Diz-nos a História que o ano é fortuito. Que Orwell se limitou a trocar os dois últimos algarismos do ano em que acabou o livro, passando de 1948 a 1984. O êxito do livro deu uma estranha fama ao ano. Quando ele chegou, multiplicaram-se os ensaios com avaliações das profecias, desgostosas declarações de que vivíamos de facto a distopia criada por Orwell e que a ficção previra a realidade.
De facto, há alguns elementos do livro que ainda hoje podem ser apontados ao mundo. A novilíngua, pedra fundamental para a sobrevivência no nosso tempo, em que uma língua franca meio romba dessora as subtilezas de dialetos e línguas com anos de existência, a transferência das batalhas ideológicas para a História, numa tentativa de condicionar o futuro a partir da interpretação do passado, ou a divisão do mundo em blocos cada vez maiores, com uma tendência uniformizante avassaladora, tudo isso podemos encontrar no nosso tempo com alguma facilidade.
O problema, porém, é que estes tópicos são de alguma maneira universais e nem por isso exclusivos de um mundo distópico. Não podemos dizer que a tentativa de uma compreensão universal entre os homens cause apenas mundos mais pequenos e embrutecedores; claro que Orwell viu bem o aspeto demoníaco da linguagem, em que o caminho para a maior compreensão leva a uma simplificação cada vez maior do conteúdo; nesse sentido, até podemos dizer que 1984 prevê as grandes batalhas de linguagem dos nossos dias: o que Orwell demonstra é que a linguagem não é apenas um campo também ele ideológico, que molda a nossa maneira de pensar.
O passo seguinte, que Orwell dá mas o mundo contemporâneo ainda não deu, é a compreensão de que a linguagem consensual, que sirva para todos, é uma linguagem cada vez mais neutra, que tende a neutralizar também o pensamento. A linguagem que serve a todos é, em última análise, a linguagem que não diz nada. No entanto, o nosso pensamento precisa da linguagem para existir, pelo que a eliminação da linguagem não implica apenas uma harmonia ou um maior consenso entre os povos; uma linguagem mais uniforme é também uma linguagem mais pobre, que anula o pensamento.
Este, porém, é apenas um dos aspetos contidos na linguagem. Condição necessária para a comunicação é a redução das experiências individuais a notas comuns. Se isto empobrece a experiência? Claro que sim, qualquer pessoa que já tenha expressado um sentimento consegue dar conta da diferença entre a força com que ele nos habita e a fraqueza com que é expresso; porém, esta comunicação não se dá apenas de nós para os outros. A experiência do outro, mesmo enfraquecida, pode produzir um alargamento no nosso espírito.
A leitura de Otelo recorre a elementos comuns, à partida, segundo a ideia Orwelliana, mais pobres, para nos dar um elemento de remorso que a maioria de nós não tem. Mesmo que a experiência de um assassino seja reduzida pela linguagem, é através da linguagem que conseguimos ter uma porta para ela. Claro que se podia dar o caso de esta porta ser falsa, isto é, de que aquilo que a linguagem nos dá como experiência de um assassino se revelasse afinal um logro diante dos factos; é esta, aliás, a hipótese levantada em Crime e Castigo, onde Raskolnikov experimenta a perplexidade perante a diferença entre o ato “napoleónico”, heroico, e os sentimentos que aquilo lhe provoca. É isso, também, que Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, relata: a diferença entre a retórica de guerra e a sua vivência mostra que o mecanismo da linguagem produz uma falsa experiência: afinal, aquilo que a experiência nos dá é uma falsa porta.
Ora, mesmo com esta possível falsidade, a verdade é que estes são casos esporádicos e limite. O reconhecimento de novas experiências mostra que, de alguma maneira, a nossa gramática é útil para perceber aquilo que nos rodeia e que acontece de novo. A verdade é que não precisamos de ter visto uma cadeira específica para a percebermos imediatamente como uma cadeira. A linguagem, na procura do comum, também produz um alargamento. O cenário apocalíptico de 1984 só nos mostra o lado embrutecedor da uniformização da linguagem; no entanto, parece-nos uma compreensão demasiado cética do Homem a posição do seu pensamento completamente à mercê dos seus instrumentos de comunicação. A verdade é que o Homem inventa palavras e modos de exprimir aquilo que pensa, o que mostra que a relação entre pensamento e linguagem não é tão simples quanto nos aparece em 1984.
Da mesma forma, a ideia de que o futuro é controlado pelo passado, e a obsessão do Grande Irmão com a História tem o seu interesse e os seus problemas. É verdade que a História pode ser um instrumento de guerrilha e uma forma de condicionar a narrativa comum da sociedade. No entanto, aquilo que não nos parece justo é a imediata consequência entre esta tentativa de interpretação da História e a ideia de opressão. A História como razão das ações coletivas é uma ideia tão antiga como a Humanidade. Está presente na ideia de mores maiorum dos romanos, na tradição católica, no contrato social, escorado na ideia de fazer o Homem regressar à origem e também, é certo, nas revoluções contemporâneas, que tentaram começar uma nova História. A interpretação da História não é, em si, uma falsidade e uma prova de opressão. Prova-o não só a própria História, já que não podemos dizer que todos os sistemas e toda a História do mundo se resume a uma longa História de opressão distópica, embora todos tenham encontrado as suas interpretações da História, como a própria complexidade dos acontecimentos.
O que acontece em 1984 é que a História é olhada de um ponto de vista puramente racionalista. Não pelos protagonistas, mas pelo próprio Orwell. Isto é, do ponto de vista de quem analisa as relações humanas simplesmente a partir da lógica, é verdade que a História é apenas um elemento de confusão. Se o que é importante é analisar cada decisão política ex–nihilo, então não há de facto nenhuma legitimidade histórica, e o facto de uma ideia ter saído vitoriosa de um confronto, ou de ter perdurado ao longo do tempo, em nada lhe confere legitimidade.
No entanto, a História sempre foi um fator importante de análise política porque o Homem sempre percebeu que não é capaz de analisar todos os pressupostos e todas as consequências daquilo que lhe acontece. Entre a razão e as suas premissas não há uma transparência tal que possamos dizer que somos capazes de submeter o mundo à razão. Há um elemento de perda, razões que perdemos para a manutenção de um hábito mas que continuam a existir mesmo que não as conheçamos, e também um elemento de imprevisibilidade. Como De Maistre explica, em política as mesmas ações podem resultar em consequências opostas. O aumento do imposto sobre o pão pode pacificar o povo à volta de Milão ou levar à morte do Rei de França. Note-se que, para o caso, é indiferente saber se há mais razões para um caso ou para outro: o que interessa é ver que elas não são imediatas. Se não conseguimos encontrá-las, então a História não é apenas uma fonte de mentira, mas uma ajuda verdadeira para a compreensão do mundo.
Claro que, em 1984, a História tem também outro papel. É importante controlar História para poder apagá-la, para que não haja memória de um tempo melhor, e para não parecer que há alternativa. Este é, aliás, um dos pontos mais humanos e mais comoventes do livro, porque Orwell mostra que, apesar de todas as tentativas, não há maneira de calar no Homem o espírito de diferença e o desejo de mais. Mesmo aquele que nunca viu melhor, que é constantemente bombardeado com a ideia de que aquilo que tem é a perfeição, não consegue conter no seu espírito um desejo de mais, que ele nunca viu e não sabe em que é que consiste, mas que lá está inscrito.
Esta ideia torna mais complexa a relação entre História e memória existente no livro. Se Orwell por um lado tem reservas em relação ao Homem novo e à possibilidade de o concretizar, por outro a sua ideia de História parece querer que cada Homem se porte sempre como um Homem novo, livre daquilo que é a sua herança e o seu meio.
Há, certamente, uma série de elementos interessantes em 1984, que são pouco comuns e que não devem ser desprezados. A defesa do Homem e, mais do que da propriedade, da privacidade, a defesa das comunidades e da língua, tudo isso é importante e deve ser valorizado. No entanto, parece-nos que, embora seja hoje a distopia mais famosa do mundo, enquanto distopia falha em várias aspetos. Se é historicamente legítimo avaliar regimes pelas suas consequências, não o é avaliar pelas consequências não existentes. E isto aplica-se quer à Quinta dos Animais, quer a 1984.
Por muito certeiras que sejam as suas análises do comunismo ou do totalitarismo em geral, a verdade é que criticar um regime pelas suas consequências ficcionais ou pela sua hipocrisia perde força em relação a uma crítica de fundo. Se o regime é hipócrita, na verdade não está a cumprir aquilo que propõe: a crítica não é, assim, ao regime, mas à falta dele; se aquilo que criticamos são as consequências, estas não podem ser inventadas. Mesmo que nos pareçam inevitáveis, o grau em política conta. Só numa mente racionalista é que a admissão dos princípios políticos implica cavalgar todas as suas consequências. O grau, em política, existe e é importante. Mesmo que o princípio de controlar a História seja verdadeiro, não se seguirá daí que venha uma opressão em toda a linha. É a própria História que o mostra.
É isto, parece-nos, que torna 1984 uma distopia com certas fraquezas. Não porque não seja suficientemente apocalíptica, mas porque aquilo que aponta como as causas para a desgraça nos parecem insuficientes. Já houve, em todo o mundo, quem policiasse a linguagem, ou quem quisesse reescrever a História mas, apesar de tudo, a passagem desse estádio para o mundo do Grande Irmão não é linear. É essa passagem que, em 1984, fica por explicar.