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25 anos de “Jagged Little Pill”: para onde foram os dias da raiva?

O álbum de Alanis Morissette faz 25 anos. Para a indústria discográfica representa um recorde de 33 milhões de cópias vendidas. Para uma geração, um grito feminista. Como será ouvi-lo hoje?

Aqui há uns meses dei por mim a citar a cantora Alanis Morissette. Aquilo apanhou-me de surpresa, como se de repente tivesse voltado aos anos 90 – ou os anos 90 me tivessem apanhado aqui. Ri-me sozinha e esqueci o assunto. Até que a situação – e a citação – se repetiram. Uma, e outra, e outra vez. Sempre do nada, sem aviso, a precipitar-se para as conversas como um chapão para a água. Ninguém achava muita piada. Nem mesmo eu. Impotente, passei a empolar a coisa, com aquela espécie de ironia muito anos 2000: “Como diria Alanis Morissette”, começava por anunciar, “’you live, you learn’.”

Sinto a sua deceção, caro leitor. Não tem a intensidade de um Sófocles, a argúcia de um Eça, nem sequer a profundidade de um Deepak Chopra. Porque não um simples, “viver para aprender”? Penitenciei-me pela referência rasteira. Constatei que nem sempre nos tornamos aquilo que ambicionámos. E concluí, “olha, filha, you live, you learn”.

Esta máxima que me apanhou na curva é um dos versos de “You Learn”, a sétima faixa de Jagged Little Pill, que me lembro de ouvir pela primeira vez teria eu uns 15 anos. Foi também o primeiro álbum internacional da canadiana Alanis Morissette e um dos mais marcantes da década de 1990, com uns retumbantes 33 milhões de exemplares vendidos – fora as incontáveis cópias piratas. Quanto ao tema, é uma cançãozinha pop-rock sobre como devemos viver a vida ao máximo, mesmo que custe, até porque tudo acaba por ser uma aprendizagem. Como diz o título do disco, ele próprio um verso desta canção, são coisas difíceis de engolir, mas que tem de ser. Devo dizer que só aprendi tudo isto agora que o álbum, lançado a 13 de junho de 1995, completa 25 anos e fui voltar a ouvi-lo. Ou, então, aprendi na altura e pelo caminho esqueci-me.

[“You Learn”:]

Há sempre algum receio em regressar a um lugar que, entretanto, se fez memória. As memórias têm vida própria; os discos, livros, quadros permanecem na mesma – só a nossa relação com eles muda. Tornou-se especialmente estranho voltar a este disco em época de pandemia. Se muita coisa mudou nos últimos 25 anos, nos últimos três meses, o mundo carregou no acelerador. Premir o play no Spotify, Avenida Almirante Reis abaixo, e de repente ouvir os primeiros acordes de “All I Really Want” faz da experiência uma espécie de projeção de consciência, como se saíssemos do nosso próprio corpo. O contraste das máscaras que se tornaram paisagem, dos olhos na calçada, do silêncio no ar com toda aquela raiva à solta, tão livre e sem desculpas. “Do I stress you out?”, confronta ela, insolente, logo a abrir. “’Estou-te a ‘stressar’?” Seria isto possível hoje? Faria sentido? ‘Para onde foi toda esta raiva’, perguntei-me, da mesma forma que me interrogo tantas vezes ‘para onde foi todo o dinheiro do mundo, que nos anos 90 nos anunciava um futuro melhor?’ Como é que passámos das carteiras escrevinhadas do liceu para isto?

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Há uma reação epidérmica à nostalgia. A pele arrepia-se. Eu nem gostava assim tanto do disco. Tal como a maior parte das pessoas da minha geração, lembrava-me de “Ironic”, uma dor de cabeça para os professores de português do mundo, pela definição pouco correta da figura de estilo. Lembrava-me de “You Learn”, claro. De “Hand in My Pocket”, também. E aos poucos fui percebendo que me lembrava do álbum quase todo. Sem nunca o ter comprado, sem ter Internet, muito menos Spotify e, muito provavelmente, sem haver MTV lá em casa. Haveria uma cassete gravada? Parece a única hipótese possível. Ou talvez não.

Morissette nunca foi uma estrela pop como Britney Spears, nem um ícone rock como os Pearl Jam. Era uma miúda de risco ao meio e camisa de flanela xadrez com uma voz nem sempre controlada que alguns adoravam criticar e as garotas tentavam imitar. Falava sobre a própria vida.

Jagged Little Pill tem daquelas histórias que a gente adora. Morissette já tinha lançado dois discos no Canadá, o primeiro muito bem-sucedido, o segundo considerado um flop comercial, quando se vê sem qualquer contrato discográfico. É aconselhada a mudar-se de Otava para Toronto. Contacto puxa contacto e chega aos ouvidos do produtor Glen Ballard, que já trabalhara, entre outros, com Michael Jackson, e a convida para gravar o novo trabalho no seu estúdio, no Vale de São Fernando, perto de Los Angeles. Trabalham juntos durante mais de um ano, ele elogia a maturidade dela, as ideias arrumadas, a disposição para tornar os temas mais comerciais. Ela tem 19 anos, a caminho dos 20. Terá 21 quando o disco sair, por fim, depois de várias negas de outras tantas editoras, até que uma acredita nela, a Maverick, de Madonna. Seguem-se, não um, não dois, não três, mas seis singles, seis prémios Juno, quatro Grammy, incluindo álbum do ano. Até hoje, comercializaram-se os tais 33 milhões de cópias. Entre as mulheres, só Shania Twain teve um álbum mais vendido, Come On Over. Surpreendido? Eu estou.

Nos anos 90 não se tinha acesso a tanto trivia sobre músicos e canções. Intrigou-me este sucesso absoluto. Morissette nunca foi uma estrela pop como Britney Spears, nem um ícone rock como os Pearl Jam. Era uma miúda de risco ao meio e camisa de flanela xadrez com uma voz nem sempre controlada que alguns adoravam criticar e as garotas tentavam imitar. Falava sobre a própria vida. Angústias existenciais, fins de relacionamentos, planos que dão para o torto. Nunca deixou de cantar nem de compor, mas nunca se tornou uma vedeta. Qual seria o poder magnético deste álbum? E porque tinha eu voltado a citá-la, sem dar por isso, quase 25 anos depois?

[“You Oughta Know”:]

Bom, sobre esta última pergunta, tenho uma suspeita. Em dezembro passado, estreou-se na Broadway, em Nova Iorque, o musical com o mesmo nome inspirado em Jagged Little Pill. E eu estivera a ler sobre isso. Sobre o sucesso. Sobre a pertinência. Sobre como era o musical mais “woke” desde “Hair”, no sentido de alerta para as questões sociais. Sobre como quem escrevia o libreto era Diablo Cody, a argumentista de “Juno”, e de como Morissette e Ballard assinavam as canções. Sobre como este álbum nunca tinha deixado de fazer sentido. Talvez mais agora do que então, atrevo-me a acrescentar.

Morissette surge naquilo a que se poderá chamar o pós-grunge. E a atitude do álbum vai beber ao riot grrrl, o movimento underground que fez do punk feminismo ou vice-versa. Talvez já tenha ouvido falar das Bikini Kill ou das Sleater-Kinney. Em Jagged Little Pill tudo é mais suave e comercial – ainda assim, muito mais visceral que a maior parte do pop-rock produzido hoje. Morissette veio dar a uma geração de mulheres a permissão para estarem zangadas – e não o esconderem. Veio mostrar que vulnerabilidade não é fragilidade. E, sobretudo, que a música é uma forma de catarse por excelência.

A raiva voltou aos poucos a deixar de ser aceitável. Era um sinal de fraqueza. Sobretudo entre as mulheres. Porque um homem zangado é alguém que se indigna e uma mulher que se exalte é uma histérica. A própria Alanis foi acusada disso – sobretudo, por homens.

Se viveu a adolescência ali nos anos 90, talvez saiba do que falo. Houve uma altura, em que achámos que igualdade entre homens e mulheres estava de facto ao nosso alcance, se é que já não existia. Ajudava o otimismo generalizado. Havia dinheiro, fundos europeus e a Expo’98. Alanis Morissette, que hoje há quem defenda ter feito o álbum mais feminista dos anos 90, pode ter sido um argumento a favor. Hollywood também contribuiu, com filmes como “Uma Mulher de Sucesso”, ainda nos 80s, embora “Thelma and Louise” tenha envelhecido muito melhor. E, assim como assim, já tinham passados os anos do movimento feminista. A sociedade ria-se das mulheres que supostamente teriam queimado sutiãs. A raiva voltou aos poucos a deixar de ser aceitável. Era um sinal de fraqueza. Sobretudo entre as mulheres. Porque um homem zangado é alguém que se indigna e uma mulher que se exalte é uma histérica. A própria Alanis foi acusada disso – sobretudo, por homens.

Não deixa de ser curioso – e ao mesmo tempo triste – que o ressurgimento do movimento feminista, já no século seguinte, se cristalize numa realidade tão quotidiana como “eu também”. Eu também fui vítima de assédio, eu também tenho medo de andar na rua sozinha à noite, eu também tenho menos oportunidades de trabalho que os homens, sobretudo se for mãe. Eu também. #Metoo. Não estamos a falar de dados estatísticos, de números concretos. Porque para lá chegarmos, a essa igualdade real, seria preciso que não houvesse a necessidade de confessar factos e realidades que se mantêm tão prosaicos.

[“Ironic”:]

A dada altura do caminho, a raiva deixou de ser aceitável. Vieram as redes sociais e filtros que tornam tudo mais bonito e aceitável. Camadas sobre camadas. De discurso, de juízos de valor, de vergonha. O reinado da ironia. Ou da simples indiferença. Desde que fosse, ou parecesse, cool. Também na música, com a melancolia a tomar conta do rock independente e sabe-se lá o quê a dominar a pop. Haverá alguma banda que nos remeta mais depressa para os anos 90 que os Rage Against the Machine?

Entretanto, a raiva sobreviveu e foi ganhando força em ambientes mais insalubres. As caixas de comentários dos jornais, os movimentos populistas, a irracionalidade. E só há poucos anos voltou a ser falada como poder revolucionário, justamente pelos movimentos feministas. Livros como Rage Becomes Her, lançado em 2019, voltam a defender essa energia, não como força destrutiva, mas como combustível para uma mudança positiva. Ou, como diria Alanis Morissette, “All I really want is some justice.”

Não consegui ouvir Jagged Little Pill muitas vezes seguidas. “All I Really Want” é uma grande faixa. “You Oughta Now” e “Forgiven” têm uma energia noventeira. Percebi por que razão em tempos tinha gostado de “Ironic”. Mas há em Jagged Little Pill muita água com açúcar. Vale-nos justamente a crueza e a imperfeição, aqueles momentos raros em que um disco se torna a voz honesta de um artista – e de uma geração. Ou, como dizia uma amiga, “não sei se ando mais nostálgica, mas parece que agora percebo de forma mais clara o que ela quer dizer.”

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