aplicando uma comprovada mentira: “Isso não tem fundamento. Isso são afirmações desestabilizadoras, que podem até ser graves para o país”.

Com o desmentido, o Governo mentia com todos os dentes, língua, laringe e dedinhos dos pés. Mas também era verdadeira a segunda parte da frase do assessor: aquelas eram informações “desestabilizadoras” e podiam ser “graves”. Marcelo reagia no Diário de Lisboa, dizendo que “o dr. Soares entrou em taquicardia quando Luís Esteves lhe disse que tinha havido fugas de informação”. Não era para menos. Uma fuga de informação sobre a desvalorização de moeda correspondia a uma fuga de capitais. Esta é uma das poucas situações em que é aceitável um Governo mentir. Marcelo falava verdade. E dali a dias o escudo desvalorizava mesmo.

"Podem ficar sossegados: nada é mais normal e nada é mais tolerado e mais compreendido, na vida pública, do que faltar à palavra, com a condição de todos ganharem com isso."
Edouard Balladur, ex-primeiro-ministro francês no livro "Maquiavel em Democracia"

Em política pode haver mentiras justificadas quando uma razão de Estado as exige. Mas são uma exceção ao que se espera de uma democracia liberal. Em geral, a mentira política é uma arma banal da luta partidária para a conquista e a manutenção do poder, para atacar os adversários, para manipular os números, para iludir a opinião pública, para obter ganhos no debate, para defender posições, ou para proteger factos pessoais incómodos ou sórdidos. Se o Natal é quando um homem quiser, o 1 de abril é quando um político decidir.

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[Assunção Cristas tem acusado várias vezes António Costa de mentir no Parlamento, como pode ver neste vídeo]

Nos últimos meses, assistimos em Portugal a um conjunto de acusações, recriminações e dedos em riste, de políticos acusando políticos na Assembleia da República dessa irresistível tentação de mentir. A palavra banalizou-se no hemiciclo. Mário Centeno foi acusado de mentir sobre as condições da contratação de António Domingues para liderar a Caixa Geral de Depósitos. Se mentiu ou não mentiu, se sabia ou não sabia, se combinou ou foi equívoco a ponto de causar um “erro de perceção mútuo”, a verdade é que a suspeita sobre uma eventual mentira do ministro já originou uma nova Comissão de Inquérito — que poderá tentar averiguar o que está nos famosos SMS trocados entre António Domingues e Mário Centeno.

Mário Centeno não mentiu sobre o acordo com António Domingues?

Se o ministro das Finanças tem sido pressionado em nome da verdade, António Costa tem sido acusado de “mentir” sobre tudo e mais alguma coisa, até sobre as assinaturas do acordo de concertação social, uma mentira que só foi mentira durante escassos minutos, porque o documento estava a ser assinado enquanto a discussão sobre a mentira decorria. Nessa tarde, o debate parlamentar chegou a vias de facto verbais. “O senhor mente!”, acusou Assunção Cristas, líder do CDS. “É mentira! O senhor acabou de mentir a esta câmara, o senhor mentiu. Começamos a ficar habituados, o senhor mente sempre que aqui vem e acabou de mentir objetivamente. O acordo não está ainda assinado”. E ainda foi mais longe: “A sua palavra não vale nada.”

Noutro debate, a mesma violência nas palavras. A mesma Assunção Cristas para António Costa: “Com o escasso tempo que tenho [para intervir no plenário] é impossível desmontar todas as suas mentiras. Mas na verdade já disse várias. Uma delas é dizer que a diretiva [europeia] nos obriga a vasculhar as contas de todos os portugueses com 50 mil euros. Isso é mentira. Objetivamente mentira. Mentira objetiva”.

“O senhor mente!” Quantas vezes foi este Governo acusado de mentir?

A nova era da mentira política: o trumpismo

Este é o tempo presente e o contexto português, mas a mentira política tornou-se no tema central das democracias anglo-saxónicas que até agora tinham sido as inspiradoras das outras democracias ocidentais. Se não é mentira, chamam-lhe pós-verdadepalavra do ano em 2016 — ou verdade alternativa na era dos pós-factos. A tendência teve consequências no Brexit e na eleição de Donald Trump, para Presidente dos Estados Unidos.

Numa era em que seria suposto haver tanta informação que um político não se atreveria a mentir, acontece exatamente o contrário. Tanto faz que o candidato minta ou que o Presidente minta, desde que seja uma mentira em que o povo acredite. Ruth W. Grant, professora de Ciência Política da Duke University, da Carolina do Norte, que esteve recentemente em Portugal — na Universidade do Minho — a participar num colóquio sobre Mentira e Hipocrisia na Política, explica ao Observador o que mudou na eterna mentira política com o fenómeno de Donald Trump. “Agora importa mais aquilo em que as pessoas acreditam do que aquilo que é verdade. E é possível manipular aquilo em que as pessoas acreditam”, diz Ruth Grant ao Observador numa conversa telefónica.

As cinco “notícias falsas” espalhadas por Donald Trump e a sua equipa

Esta académica, que há 18 anos escreveu Hypocrisy and Integrity: Machiavelli, Rousseau and the Ethics of Politics, explica que Donald Trump “esteve sempre muito envolvido em espetáculos de entretenimento, como por exemplo no wrestling”. Nesse confronto violento, o que mais conta é o espetáculo, embora se saiba que tudo aquilo é encenado. “Acho que ele pensa em política como nas lutas de wrestling: toda a gente sabe que não é real mas aceita na mesma que seja assim”.

Não são mentiras como as outras. Richard Nixon mentiu no escândalo Watergate, Bill Clinton mentiu quando disse que não tinha tido sexo com Monica Lewinski, o pai George H. Bush mentiu quando disse para lhe lerem os lábios que não haveria mais impostos, e o filho George W. Bush mentiu quando justificou a guerra no Iraque com a existência de armas de destruição maciça. Todos mentiram. Em política, portanto, alguém que nunca mentiu atire a primeira pedra.

Mas o fenómeno Trump é diferente e Ruth W. Grant explica: “A diferença é que Nixon ou Clinton pediam desculpa se fossem confrontados com a mentira, enquanto Trump continua a contar a sua história, não interessa o que dizem as provas. Perante os factos, ele ataca a fonte da informação, os media”.

Pós-verdade. A palavra do ano deve-se a Trump e ao Brexit

Há muito tempo, num reino distante, um Príncipe mentia…

A questão não é de hoje ou de ontem, mas de sempre. A mentira faz parte da vida e fez sempre parte da política: Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, escreveu em pleno Renascimento que “os homens são tão ingénuos e tão conformados com as necessidades do momento, que quem engana encontrará sempre quem se deixe enganar”. Também estipulou que os príncipes que “souberam com inteligência enganar os cérebros do homens, no final ultrapassaram aqueles que se basearam na verdade”. Ora, se Trump, Clinton e Bush, ou Costa, Passos e Sócrates nos enganaram é porque houve uma maioria que se deixou enganar.

O tempo passou, mas a natureza do mundo não mudou. Quinhentos anos depois dos primeiros conceitos “maquiavélicos”, o ex-primeiro-ministro francês Edouard Balladur atualizava o pensamento do florentino em termos mais modernos. No livro “Maquiavel em Democracia”, descrevia um saber de experiência feito em anos de política francesa: “Alguns políticos sempre prontos a mentir, a não ter palavra e a não respeitar nem os compromissos, nem os contratos, nem os acordos feitos com os parceiros, temem que isso lhes possa sair caro, mas podem ficar sossegados: nada é mais normal e nada é mais tolerado e mais compreendido, na vida pública, do que faltar à palavra, com a condição de todos ganharem com isso”. A constatação parece chocante, mas tem por detrás uma evidência. Um político sem manha, sem artes de raposa, também não seria reconhecido como um verdadeiro líder: “O povo fica surpreendido e insurge-se contra esta deslealdade tão comum, mas logo se submete; mais: vê nisso capacidade e talento”, conclui Balladour.

Recuando mais ainda, para os primórdios da civilização ocidental, Platão já falara da gennaion pseudos, na República, a chamada “nobre mentira” — a mentira pela razão de Estado. Leo Strauss, ao estudar Xenofonte, concluiu que na antiguidade “era uma questão de dever esconder a verdade da maioria da humanidade”.

“Os objetivos da política são o poder e o sucesso. Esse objetivos justificam a duplicidade.”
Martin Jay, no livro "The Virtues of Mendacity" (As Virtudes da Mentira)

O problema da mentira política, velho como a humanidade, tem sido assim uma permanente fonte de interesse e debate. Em 1710, o escritor Jonathan Swift escreveu “Um Ensaio Sobre a Arte da Mentira na Política” para a revista The Examiner. Dois anos depois, um médico escocês chamado John Arbuthnot publicava o “Tratado da Arte da Mentira Política”. Definiu as regras da “pseudológica”, que classificou como a “arte de convencer as pessoas de falsidades salutares para um bom fim”. Defendeu, por estranho que pareça, que o antídoto para o excesso de mentiras “não é falar verdade”. Mais de 300 anos antes de Donald Trump chegar à Casa Branca, Arbuthnot constatava “a grande tendência para se acreditar em mentiras na generalidade dos humanos” e sublinhava que “o mais apropriado contraponto para uma mentira é outra mentira”.

A eterna permanência da manipulação na esfera política é explicada por Martin Jay, professor na Universidade de Berkeley, no livro The Virtues of Mendacity – on Lying on Politics (As Virtudes da Mentira – a Mentira na Política), publicado em 2010, de onde foram retiradas algumas das referências anteriores.

Há duas maneiras de ver a mentira na política, segundo Martin Jay. Uma moralista, dos que querem aplicar à política os mesmos valores elevados que devem ser seguidos na vida privada. Ou seja, a política democrática deve ser mais ética, porque uma sociedade aberta deve dizer a verdade e gerar confiança nos que governam. Para quem defende este ponto de vista, “nunca em nenhumas circunstâncias se deve mentir”. A segunda visão é mais realista e não moralista: “Os objetivos da política são o poder e o sucesso. Esse objetivos justificam a duplicidade.” E liderar significa, por vezes, “saber uma coisa e dizer outra”. De acordo com Martin Jay, “o idealismo por vezes parece mais nobre do que o cinismo, mas algumas vezes tem um resultado contraproducente”.

A mentira como arma para chegar ao poder: as promessas de campanha

Embora os políticos mintam, não mentem sempre. No entanto, a reputação e imagem dos líderes acaba por ser inevitavelmente afetada. Em junho de 2015, quatro meses antes das eleições legislativas, o barómetro do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião, da Universidade Católica revelava um estudo em que um painel de inquiridos classificava Passos Coelho como “mentiroso” por 71 vezes e a António Costa por 29. Era a palavra mais aplicada quer a um quer a outro. Quando qualificavam os dois políticos com a palavra “aldrabão”, o líder do PSD, nessa época ainda primeiro-ministro, também liderava por 19 contra 13 de António Costa. Eram as consequências, sobretudo, de promessas não cumpridas ou invertidas por Passos Coelho durante o mandato como primeiro-ministro, ou resquícios da luta interna de António Costa com António José Seguro pela liderança do PS.

Mais do que a mentira, a aldrabice é um termo mais apropriado para os períodos eleitorais. Faz parte da história: não tanto as promessas por cumprir, mas o cumprimento do contrário daquilo que se prometeu: Durão Barroso prometeu baixar impostos, José Sócrates prometeu não aumentar impostos, Pedro Passos Coelho prometeu que não sobrecarregava os impostos… mas todos aumentaram os impostos quando chegaram ao poder. E todos usaram o mesmo argumento quando inverteram as promessas com que se tinham comprometido com os portugueses: desconheciam a verdadeira situação em que as finanças públicas se encontravam.

"Apesar de mentir ser quase sempre condenado como um comportamento vergonhoso, líderes de todo o tipo pensam que é uma ferramenta importante que pode e deve ser empregada em diversas circunstâncias"
John Mearsheimer, no livro "Why Leaders Lie" (Porque Mentem os Líderes)

O falhanço de promessas pode não configurar uma mentira pura, porque o discurso político consegue arranjar sempre argumentos — mesmo falaciosos — para justificar o incumprimento dos compromissos. Mas há situações em que a verdade era tão óbvia que se percebe que se não estávamos perante uma mentira, tratava-se de uma manipulação grosseira.

É o famoso caso do défice de 2009. Há verdades que não convém saber em período eleitoral. Nas legislativas de setembro daquele ano, era essencial para José Sócrates que o discurso da campanha não saísse da garantia de que o défice ia ser de 5,9%. Do outro lado tinha Manuela Ferreira Leite a repetir os avisos de que a dívida estava a crescer para níveis perigosos. Quando os valores foram apurados, o défice ficaria em 9,3%. A questão foi sempre de saber se a mentira foi deliberada. Luís Campos e Cunha, que tinha sido ministro das Finanças de Sócrates, achava que sim. Numa entrevista ao Público, acusou o líder socialista de mentir: “[Em Setembro de 2009] o ministro das Finanças já sabia certamente que esse não era o valor.” E Teixeira dos Santos mentiu “conscientemente”?, perguntou o jornal a Campos e Cunha. “Claro que sabia”, respondeu o ex-ministro. “Não era possível não saber a não ser que houvesse incompetência total. (…) E em Setembro, é obvio que o ministro das Finanças tinha uma consciência muito clara de que o défice não podia ser 5,9 por cento.”

Só as “aldrabices” de campanha de todos os protagonistas davam para escrever um livro. Mas a mentira e a duplicidade alheia serve depois para os adversários acusarem os rivais de mentir. Foi o que aconteceu no dia das mentiras de 2014. O PS fez um vídeo e emitiu um tempo de antena para mostrar como Pedro Passos Coelho tinha mentido ao longo da campanha eleitoral de 2011. O início do filme é terrível para o líder do PSD, por causa da célebre promessa de que não cortava no 13º mês dos funcionários públicos, feita por ironia no dia 1 de abril e 2011. Questionado por uma jovem, o candidato Passos Coelho respondia: “Já ouvi um primeiro-ministro a dizer, infelizmente, que o PSD quer acabar com muitas coisas, como o 13º mês, mas nós nunca falámos disso e isso é um disparate“. Afinal não era um disparate, como se veria mais tarde quando o PSD teve de implementar o memorando de entendimento da troika. O vídeo realizado pelos socialistas quando António José Seguro liderava o PS era este:

Números, diplomacia, truques de linguagem e outros artifícios

Paulo Portas gosta de aforismos. Um dos seus preferidos pertence ao cardeal Giullio Mazzarino, que foi ministro das Finanças do rei Luís XIV: “A política é a arte de simular e dissimular.” A política exige simulação e dissimulação, na linha dos maquiavélicos, e resta saber se a demissão “irrevogável” do verão de 2013 foi um ato genuíno ou uma forma de seguir aquela máxima. A verdade é que acabou por ser mentira.

George Orwell escreveu, em 1946, um texto que permanece atual: “No nosso tempo, o discurso político é largamente a defesa do indefensável”. A linguagem política, de todos os partidos, dos conservadores aos anarquistas, alegou o autor de 1984, “tem como objetivo fazer com que as mentiras pareçam verdade e homicídio respeitável [tínhamos acabado de sair da II Guerra Mundial] e dar uma aparência de solidez ao puro vento”. O que os políticos tentam fazer é que tudo pareça verdade e nada existe de mais verdadeiro, puro e exato do que os números. E traiçoeiro. Mesmo que seja puro vento.

O Orçamento para a Educação vai mesmo aumentar?

Isso vê-se todos os dia no debate político. Os defensores dos sucessivos Governos puxam pelos números mais favoráveis, os detratores sublinham os mais negativos, e possivelmente estão todos a falar verdade. “Procura-se o melhor ângulo possível perante os resultados”, diz um antigo assessor do Governo de José Sócrates. Um exemplo: na fase final do segundo Governo socrático, quando o desemprego subia para níveis históricos, havia sempre um momento mediático imperdível. Era o “momento Valter Lemos”, então secretário de Estado do Emprego. Sempre que saía um número péssimo, ele aparecia a contra argumentar com um número fantástico. O desemprego estava acima dos 11%? Pois o desemprego tinha melhorado na criação de emprego entre jovens. Um fonte desse Governo, que acompanhou esses processos diz ao Observador que sempre que eram publicados números do INE ou do IEFP, era preciso que Valter Lemos desse o corpo às balas para pintar o cenários de cores mais favoráveis. O esforço foi tão exagerado e tão contraditório, que resultou numa paródia na internet através deste vídeo (veja as declarações de Valter Lemos até ao minuto 3:14).

No Parlamento, houve um dia em que Sócrates disse dever “haver regras e seriedade no debate político e a primeira regra é não dizer mentiras”. Saiu do Governo com uma reputação que não abonava uma boa relação com a verdade. Um dos casos mais graves de Sócrates aconteceu em junho de 2009, quando foi noticiado que a Portugal Telecom ia comprar a TVI para afastar Manuela Moura Guedes e acabar com o Jornal da Noite e as notícias sobre o Freeport. O então primeiro-ministro diria no Parlamento que “o Governo não recebeu qualquer tipo de informações sobre as perspetivas estratégicas da PT. [O Executivo não dá orientações sobre] aquilo que são negócios que têm em conta as perspetivas estratégicas da PT”, afirmou Sócrates aos deputados num debate quinzenal. Nos Passos Perdidos, diria aos jornalistas: “Não estou sequer informado disso, nem o Estado tem conhecimento disso”.

Nessa noite, Manuela Ferreira Leite, que liderava o PSD, acusava Sócrates de ter mentido no Parlamento. No máximo, o primeiro-ministro admitiria que tinha sabido da intenção de compra “informalmente”. O negócio havia de abortar. E escutas mais tarde reveladas indicavam ser provável que Sócrates estivesse por detrás de tudo. Na fase final da sua governação, circulavam vídeos na internet a enfatizar as “mentiras” do primeiro-ministro. Como este:

“Mentir por opção nunca vi”, diz um antigo colaborador de José Sócrates ao Observador. “Nunca vi ninguém a dizer vamos mentir deliberadamente”. O que acontecia, reconhece a mesma fonte, era por vezes uma formulação mais favorável da realidade. “Não é que fosse mentira, era a forma como eram apresentados determinados factos”, explica. O melhor exemplo? Quando Sócrates apresentou o programa de resgate fez um discurso a dizer tudo o que lá não vinha e conseguiu anunciar o plano da troika como só fossem coisas boas. Não foi preciso esperar muito para toda a gente perceber o que aquilo era. O mesmo socialista reconhece, porém: “A mentira faz parte da política.”

Cavaco Silva usa uma estratégia “para despachar jornalistas”, como ele costuma dizer, que funcionava bem no tempo em que não havia Fact Checks. Quando tem uma questão sensível para responder, faz um comunicado público, ambíguo e defensivo, que não responde a todas as dúvidas nem à questão essencial. Depois, quando é questionado sobre o mesmo tema pelos jornalistas, remete para o documento ou para o discurso. O exemplo mais recente aconteceu na entrevista à RTP sobre o seu mais recente livro de memórias, em que disse que logo a seguir às eleições de 2009 fez uma “comunicação ao país, não deixando a mínima dúvida sobre quem era responsável pela intriga montada”. Tratava-se do chamado “caso das escutas a Belém”. O Observador foi escrutinar as palavras de Cavaco e concluiu que foi enganador.

Cavaco não deixou dúvidas sobre quem montou a intriga do verão de 2009?

Aconteceu o mesmo com as explicações dadas sobre as ações de Cavaco na Sociedade Lusa de Negócios (SLN), a empresa que detinha o Banco Português de Negócios (BPN). Nas entrevistas em que lhe pediam esclarecimentos sobre o assunto, Cavaco remetia para um comunicado que publicou em dezembro de 2008, na Presidência da República. Esse texto, sob “a forma de um desmentido” era “totalmente omisso quanto à SLN, detentora do BPN”, escreve o jornalista Gustavo Sampaio no livro “Porque falha Portugal?“. O desmentido de Cavaco foi uma forma de criar a ilusão de que havia um esclarecimento sem nada esclarecer.

Na diplomacia, porém, a mentira é mesmo um instrumento. de trabalho. No livro Why Leaders Lie, John Mearsheimer concluiu que “apesar de mentir ser quase sempre condenado como um comportamento vergonhoso, líderes de todo o tipo pensam que é uma ferramenta importante que pode e deve ser empregada em diversas circunstâncias”. Os líderes políticos, continua Mearsheimer, “não só contam mentiras a outros países, como também mentem ao seu próprio povo e fazem-no por acharem que é no melhor interesse do seu povo”.

O embaixador Martins da Cruz, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Durão Barroso, diz ao Observador que “não se trata de mentira, mas de estratégias e às vezes táticas de não revelar tudo em processos negociais”. Em negociações internacionais, explica, “não se pode dar todos os trunfos” ao outro lado. “É como numa negociação comercial normal”. O mesmo se passa para esses assuntos não passarem para a praça pública. “Há uma reserva natural da diplomacia”, afirma, lembrando que até as comunicações das embaixadas são encriptadas. Muitas vezes conta-se apenas uma parte da verdade quer à opinião pública quer à contraparte negocial.

E quanto à maior mentira da política internacional dos últimos anos: a justificação para a invasão do Iraque, que aconteceu quando era ministro? Martins da Cruz diz que “o primeiro a ser enganado pelos relatórios que viu foi o próprio Colin Powell, secretário de Estado norte-americano, que o disse na televisão”. Recorde-se que Powell fez uma apresentação nas Nações Unidas a mostrar onde estariam as armas de destruição maciça de Saddam Hussein. O ex-MNE conta que viu “os relatórios dos serviços de informações americanos e os relatórios dos serviços portugueses baseados nos americanos e ingleses que garantiam a existência de armas de destruição maciça no Iraque”. No entanto, apesar de hoje se saber que a administração Bush condicionou a intelligence sobre o Iraque, Martins da Cruz procura atenuar a questão, dizendo que “houve um engano, mas quem se deve ter sentido mais traído foi o Governo norte-americano enganado pelos seus próprios serviços”. Foram escritas milhares de páginas e dezenas de livros sobre o tema.

A mentira é tão útil e tão pouco penalizada na política, que os norte-americanos têm há muito esta piada fácil: “Como é que se percebe que um político está a mentir? Ele mexe os lábios”.

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