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"1984". O que é que George Orwell (não) nos diz sobre hoje

A propósito de uma nova edição em português do clássico de Orwell, fazemos as perguntas: o que há de concreto na distopia descrita em "1984" e o que lhe falta enquanto projeção de um futuro político?

Diz-nos a História que o ano é fortuito. Que Orwell se limitou a trocar os dois últimos algarismos do ano em que acabou o livro, passando de 1948 a 1984. O êxito do livro deu uma estranha fama ao ano. Quando ele chegou, multiplicaram-se os ensaios com avaliações das profecias, desgostosas declarações de que vivíamos de facto a distopia criada por Orwell e que a ficção previra a realidade.

De facto, há alguns elementos do livro que ainda hoje podem ser apontados ao mundo. A novilíngua, pedra fundamental para a sobrevivência no nosso tempo, em que uma língua franca meio romba dessora as subtilezas de dialetos e línguas com anos de existência, a transferência das batalhas ideológicas para a História, numa tentativa de condicionar o futuro a partir da interpretação do passado, ou a divisão do mundo em blocos cada vez maiores, com uma tendência uniformizante avassaladora, tudo isso podemos encontrar no nosso tempo com alguma facilidade.

O problema, porém, é que estes tópicos são de alguma maneira universais e nem por isso exclusivos de um mundo distópico. Não podemos dizer que a tentativa de uma compreensão universal entre os homens cause apenas mundos mais pequenos e embrutecedores; claro que Orwell viu bem o aspeto demoníaco da linguagem, em que o caminho para a maior compreensão leva a uma simplificação cada vez maior do conteúdo; nesse sentido, até podemos dizer que 1984 prevê as grandes batalhas de linguagem dos nossos dias: o que Orwell demonstra é que a linguagem não é apenas um campo também ele ideológico, que molda a nossa maneira de pensar.

A capa da nova edição de “1984” pela Clube do Autor

O passo seguinte, que Orwell dá mas o mundo contemporâneo ainda não deu, é a compreensão de que a linguagem consensual, que sirva para todos, é uma linguagem cada vez mais neutra, que tende a neutralizar também o pensamento. A linguagem que serve a todos é, em última análise, a linguagem que não diz nada. No entanto, o nosso pensamento precisa da linguagem para existir, pelo que a eliminação da linguagem não implica apenas uma harmonia ou um maior consenso entre os povos; uma linguagem mais uniforme é também uma linguagem mais pobre, que anula o pensamento.

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Este, porém, é apenas um dos aspetos contidos na linguagem. Condição necessária para a comunicação é a redução das experiências individuais a notas comuns. Se isto empobrece a experiência? Claro que sim, qualquer pessoa que já tenha expressado um sentimento consegue dar conta da diferença entre a força com que ele nos habita e a fraqueza com que é expresso; porém, esta comunicação não se dá apenas de nós para os outros. A experiência do outro, mesmo enfraquecida, pode produzir um alargamento no nosso espírito.

A leitura de Otelo recorre a elementos comuns, à partida, segundo a ideia Orwelliana, mais pobres, para nos dar um elemento de remorso que a maioria de nós não tem. Mesmo que a experiência de um assassino seja reduzida pela linguagem, é através da linguagem que conseguimos ter uma porta para ela. Claro que se podia dar o caso de esta porta ser falsa, isto é, de que aquilo que a linguagem nos dá como experiência de um assassino se revelasse afinal um logro diante dos factos; é esta, aliás, a hipótese levantada em Crime e Castigo, onde Raskolnikov experimenta a perplexidade perante a diferença entre o ato “napoleónico”, heroico, e os sentimentos que aquilo lhe provoca. É isso, também, que Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, relata: a diferença entre a retórica de guerra e a sua vivência mostra que o mecanismo da linguagem produz uma falsa experiência: afinal, aquilo que a experiência nos dá é uma falsa porta.

Orwell mostra que, apesar de todas as tentativas, não há maneira de calar no Homem o espírito de diferença e o desejo de mais. Mesmo aquele que nunca viu melhor, que é constantemente bombardeado com a ideia de que aquilo que tem é a perfeição, não consegue conter no seu espírito um desejo de mais, que ele nunca viu e não sabe em que é que consiste, mas que lá está inscrito.

Ora, mesmo com esta possível falsidade, a verdade é que estes são casos esporádicos e limite. O reconhecimento de novas experiências mostra que, de alguma maneira, a nossa gramática é útil para perceber aquilo que nos rodeia e que acontece de novo. A verdade é que não precisamos de ter visto uma cadeira específica para a percebermos imediatamente como uma cadeira. A linguagem, na procura do comum, também produz um alargamento. O cenário apocalíptico de 1984 só nos mostra o lado embrutecedor da uniformização da linguagem; no entanto, parece-nos uma compreensão demasiado cética do Homem a posição do seu pensamento completamente à mercê dos seus instrumentos de comunicação. A verdade é que o Homem inventa palavras e modos de exprimir aquilo que pensa, o que mostra que a relação entre pensamento e linguagem não é tão simples quanto nos aparece em 1984.

Da mesma forma, a ideia de que o futuro é controlado pelo passado, e a obsessão do Grande Irmão com a História tem o seu interesse e os seus problemas. É verdade que a História pode ser um instrumento de guerrilha e uma forma de condicionar a narrativa comum da sociedade. No entanto, aquilo que não nos parece justo é a imediata consequência entre esta tentativa de interpretação da História e a ideia de opressão. A História como razão das ações coletivas é uma ideia tão antiga como a Humanidade. Está presente na ideia de mores maiorum dos romanos, na tradição católica, no contrato social, escorado na ideia de fazer o Homem regressar à origem e também, é certo, nas revoluções contemporâneas, que tentaram começar uma nova História. A interpretação da História não é, em si, uma falsidade e uma prova de opressão. Prova-o não só a própria História, já que não podemos dizer que todos os sistemas e toda a História do mundo se resume a uma longa História de opressão distópica, embora todos tenham encontrado as suas interpretações da História, como a própria complexidade dos acontecimentos.

O que acontece em 1984 é que a História é olhada de um ponto de vista puramente racionalista. Não pelos protagonistas, mas pelo próprio Orwell. Isto é, do ponto de vista de quem analisa as relações humanas simplesmente a partir da lógica, é verdade que a História é apenas um elemento de confusão. Se o que é importante é analisar cada decisão política exnihilo, então não há de facto nenhuma legitimidade histórica, e o facto de uma ideia ter saído vitoriosa de um confronto, ou de ter perdurado ao longo do tempo, em nada lhe confere legitimidade.

Se Orwell por um lado tem reservas em relação ao Homem novo e à possibilidade de o concretizar, por outro a sua ideia de História parece querer que cada Homem se porte sempre como um Homem novo

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No entanto, a História sempre foi um fator importante de análise política porque o Homem sempre percebeu que não é capaz de analisar todos os pressupostos e todas as consequências daquilo que lhe acontece. Entre a razão e as suas premissas não há uma transparência tal que possamos dizer que somos capazes de submeter o mundo à razão. Há um elemento de perda, razões que perdemos para a manutenção de um hábito mas que continuam a existir mesmo que não as conheçamos, e também um elemento de imprevisibilidade. Como De Maistre explica, em política as mesmas ações podem resultar em consequências opostas. O aumento do imposto sobre o pão pode pacificar o povo à volta de Milão ou levar à morte do Rei de França. Note-se que, para o caso, é indiferente saber se há mais razões para um caso ou para outro: o que interessa é ver que elas não são imediatas. Se não conseguimos encontrá-las, então a História não é apenas uma fonte de mentira, mas uma ajuda verdadeira para a compreensão do mundo.

Claro que, em 1984, a História tem também outro papel. É importante controlar História para poder apagá-la, para que não haja memória de um tempo melhor, e para não parecer que há alternativa. Este é, aliás, um dos pontos mais humanos e mais comoventes do livro, porque Orwell mostra que, apesar de todas as tentativas, não há maneira de calar no Homem o espírito de diferença e o desejo de mais. Mesmo aquele que nunca viu melhor, que é constantemente bombardeado com a ideia de que aquilo que tem é a perfeição, não consegue conter no seu espírito um desejo de mais, que ele nunca viu e não sabe em que é que consiste, mas que lá está inscrito.

Esta ideia torna mais complexa a relação entre História e memória existente no livro. Se Orwell por um lado tem reservas em relação ao Homem novo e à possibilidade de o concretizar, por outro a sua ideia de História parece querer que cada Homem se porte sempre como um Homem novo, livre daquilo que é a sua herança e o seu meio.

Por muito certeiras que sejam as análises de Orwell ao comunismo ou ao totalitarismo em geral, a verdade é que criticar um regime pelas suas consequências ficcionais ou pela sua hipocrisia perde força em relação a uma crítica de fundo. Se o regime é hipócrita, na verdade não está a cumprir aquilo que propõe: a crítica não é, assim, ao regime, mas à falta dele.

Há, certamente, uma série de elementos interessantes em 1984, que são pouco comuns e que não devem ser desprezados. A defesa do Homem e, mais do que da propriedade, da privacidade, a defesa das comunidades e da língua, tudo isso é importante e deve ser valorizado. No entanto, parece-nos que, embora seja hoje a distopia mais famosa do mundo, enquanto distopia falha em várias aspetos. Se é historicamente legítimo avaliar regimes pelas suas consequências, não o é avaliar pelas consequências não existentes. E isto aplica-se quer à Quinta dos Animais, quer a 1984.

Por muito certeiras que sejam as suas análises do comunismo ou do totalitarismo em geral, a verdade é que criticar um regime pelas suas consequências ficcionais ou pela sua hipocrisia perde força em relação a uma crítica de fundo. Se o regime é hipócrita, na verdade não está a cumprir aquilo que propõe: a crítica não é, assim, ao regime, mas à falta dele; se aquilo que criticamos são as consequências, estas não podem ser inventadas. Mesmo que nos pareçam inevitáveis, o grau em política conta. Só numa mente racionalista é que a admissão dos princípios políticos implica cavalgar todas as suas consequências. O grau, em política, existe e é importante. Mesmo que o princípio de controlar a História seja verdadeiro, não se seguirá daí que venha uma opressão em toda a linha. É a própria História que o mostra.

É isto, parece-nos, que torna 1984 uma distopia com certas fraquezas. Não porque não seja suficientemente apocalíptica, mas porque aquilo que aponta como as causas para a desgraça nos parecem insuficientes. Já houve, em todo o mundo, quem policiasse a linguagem, ou quem quisesse reescrever a História mas, apesar de tudo, a passagem desse estádio para o mundo do Grande Irmão não é linear. É essa passagem que, em 1984, fica por explicar.

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