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150 anos depois das "Pupilas", ainda nos lembramos de Júlio Dinis?

O romance de Júlio Dinis foi publicado pela primeira vez em livro em 1867, depois de ter saído em folhetins um ano antes. Outrora popular, é a obra de um autor que caiu no esquecimento.

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Quando Júlio Dinis desembarcou no Funchal em 1869, espalhou-se rapidamente pela cidade que tinha chegado “o autor das Pupilas“. Como se isso não bastasse, meia hora depois o escritor tinha à porta de casa um rapazote que proclamava alto e bom som que era ali que estava hospedado o autor do célebre romance. Em carta ao primo e amigo Pinto Coelho, Dinis não teve outro remédio senão lamentar-se:

“O Funchal não é a localidade mais própria para eu fugir às apreciações oficiosas dos meus escritos.”

Júlio Dinis tinha assinado As Pupilas do Senhor Reitor, o seu primeiro romance, seis anos antes, mantendo-o na gaveta até 1866. Foi nesse ano que saiu em fascículos no já desaparecido Jornal do Porto. Na altura, ninguém sabia quem era Júlio Dinis (pseudónimo de Joaquim Coelho), mas o sucesso foi quase imediato. De tal forma que, no ano seguinte, saiu em livro. Há exatamente 150 anos.

Apreciada pelos seus contemporâneos (até Eça de Queirós lhe teceu um elogio, ainda que fraco), a história dos amores e desamores do jovem Daniel conquistou várias gerações de portugueses — através dos livros, mas também da televisão (o romance foi adaptado e readaptado várias vezes para o cinema e televisão desde a década de 20). Mas o gosto por Júlio Dinis parece ser coisa do século passado — o seu desaparecimento dos programas curriculares levou a que sejam cada vez menos os leitores interessados pelas histórias de um Portugal rural, há muito desaparecido.

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Um portuense que se apaixonou pelo campo

Joaquim Guilherme Gomes Coelho nasceu a 14 de novembro de 1839, no Porto. O seu pai, José Joaquim Gomes Coelho, oriundo de uma família de Ovar, era médico cirurgião no Hospital da Ordem de S. Francisco; a sua mãe, Ana Constança Potter Pereira Lopes, de uma família ligada ao comércio do vinho do Porto, tinha ascendência inglesa e irlandesa. Joaquim Guilherme tinha apenas cinco anos quando a mãe morreu, vítima de tuberculose. O mais novo de nove irmãos, acabaria por ser o único a ultrapassar os 30 anos, vítima da mesma doença que levou grande parte da sua família — tuberculose.

Além da morte precoce da mãe, pouco se sabe da infância e adolescência do autor. Terá estudado numa escola primária em Miragaia e, mais tarde, na Academia Politécnica do Porto. Terminados os estudos gerais, inscreveu-se em 1856, com uma boa média, na antiga Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Terá sido nessa altura que começou a dedicar-se à escrita mais a sério, apesar de os primeiros textos serem muito anteriores.

“Os primeiros factos da minha existência literária remontam aos 11 anos”, escreveu num texto incompleto publicado postumamente em 1910 e citado por Carmen Abreu na tese de doutoramento Júlio Dinis — representações romanescas do corpo psicológico e social: influência e interferência da literatura inglesa (2010).

Apesar de ter ficado para a posteridade como romancista, o primeiro amor de Joaquim parece ter sido o teatro. Sabe-se que fez parte do grupo teatral “Cenáculo”, tendo escrito as duas primeiras peças, O Bolo Quente (da qual apenas se conhece o segundo ato) e O Casamento da Condessa de Amieira, em 1856. Estas, assim como as que lhes seguiram, foram assinadas com o seu nome de nascimento e publicadas postumamente entre 1946 e 1947 em três volumes, prefaciados por Egas Moniz.

Além do teatro, o autor dedicou-se também à poesia, tendo publicado alguns poemas na revista A Grinalda. Poesias românticas que viriam a ser reunidas na coletânea Poesias, de 1870. De acordo com a tese de mestrado de Maria de Jesus Pereira, As Pupilas do Senhor Reitor: Um Retrato das Mulheres na Sociedade Portuguesa do Início da 2ª Metade do Século XIX, foi aos 19 anos, ainda estudante de Medicina, que Joaquim Guilherme escreveu a sua primeira novela, Justiça de Sua Majestade.

A par do teatro, também os poemas foram assinados com o nome de batismo. A preferência pelos pseudónimos só veio depois, quando começou a publicar pequenos contos no Jornal de Porto (reunidos postumamente no volume Serões da Província) sob o nome Júlio Dinis. Mas, ao contrário do que muitas vezes se julga, este não foi o único pseudónimo usado pelo escritor, tendo criado um outro nome para assinar os seus textos — Diana de Aveleda.

Segundo Maria de Jesus Pereira, o nome Diana de Aveleda surge em cartas e poemas (como “O Bom Reitor”, publicado no Jornal do Porto em 1864), pelo menos, entre 1863 e 1867. Porém, a produção literária mais famosa de Diana de Aveleda é a correspondência trocada com uma amiga imaginária, Cecília, publicada no Jornal do Porto. Aí, Diana de Aveleda surge como “uma mulher exemplar, informada, culta, esposa, mãe e educadora”, envolvendo-se depois numa “curiosa e importante troca de ideias” com o realista Ramalho Ortigão, com quem discute o que é ser mulher.

Júlio Dinis terminou o curso em 1861, sem nunca ter chegado a desenvolver uma atividade profissional regular. A sua doença obrigava-o muitas vezes a viajar para longe da cidade. Um dos seus destinos de eleição era Ovar, terra da família paterna, onde desenvolveu uma maior afeição com a vida rural. Além das suas vivências no campo, também a sua profissão ajudou a moldar a linguagem e estilo das suas narrativas, de que são exemplo personagens como João Semana ou Daniel.

O n.º 18 onde o escritor viveu em Ovar acolhe hoje o Museu Júlio Dinis -- Uma Casa Ovarense. A rua onde fica situado foi batizada com o nome do autor

Maria João Gala /Lusa

Inspirado pela ruralidade, publicou o primeiro romance, As Pupilas do Senhor Reitor, em 1865, em folhetins no Jornal do Porto, assinado por Júlio Dinis. Não se sabe ao certo porque é que o autor decidiu publicar a obra sob outro nome (alguns críticos acreditam ter-se tratado de um mecanismo de autodefesa contra os críticos), mas sabe-se como é que se descobriu que Dinis era, afinal, Joaquim Guilherme.

Segundo Egas Moniz (que prefaciou os três volumes das peças de Dinis, publicados entre 1946 e 1947), o êxito do folhetim foi tal que muitos se questionaram quem seria o misterioso autor. A discussão terá, inclusive, chegado a casa do autor e terá sido o pai do mesmo que, ao descobrir em cima de uma mesa as provas do romance, terá percebido que o romance tinha sido escrito pelo filho. A notícia terá acabado por se espalhar pela cidade do Porto e, depois, pelo país.

A história estava escrita desde 1863 e saiu em livro em 1866. Dois anos depois, o escritor lançou Uma Família Inglesa, um retrato da vida na cidade e da pequena burguesia, e A Morgadinha dos Canaviais. Foi também em 1868 que As Pupilas subiram pela primeira vez ao palco, numa adaptação de Ernesto Biester. A peça estreou-se no Teatro da Trindade, em Lisboa, recebendo boas críticas por parte do público e imprensa.

Numa altura em que os romances costumavam ser publicados em folhetins nos jornais (como acontecia também com as obras de Camilo Castelo Branco, por exemplo), Júlio Dinis era um autor “lido e reconhecido no seu tempo”, como salientou Maria de Jesus Pereira. A sua ida à Madeira, em 1869, uma tentativa frustrada de melhorar o seu estado de saúde, espalhou-se com um burburinho entre a população local.

Em carta ao primo e amigo Pinto Coelho, datada de abril desse ano, deu conta disso mesmo: “Aqui lera-se já as Pupilas e meia hora depois que desembarquei corria na cidade [do Funchal] a notícia da minha chegada. […] Isto tem dado lugar a cumprimentos na rua (felizmente não me têm obrigado a visitas) que eu dispensava porque ainda não aprendi a responder-lhes”.

“Vou pior do que vim mas melhor do que estive. De mal com o universo inteiro como nunca estive e resolvido a não lutar mais tempo contra a força das coisas. Vou procurar um buraco onde me meta a esperar pelo que Deus quiser que venha”, escreveu Júlio Dinis ao amigo Custódio Passos, já de regresso a Lisboa.

A viagem ao Funchal, uma de muitas fugas à humidade e ao frio do Porto, foi a última realizada por Dinis. Regressou a Lisboa em 1870, partindo depois para o Porto, onde publicou o seu último romance, Os Fidalgos da Casa Mourisca, do qual já não conseguiu rever as provas tipográficas. O seu estado de saúde ia-se agravando cada vez mais.

Viu-se obrigado a refugiar-se na casa de um primo, no Porto. Foi aí, na Rua Costa Cabral, que acabou por morrer nas primeiras horas do dia 12 de setembro de 1871. Tinha 31 anos, e a sua fama de escritor já tinha atravessado o Atlântico. Nesse ano, As Pupilas foram representadas no Rio de Janeiro.

Um romântico que também era realista

Júlio Dinis conseguiu reunir o melhor de dois mundos. Apesar de ser geralmente apontado como um autor de transição, a verdade é que foi capaz de conjugar na sua obra características de duas correntes distintas (e, à partida, antagónicas) — o Romantismo e o Realismo –, sempre com uma consciência clara e racional do que era uma e outra. E isso é um dos seus grandes feitos (senão mesmo o maior).

Essa transição encontra-se visível na “aproximação direta da descrição efetiva da vida real daquele tempo”. “Há nele uma aceitação. Não é o artista que está fora do mundo e que cria outro mundo — é capaz de descrever o que tem à sua frente. Isso é a marca dessa transição para o Realismo”, salientou o editor Manuel Fonseca, da Guerra & Paz, que lançou a edição mais recente de As Pupilas do Senhor Reitor, que pretende assinalar os 150 anos da obra.

Constituiu parte do imaginário do século XIX e XX e isso é a coisa mais importante que se pode dizer de um escritor, a meu ver. Isso revela uma capacidade de resposta àquilo que é a realidade e a sociedade onde se vive e uma compreensão”, acrescentou Manuel Fonseca.

Esse conceito tão peculiar de obra literária surge descrito num conjunto de texto dispersos que Dinis produziu no último ano de vida, como explicou ao Observador Annabela Rita, diretora do curso de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e coordenadora do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL). “Aí, ele distingue claramente a poética romântica da poética realista, e apresenta uma teoria do romance por oposição à novela, ao conto numa perspetiva realista. É um autor extremamente consciente da construção efabulatória de uma ficção realista.”

Além disso, segundo Annabela Rita, era “também um autor extremamente atento à relação entre a literatura e as suas circunstâncias, e em como esta pode não apenas representar, mas também modelar o real”. “E isso é algo que vem do Romantismo de primeira geração.” Tal como o poeta Almeida Garrett, também Júlio Dinis procura formar o cidadão e ensiná-lo a ver e a analisar a realidade, propondo alternativas.

“Isso é um projeto que vem do Iluminismo, que está muito atento à grande massa anónima. Isso é algo que Júlio Dinis também acolhe. De facto, apresenta nos quadros da vida portuguesa da época uma chamada de atenção para o que acha que deve ser mudado”, explicou a professora de literatura portuguesa, salientando que Dinis nunca teve como objetivo chocar, ao contrário de outros autores seus contemporâneos.

Júlio Dinis começou por escrever poesia e teatro. Só mais tarde se dedicou à prosa

Maria João Gala / Global Imagens

Analisando “uma sociedade clivada por grupos sociais marcados”, Dinis mostra uma realidade onde a elite é ainda ocupada pela nobreza e pela aristocracia mas onde, ao mesmo tempo, começa a surgir uma nova visão, “marcada pelo dinheiro, pelo trabalho e pelo sucesso que, no fundo, é aquilo que sintoniza Portugal com a Europa da época”. Toda sua obra fala da “ascensão de uma nova classe que se está a destacar e que cria contornos entre o velho e o novo Portugal”. Contornos e diferenças que devem ser harmonizadas.

“A comunidade é feita dessas diferenças e não há que excluir grupos sociais. Toda a sua obra vai responder a essa pergunta — que futuro para Portugal? Ele analisa isso, representando e propondo. Todos os seus textos terminam representando essa clivagem, mas mostra que essa clivagem se pode resolver considerando o contrato social.”

Relevando as diferenças, Júlio Dinis mostra que é possível haver uma aproximação entre dois mundos — da mesma forma que acredita que é possível juntar Romantismo e Realismo. “O que Júlio Dinis faz é representar a clivagem que existe, a divergência, mas mostra que há a possibilidade de ser ultrapassado para que os que são diferentes deem as mãos e promovam um novo Portugal. É um trabalho de consciência comunitária que ele está a tentar promover — na consciência da cidadania que não é de exclusão, mas de inclusão.”

No caso dele, essa inclusão é sempre feita através das emoções, dos afetos, porque são eles que permitem mais facilmente ultrapassar a diferença. “É muito difícil juntar fidalgos com alguém que trabalhou para eles”, frisou Annabela Rita, dando o exemplo de Os Fidalgos da Casa Mourisca, o último romance de Júlio Dinis, em que Jorge, filho de D. Luís Negrão de Vilar de Corvos, se apaixona pela filha do antigo caseiro do pai, Berta, que tinha estudado na cidade.

“A única maneira de ultrapassar o preconceito é criar a paixão de duas figuras, que é sempre justificada por uma aproximação cultural e de carácter. E é isso que vai justificar, legitimar, tornar lógico essa aproximação. Alguma coisa tem de os aproximar. É essa racionalização do amor que legitimiza o contrato social entre duas esferas, entre duas classes diferentes”, acrescentou a coordenadora do CLEPUL.

Esta visão é diferente da que era partilhada por realistas e naturalistas, incluindo Eça de Queirós, que acreditavam que não havia forma de ultrapassar as diferenças. “Eles mostravam que a clivagem não tinha solução, porque a visão deles era a de um país clivado. É essa visão que vai evoluir e justificar a implantação da República”, afirmou a professora da FLUL. “Apesar de serem contemporâneos, Júlio Dinis nunca coloca essa questão e considera que é sempre possível fazer um pacto social se pusermos os diferentes grupos e classes sociais em articulação. O país evoluirá e encontrará a solução de uma forma harmoniosa.”

Romantismo vs. Realismo

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O Romantismo nasceu nas últimas décadas do século XVIII, reagindo ao Iluminismo e a uma perspetiva eminentemente racionalista que tinha marcado o século. Com uma visão do mundo centrada no indivíduo, os românticos voltaram-se para si mesmo, procurando representar os dramas e sentimentos humanos.

Por oposição, o Realismo, nascido no final do século XIX, procurava retratar a realidade humana sem a artificialidade que os realistas acreditavam haver no Romantismo. Em Portugal, a história do movimento ficou marcado pela Questão Coimbrã, que contrapôs os espíritos mais conservadores e a chamada Geração de 70, um grupo de estudantes de Coimbra defensores dos ideais realistas.

Personagens de um Portugal verdadeiro

Uma das grandes novidades de Júlio Dinis é a utilização de personagens “modeladas”. O lavrador não é apenas um lavrador, e o merceeiro não é apenas um merceeiro — cada um tem uma personalidade e características diferentes, apesar de serem representativos do tipo de pessoas que habitam no meio rural. Isto deve-se ao facto de “a personagem-tipo” não favorecer “a deslocação no tecido social”. “Estas personagens de maior complexidade permitem depois a movimentação social como ele quer e que ele também acha ser a realidade. Esta é demasiado diversificada e heterogénea para a tipificarmos dessa maneira”, explicou Annabela Rita.

Além disso, “a mobilidade social não pode acontecer com personagens tão típicas que não saem do sítio onde estão, meio, classe social ou ideologia”. “Tem de haver a possibilidade de atraírem outras de outras classes porque são complexas, têm fatores de modificação” que, para Júlio Dinis, são “a cultura, a educação e as circunstâncias”. “É a grande herança do Iluminismo e do Romantismo da primeira geração”, salientou a professora da FLUL. “É isso que possibilita que qualquer indivíduo de classe baixa possa associar-se e inscrever-se numa classe elevada.”

E é isso que acontece em As Pupilas do Senhor Reitor. Apesar de mostrarem um Portugal rural — com as suas figuras típicas, como o lavrador, o merceeiro, o padre –, a figura de Daniel revela uma outra realidade, mais complexa. “[Júlio Dinis] não deixa que a questão seja tão simplificadora, como no caso de Garrett. A visão simplificadora interessa à parábola, mas não é propriamente a de Júlio Dinis. Há dois irmãos, duas irmãs, com personalidades diferentes. Além do fator educação — as clivagens já não são de género ou de classe.”

No Museu Júlio Dinis, em Ovar, há um exemplar autografado de "As Pupilas do Senhor Reitor". Na assinatura pode ler-se: Joaquim Guilherme Coelho

Maria João Gala / Global Imagens

Em resumo, o que Júlio Dinis faz é apresentar “uma visão do real muito mais matizada e muito mais complexa”. “A grande lição é que ele está a representar essa complexidade para mostrar que toda ela tem gérmenes que permitem a conjugação dos contrastes”, salientou Annabela Rita.

Um autor que o tempo fez esquecer

A complexidade do mundo que Júlio Dinis transpôs para o que escreveu foi reconhecida em vida. Como referiu Maria de Jesus Pereira, as suas obras, marcadas pela descrição do ambiente e personagens do meio rural, conseguiram chegar “a uma pequena elite cultural e eram tema de conversa nos cafés”. Alexandre Herculano considerou-o o maior talento da sua geração.

Apesar disso, os seus livros têm vindo a cair no esquecimento. Manuel Fonseca, da Guerra & Paz, acredita mesmo que o autor tem sido “ligeiramente menosprezado pela crítica em geral”. “Culturalmente, temos um bocadinho a obsessão de que tem de haver uma dificuldade na grande literatura, que a arte é uma coisa que não pode ser apreendida de forma simples e isso não é verdade”, afirmou ao Observador. “O facto de Júlio Dinis ter uma escrita que é tão visual, que replica de forma tão naturalista aquilo as personagens e as situações que elas vivem — situações que correspondem àquilo que era a vida — jogou contra ele.”

Apesar disso, Manuel Fonseca defende que Dinis “é um escritor com um domínio da narrativa, com uma fluidez de escrita e facilidade de criação de diálogos que outros autores salientaram, dando-lhe o valor que merecem”.

Annabela Rita também defende que Júlio Dinis “tem sido secundarizado”, mas por motivos diferentes. “É um autor particularmente importante que tem sido subvalorizado pelo facto de cruzar Romantismo e Realismo, que combina muito bem e com uma consciência do que é fazer literatura realista que o próprio Eça não tem , na mesma altura, não equaciona com tanta clareza”, afirmou. “Os textos do Eça sobre literatura das Conferências do Casino não mostram uma consciência da escola realista do ponto de vista da textualidade e discurso como Júlio Dinis.”

Apesar de a junção de características divergentes ser o que define Júlio Dinis enquanto autor, foi isso que acabou por jogar contra si. O facto de não pertencer a nenhuma escola em exclusividade, faz com que seja difícil integrá-lo nos programas escolares, onde acaba por ser mais importante falar de escritores como Camilo ou Eça, claramente representativos de determinadas correntes literárias. Na FLUL, por exemplo, houve apenas duas professoras de literatura portuguesa que decidiram integrar as obras do portuense nos seus programas curriculares — e Annabela Rita foi uma delas.

“Ele esta entre as duas [correntes]. Estamos a falar de dois gigantes [Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós] e de uma figura ali no meio, isolada”, afirmou a coordenadora do CLEPUL. “Não pertence a grupos e está no norte quando se deslocou para a Lisboa o centro das atenções; associa duas escolas, não sendo representativo de nenhuma delas — tem aspetos, mas não a totalidade do código de cada uma delas, porque as vai conciliando.”

“Temos um conjunto de fatores que se combinam na obra de Júlio Dinis que fazem com que não seja trabalhado pelos programas académicos. E quem não é trabalhado, tende a desaparecer dos horizontes das leituras“, disse Annabela Rita.

Por exemplo, ao contrário do que acontece em muitas obras românticas, os livros de Júlio Dinis têm sempre um final feliz. Não há desgostos, não há mortes trágicas — tudo acabe em bem. Além disso, “tem uma escrita eminentemente moderna porque é eminentemente cinematográfica”. “A do Eça é muito dramatizada em função de cenas teatrais. A do Júlio Dinis não.” Mas não só.

De acordo com Annabela Rita, a subvalorização de Dinis deve-se também ao facto de o escritor ir buscar muitos ingredientes à cultura popular, como a ideia de que os fantasmas, configurações da memória afetiva, existem e estão connosco. Algo que a Geração de 70, um movimento cultural surgido no século XIX em Coimbra que se opunha aos valores ultra-românticos (e do qual fizeram parte Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós a partir de 1889, entre outros), tentava descredibilizar.

“Ele joga com eles, e isso não agrada a uma visão marcada por uma racionalidade relativamente materialista e pela ciência como era a do grupo da Geração de 70″, explicou Annabela Rita.”Não tem a ver com o fabuloso, tem a ver com uma visão encantatória do mundo e da vida que faz com que as pessoas sintam que estão integradas numa comunidade e que têm uma história anterior a si. São fatores que a Geração de 70 tentou secundarizar — a tradição, a importância dessa tradição, a visão encantada do mundo –, valorizando o progresso.”

Não é que a Geração de 70 não olhasse para trás, mas sempre fazia-o sempre de uma perspetiva histórica. O seu foco era, sobretudo, no presente. Além disso, “todo o autor tenta apagar, rasurar ou, pelo menos, diminuir a importância daquele que ele sente que e o seu mais direto rival”, defendeu a coordenadora do CLEPUL. “Fernando Pessoa não falava de Camões por algum motivo. Porque será? Porque eram rivais.”

Lembrado ou esquecido, há uma coisa que é importante ter em mente: “Vale a pena começarmos a olhar para Júlio Dinis e vermos nele a complexidade, em vez de estarmos a olhar para os textos enquanto representativos de uma escola”, defendeu Annabela Rita. “Devemos olhar para ele não como autor de uma obra que é pouco definida em termos de programa estético, mas como autor de uma obra que contempla em si sinais de diferentes programas estéticos que na época estavam a conviver.”

Para a professora de literatura portuguesa, é essa a grande capacidade do escritor — a de conciliar diferentes correntes, “com racionalidade e atenção à relação entre o projeto estético e político”. “É isso que faz dele um autor curiosíssimo no panorama nacional. E, do modo como se apresenta, único.”

Fotografias: Maria João Gala / Global Imagens. Tratamento de imagem: Maria Gralheiro.

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