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Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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20 anos depois de abrir portas, o Museu da Marioneta quer mais espaço para contar mais histórias

Foi inaugurado em Lisboa a 28 de novembro de 2001 e hoje tem uma coleção com quase cinco mil peças. Até ao ano passado recebia 40 mil visitantes. Que bonecos são estes, tão vivos e tão adormecidos?

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Fantoches, títires, bonifrates, marionetas. São muitos os nomes dos bonecos manipulados por luvas, fios ou varas. Ao longo dos séculos imitaram a vida ou a natureza e constituíram formas de teatro e performance inscritas na cultura de inúmeras regiões do mundo. Fomos à descoberta deles pelos corredores do Museu da Marioneta de Lisboa, em vésperas do vigésimo aniversário da instituição — que se assinala este domingo com uma maratona de espetáculos.

Entra-se pela Rua da Esperança, sobem-se umas escadas de pedra que parecem guiar-nos até uma igreja e já na parte da exposição permanente encontra-se um ambiente escuro, com estantes de vidro e iluminação dramática, ao estilo de um palco de teatro. Estamos no Convento das Bernardas, zona de Santos-o-Velho (agora Estrela). É o bairro da Madragoa. O espaço é divertido, fantasmagórico, infantil, fascinante. Que histórias conta este museu? Que bonecos são estes, tão vivos e sempre tão adormecidos? Iremos ainda às reservas, numa cave do convento, para encontrarmos todas as coleções do museu. Ali estão também máscaras dos quatro cantos do planeta e toucados da Tailândia a representarem aves, elefantes, veados — artefactos de rituais religiosos ou pagãos que em alguns casos acabaram por ser transformar em objetos dramatúrgicos.

São cerca de 40 mil pessoas as que aqui entram todos os anos, sobretudo crianças em visitas escolares, mas também seniores, pessoas com necessidades especiais, grande público em geral. O museu é descrito como “um mundo de histórias”, o primeiro do género em Portugal inteiramente dedicado ao universo das marionetas. Faz parte dos equipamentos culturais geridos pela EGEAC, a empresa pública de cultura que depende da Câmara Municipal.

Porém dizer que se trata de um espaço pensado para crianças é muito incompleto. A diretora, Ana Paula Correia, explica-nos que “a marioneta é transversal a todas as culturas, religiões e séculos e por isso facilmente estabelece diálogo com os públicos”. A componente etnográfica é bastante forte. Destaca ainda que o centro de documentação do museu costuma ser procurado por académicos. Por estes dias, por exemplo, é local de estudo para uma historiadora que trabalha sobre máscaras da América Latina. Além do mais, segundo a responsável, o museu teve um “papel fundamental” para que o Teatro Dom Roberto — forma de teatro itinerante de marionetas com tradição de três séculos em Portugal — tivesse entrado em julho último para Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, o que lhe confere proteção legal.

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Teatro Dom Roberto inscrito no Inventário de Património Cultural Imaterial

Note-se ainda, no que a visitantes diz respeito, que as restrições criadas desde o início da pandemia, incluindo o encerramento total durante os confinamentos, tiveram óbvios efeitos: apenas cerca de 17 mil visitantes no ano passado e pouco mais de sete mil entre janeiro e novembro deste ano, de acordo com números da própria instituição.

Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Claustro do antigo convento que há duas décadas deu origem ao Museu da Marioneta, antes e depois das obras de reabilitação e adaptação

ARQUIVO FOTOGRÁFICO DE LISBOA

Uma questão de espaço

A equipa é pequenas: apenas 12 pessoas, que “trabalham imenso”, qualifica Ana Paula Correia. A diretora completa em janeiro o seu primeiro ano à frente do museu. É doutorada em história da arte pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, e foi escolhida através de um concurso público da EGEAC, que recebeu 121 candidaturas. Tem um mandato de dois anos. Sucedeu a Maria José Machado Santos, que morreu em abril do ano passado, aos 59 anos, e tinha sido fundadora do museu. Criara-o a partir da coleção de Helena Vaz, marionetista e artista plástica que por sua vez, noutra zona da cidade, iniciara um museu de marionetas em 1987. Naquela época, o museu era privado, ficava perto do bairro da Graça e estava integrado na Companhia de São Lourenço e o Diabo, fundada em 1973 por Helena Vaz, José Alberto Gil e Fernando Serafim (companhia sucessora da Ópera Buffa, de 1973).

As coleções cresceram exponencialmente nestas duas décadas. Em novembro de 2001 eram 800 peças. Hoje são cerca de cinco mil, em grande medida reforçadas pelo depósito de obras feito em 2008 pelo colecionador Francisco Capelo (conhecido como responsável pela Coleção Berardo nos anos 90). O que não cresceu foi o espaço expositivo, onde estão cerca de três centenas de obras. E isso começa a ser um problema.

A diretora diz-nos que não há maneira de apresentar ao público certas peças de grandes dimensões que pertencem ao acervo do museu, mas mudar para um outro edifício “não acontecerá tão depressa”, reconhece. “Este museu tem muitas condicionantes e seria muitíssimo interessante se um dia aparecesse um espaço onde pudéssemos expor mais peças. Ter um museu, que é um espaço de encontro, num convento, que era um espaço de clausura, faz com que tenhamos de jogar com pólos opostos”, analisa.

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A visita do Observador é guiada por ela e também por Maria Carrelhas, adjunta da direção e profunda conhecedora do museu e da sua história, já que participou na instalação, há 20 anos. O Convento das Bernardas, onde estamos, começou a ser construído em meados do século XVI por decisão do rei D. João IV. Foi praticamente arrasado pelo Terremoto de 1755 e depois reconstruído, segundo informações da Direção-Geral do Património Cultural. Esta zona da Madragoa chamava-se à época Bairro do Mocambo e aqui viviam escravos livres vindos de África. Daí que o mosteiro já tenha sido conhecido como Abadia ou Real Mosteiro de Nossa Senhora da Nazaré do Mocambo.

O edifício foi comprado em 1850 por Joaquim Lopes Carreira de Melo, para instalar um colégio, depois tornado Liceu Politécnico. Foi sala de cinema e espetáculos a partir de 1924 e por aqui passou Hermínia Silva nos primeiros passos como fadista. Sede de banda filarmónica, carpintaria, finalmente prédio de habitação. Há 40 ou 50 anos chegaram a estar aqui 500 pessoas em autênticas barracas. O claustro estava entaipado, grassava a insalubridade.

Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Núcleo de máscaras africanas foi depositado em 2008 pelo colecionador Francisco Capelo

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A Câmara de Lisboa comprou o imóvel em 1998, recuperou-o e tratou da transferência do Museu da Marioneta. “No início de 2001, o espólio do pequeno museu, tão curioso quanto caótico, sai da Graça, junto ao Castelo, e instala-se no antigo Convento das Bernardas, onde permanece até hoje”, recordou há dias a diretora num texto para a newsletter do museu. “É o início de um trabalho imenso de recuperação de arquivos e documentos dispersos, catalogação, conservação, restauro, organização e construção de uma narrativa museológica.”

A inauguração propriamente dita deu-se a 28 de novembro de 2001. À época a imprensa referiu-se a uma “reabertura”, tendo em conta que o museu original era de 1987 — daí que os 20 anos que agora se assinalam sejam os da fase no Convento das Bernardas. Com a reabilitação do imóvel foram realojadas 34 das famílias que aqui tinham vivido. Estão em casas sociais nos andares superiores, vizinhos de cima do museu. “Creio que é um exemplo único a nível europeu e extremamente interessante. Convive aqui uma vertente social com um projeto cultural”, comenta a diretora, acrescentando que os moradores costumam assistir às atividades do museu. Paredes-meias fica ainda o restaurante A Travessa.

Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Máscaras carnavalescas e de outros ritos pagãos compõem o núcleo dedicado à região das Américas

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“Não é qualquer pessoa que as sabe manipular”

A forma como as peças estão dispostas na exposição permanente leva-nos a “uma viagem mais geográfica do que cronológica, em que vamos do oriente ao ocidente”, resume Ana Paula Correia. É uma história da representação teatral com marionetas e dos artefactos originalmente relacionados com ritos e cerimónias religiosas de diversos povos.

Logo ao início do percurso surge um núcleo de marionetas de Java, na Indonésia. São as Wayang Cepak, feitas em madeira e tecido, ligadas à implantação do Islão naquelas paragens a partir do século XVI. As legendas ao lado das peças dão-nos o contexto. Parece ser necessário passar horas a olhar cada uma das obras, para melhor compreendermos o detalhe das expressões, das vestes, das cores, dos acessórios.

Vamos passar por personagens do Teatro Khon, de Banguecoque. Marionetas de sombra da Turquia feitas em pele de camelo e com pigmentos vegetais. Marionetas de sombra da China, em pele de burro, madeira, metal. Máscaras de madeira do Sri Lanka, que representam demónios das doenças e das curas (num ritual chamado “sanni yakuma”). Máscaras de madeira do Teatro Noh japonês do século XVIII.

A visita prossegue. A penumbra e a luz branca sobre as peças, que por sua vez estão atrás de vitrines, tornam a viagem misteriosa. Será que estas representações de pessoas e de entidades sobrenaturais estão mesmo inanimadas? De repente, estamos junto às marionetas de fios da Birmânia, criadas no fim século XIX: a serpente, o elefante, o alquimista. “Mexem os olhos, a boca, as mãos e os pés”, comenta Maria Carrelhas. “Têm 12 fios, não é qualquer pessoa que as sabe manipular, exigem que os mestres passem décadas a estudar esta arte.”

Entretanto, a passo largo, surgem as marionetas de água do Vietname, feitas em madeira e datadas das últimas décadas do século XX. Hoje são apresentadas em lagos e piscinas e constituem atrações turísticas, mas a sua origem está nos campos de arroz. O manipulador com água pelos joelhos, atrás de biombos de bambu, a operar os autómatos por meio de longas varas.

Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Geografia e não cronologia: percurso do visitante começa a oriente e vem até Portugal

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Na zona de marionetas da Europa, temos exemplares espanhóis, alemães, franceses, belgas, com autores atribuídos. A disposição lembra casas de bonecas. Não faltam os cavaleiros sicilianos, já que em Palermo e na Catânia é muito forte e antiga a tradição de marionetas de vara. Um pequeno corredor leva-nos a África, com exemplares da Coleção Francisco Capelo que mostram representações de animais de caça e artefactos de rituais de iniciação do Mali. Noutro corredor, as Américas: uma máscara da Colômbia usada no Carnaval de Barranquilha, outra do Equador usada na festa popular Diablada Pillareña, símbolo da resistência mestiça face à religião católica, diz a legenda. E por aí fora.

“Marionetistas acabavam por denunciar problemas sociais”

Por fim, chegamos a Portugal. É um dos núcleos primordiais do museu, pois tem origem na coleção que Helena Vaz começou a exibir no fim da década de 1980. Vemos os Bonecos de Santo Aleixo, que terão nascido em Vila Viçosa no fim do século XVII. As marionetas de luva de meados do século XIX criadas por Faustino Duarte. Os bonecos de fios e de luvas dos anos 1940 e 1950 criados pelo ribatejano Manuel Rosado. À passagem, a diretora destaca que “os marionetistas portugueses do século XIX e da primeira metade do século XX atuavam sobretudo em zonas rurais, tinham a função cultural de levar o teatro às pessoas e acabavam por denunciar problemas sociais”. A marioneta teve, portanto, uma “ação política”. “Por detrás da farsa, faziam críticas ao padre, a figuras da aldeia, às condições de vida, a certas opções políticas”, acrescenta.

Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR Reportagem no Museu da Marioneta, a propósito do seu 20º aniversário. Lisboa, 24 de Novembro de 2021. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Ana Paula Correia, diretora, e Maria Carrelhas, adjunta da direção, que esteve ligada à criação do Museu da Marioneta. Nas reservas estão cerca de 4.500 peças

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Depois de mais de uma hora de viagem, ainda temos tempo para espreitar o Laboratório das Artes, sala onde funcionam ateliers de trabalhos manuais e onde sobretudo a miudagem corta e cola para criar réplicas de máscaras e fantoches. E por fim vamos às  reservas — zona que o público habitualmente não vê. Há estantes de metal do chão ao teto, feitas de propósito para este fim, onde descansam milhares de peças acondicionados em caixas de plástico. Nota curiosa: marionetas vindas do Nepal chegaram ao museu com panos e atilhos na cara, como que em respeito à figura humana que ali está em eterno descanso.

O facto de cada peça ser composta por materiais muito diferentes (metal, tecido, pele, madeira, papel, etc.) faz com que seja ainda mais exigente a conservação. Segundo Maria Carrelhas, a temperatura da sala de reservas tem de estar entre 20 a 25 graus e a humidade relativa do ar deve rondar 50 a 55%, o que é controlado através de aparelhos próprios aqui instalados. Um conservador-restaurador, de fora do museu, tem por missão fazer a “limpeza, consolidação e monitorização sistemática” de todas peças. “Grande parte delas está em muito bom estado”, refere a diretora, apontando que o museu “não tem um orçamento anual fixo para novas aquisições”, ainda que haja a “a possibilidade de comprar peças se forem realmente interessantes e relevantes”. Aí a direção tem de fazer a proposta à administração da EGEAC.

Em fim de visita, cabe ainda perguntar se o teatro de marionetas, tão distante que está dos hábitos culturais do mundo atual, tem sabido reiventar-se. “Neste momento, o que entendemos por marioneta já não é só a marioneta de luva ou de vara ou a manipulação à vista. Cada vez mais é uma prática ligada à música e à performance, intelectualizou-se, até”, resume Ana Paula Correia.

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