Aos 10 minutos do Brentford-Manchester United de sábado, Cristiano Ronaldo perdeu uma bola no seu meio-campo; o Brentford rodou-a na direcção de Josh DaSilva, que fez um incursão pela direita até notar que no espaço entre si e a defesa, onde devia estar o médio interior direito do United (Fred), havia apenas o vazio; DaSilva puxou a culatra atrás, a bola saiu rasteira e com força mas David De Gea, guarda-redes do United estava lá para agarrar – só que a bola passou-lhe entre os braços e entrou mesmo na baliza.
A liga de futebol mais espectacular do mundo não se faz apenas de gestos técnicos brilhantes, como o golo de trivela de Kevin DeBruyne no 4-0 da vitória do City contra o Bournemauth – também vive de frangos e de todos os erros (a perda de CR7, o mau posicionamento de Fred) que culminam no frango. E faz-se, sobretudo, do que se seguiu nos 25 minutos seguintes: uma sucessão de erros calamitosos do United na saída de bola, cantos em que um central de 1,90m (Ben Mee) ganhou de cabeça a um central de 1,75m (Lisandro Martinez) e um contra-ataque sumptuoso.
Quem olhar para a lista de vencedores dos últimos 30 anos (feitos hoje) da Premier League e depois for ler os resultados da última jornada da Premier tem desculpa para o seu estado de surpresa. Como é que o Manchester United, o clube com mais títulos nesse período de 30 anos, perde 4-0 fora com o Brentford, que está na sua segunda época na Premier – e como é que perde jogando um futebol miserável?
Como em todas as outras ligas, o dinheiro costuma definir os primeiros lugares e também tem sido assim nos últimos anos: o City e o Liverpool são os que mais investem, seguidos de Chelsea, Arsenal e Tottenham. Mas o United investe tanto como City e Liverpool e o ano passado acabou em sexto.
Este é um dos fascínios da Premier: o dinheiro compra quase tudo mas não compra tudo; os clubes pequenos não são submissos face aos grandes e pressionam-nos em cima; na Premier não há descanso até ao árbitro apitar, todos os clubes lutam até ao último segundo – há dois anos o West Ham foi a casa dos Spurs e, estando a perder 3-0 ao intervalo e 3-1 à entrada dos últimos cinco minutos marcou o golo do empate no último lance do jogo, num remate de primeira de fora da área.
O parágrafo acima enumera algumas das razões pelas quais a Premier é a liga de eleição mundo fora: os golos espectaculares de fora da área, árbitros que marcam menos faltas que os continentais, o que provoca mais caos e luta incessante; a imprevisibilidade (menor desde que Pep pegou no City). As outras razões pelas quais a Premier é a liga de eleição mundo fora são estruturais: a Premier tem mais dinheiro, pelo que tem os melhores jogadores, os melhores treinadores – e o melhor produto.
Nem sempre foi assim – aliás, foi por não ser assim que a First Division deu lugar à Premier: nas décadas anteriores à inauguração da Premier League o futebol inglês fora banido das competições europeias, à conta do hooliganismo, os clubes ingleses tinham menos dinheiro do que – digamos – os clubes italianos (cuja liga era, então, a rainha) e o futebol praticado era pré-histórico: bola para o mato e luta na lama.
Tal como hoje existe um Big Six, na altura havia um Big Five: Manchester United, Everton, Liverpool, Arsenal e Spurs. E o Big Five sonhava com outra coisa, nomeadamente outro produto, mais dinheiro. A TV por cabo espalhava-se pelo mundo inteiro, e os cinco grandes imaginavam contratos de cedência de direitos televisivos que os tornassem muito mais ricos que os restantes clubes.
Estavam certos no que toca ao dinheiro disponível para transmissões televisivas – a Sky acabou por conquistar os direitos por 304 milhões de libras durante cinco anos (o equivalente, na altura, a cerca de 350 milhões de euros, na moeda atual), correspondentes a 60 jogos por época. Houve quem achasse que a Sky encerraria portas num ano – mas em 1993 teve 63 milhões de libras de lucro. Em 2015 a mesma Sky pagou 4,2 mil milhões de libras por uma parte dos direitos televisivos da Premier – um sinal de que o produto foi sendo vendido a mais e mais países. E nisto a língua importa: nenhum português conseguiria dizer o nome de um jogador chinês, por melhor que o futebol chinês fosse, mas não é assim tão difícil dizer Wayne Rooney, porque toda a gente ao cimo da Terra sabe falar inglês.
A 15 de agosto de 1992 o nosso conhecido Brian Deane marcou o primeiro golo da Premier League, pelo Sheffield United – o adversário? O Manchester United, que perdeu 2-1 fora mas foi campeão no final da época. Com o influxo de dinheiro das transmissões televisivas (distribuído de forma mais equitativa do que o Big Five esperava) a Premier foi transformada num “produto comercial”, o que implicou melhorar as infraestruturas, apostar na ciência (nutricionismo, medicina desportiva, estatísticas) – mas também importar treinadores e jogadores de eleição.
Um desses treinadores (que introduziu nutricionistas no clube, como um elemento essencial para otimizar a condição física dos jogadores e diminuir as lesões) foi Ársene Wenger, que tornou o Arsenal o único clube a conseguir dar luta ao United até à ascensão do Chelsea treinado por José Mourinho. A maior das recompensas veio na época 2003/04, quando o Arsenal se tornou na primeira – e única até agora – equipa a acabar um campeonato sem derrotas (e foi campeão).
Era uma equipa cheia de craques: Leman na baliza, Patrick Vieira no meio campo, Robert Pires e Ljungberg nas alas, Thierry Henry e Bergkamp na frente – estes são alguns dos exemplos do talento estrangeiro que o dinheiro da TV trouxe para a Premier (e para o Arsenal, no caso). Pode quase dizer-se que, tirando Xavi, Messi e Iniesta (e agora Mbappé), os melhores passaram pela Premier: Cristiano Ronaldo, Sami Hyypia, Van Der Sar, Zola, Roy Keane, Peter Schmeichel, Drogba, Fabregas e, mais recentemente, David Silva, Aguero, Yaya Touré, DeBruyne, Salah e Mané. Mas o maior de todos foi Cantona.
O francês, que protagonizou um dos maiores escândalos da Premier, quando pontapeou um adepto nas bancadas que o havia insultado, tornou o Manchester United numa equipa superior: foi adquirido a meio da primeira temporada da Premier League (aos então campeão ingleses, o Leeds) e deu a volta ao United ao ponto de o clube ir a tempo de ainda receber as faixas nessa época.
A chegada de Cantona estabeleceu o United como maior clube inglês, apenas importunado pelo Arsenal – e pelo Blackburn Rovers, na época de 95/95, quando Alan Shearer e Chris Sutton formaram a melhor dupla de ataque do campeonato (no meio campo estava Tim Sherwood, que mais tarde substituiu André Villas-Boas como treinador dos Spurs). Em 95/96 Shearer quase repetiu o feito, desta feita na frente do ataque do seu clube de menino, o Newcastle, mas o United acabou por recuperar de 12 pontos de atraso. Ainda assim, essa equipa do Newcastle permanece, juntamente com os invencíveis do Arsenal e com o Blackburn campeão, uma das grandes equipas da Premier.
Uma parte delas são do United – e uma parte das equipas do United tinham uma espinha comum. Gary Naville a defesa direito, nas alas Beckham (na direita) e Giggs (na esquerda) e no meio-campo Scholes e Keane. Ainda é preciso destacar, entre os grandes elementos da fase de ouro do United, jogadores como Vidic e Ferdinand (uma das melhores duplas de centrais da história), Ronaldo, Tevez e Rooney.
Portanto, na contabilidade das equipas míticas temos: Blackburn Rovers, Newcastle, várias iterações do Man United e os Invincibles do Arsenal, sempre com maior domínio do United – até ao Chelsea de José Mourinho em 2004. Esse ano marcou uma nova era na Premier League: os clubes (ou alguns clubes) já eram pertença de milionários, mas Roman Abrahmovic, que comprara o Chelsea poucos anos antes, tinha dinheiro a rodos – e a equipa que montou permitiu a Mourinho dois campeonatos seguidos, com relativo à vontade. Esta foi a segunda fase da Premier League, antes de se falar em fair-play financeiro, quando multimilionários começaram a entrar em cena.
Gradualmente a Premier tornara-se mais apelativa: se o futebol inglês, antes da injecção de dinheiro da televisão, era quase exclusivamente praticado num 4-4-2 primitivo em modo kick-and-rush (chutar para a frente e correr muito), a gradual adição de estrelas foi tornando o jogo inglês mais técnico, enquanto a contratação de técnicos estrangeiros conduziu a uma melhora tática em equipas que, até então, eram muito ingénuas. A facilidade com que Mourinho introduziu o 4-3-3 e passou anos sem sofrer uma derrota em casa apenas porque sabia defender é testemunho dessa ingenuidade.
Mas por mais estrelas e treinadores estrangeiros que desaguem em Inglaterra há uma coisa que nunca muda, porque a força cultural dos adeptos nos estádios (sempre cheios) não o permite. Todas as equipas têm de correr como loucas até ao árbitro apitar para o fim do jogo, sendo que os árbitros apitam muito menos faltas que os continentais – isto torna um jogo disputado por divas em algo muito mais caótico e físico e imprevisível do que o habitual na Europa que não está rodeada por água por todos os lados; se quiséssemos reduzir o sucesso da Premier a uma fórmula, seria esta.
United e Chelsea dominaram os anos seguintes (ao ponto de disputarem uma final da Champions, já sem Mourinho) mas subtilmente o poder começou a mudar: o Manchester City foi comprado por “um grupo económico” de Abu Dhabi – mas na realidade, é o regime dos Emirados Árabes Unidos que está por trás do clube, no que é (declaradamente) uma manobra de relações públicas de um dos regimes mais cruéis e com menos respeito pelos direitos humanos que a humanidade jamais conheceu.
Profissionalmente são exemplares: se inicialmente o clube se limitou a comprar estrelas (David Silva, Aguero, Yaya Touré), anos antes da chegada de Pep Guardiola criaram uma estrutura baseada em ex-dirigentes do Barcelona que revolucionou o clube, das camadas jovens ao scouting; com a adição de Pep, o City tornou-se quase impossível de bater, conquistando quatro em seis campeonatos, embora lhes falte a Champions.
O único clube capaz de dar luta actualmente ao City é o Liverpool, que não podia representar valores mais opostos aos dos Emirados Árabes Unidos – pertence ao Fenway Group, um fundo especializado em desporto, que procura manter a cultura local, ao que não é alheia a contratação de um treinador carismático e de esquerda como Jürgen Klopp. O Liverpool é um exemplo de como gerir um clube – não só vive do dinheiro que gera (ao contrário do City, que vive dos falsos patrocínios de empresas inventadas pelo regime dos Emirados Árabes), como tem a melhor equipa de dados ao cimo da Terra para identificar os jogadores de que necessita: Van Djick e Allison foram comprados com o dinheiro da venda de Coutinho, ninguém diria que Salah ou Mané ou Jota iriam explodir numa frente de ataque repleta de estrelas – mas os dados diziam, e Klopp acredita na sua equipa de dados.
Estamos, agora, na fase pós-multimilionários, na fase em que estados compram clubes. É um passo para lá da fase corporate, em que o United ainda parece viver, preocupado em angariar patrocínios, engagement nas redes, sem reparar que se tornou um destroço em campo graças à falta de estrutura dirigente.
A fase corporate viu todos os clubes serem vendidos a multimilionários, viu os clubes e os jogadores viverem numa bolha cada vez mais rarefeita e afastada dos adeptos comuns. A nova fase vê clubes outrora populares (no sentido de terem uma ligação profunda ao seu povo) como o City e o Newcastle pertencerem a países, e a países cujos regimes são invariavelmente ditatoriais e assassinos.
Durante estes 30 anos, só a La Liga, nos anos de ouro do Barça, e particularmente quando Mourinho estava no Real a morder as pernas a Pep, chegaram perto do encanto da Premier – que entretanto tornou o seu domínio universal. A ausência de um fair-play financeiro permitiu que clubes como o City pudessem pagar muito acima do mercado, deixando todas as outras ligas incapazes de competir com o dinheiro do City (ou do PSG); os únicos que conseguem sequer esboçar um gesto de revolta e competição são os clubes ingleses (ou, na prática, o Liverpool, o mais bem gerido de todos).
São 30 anos de futebol de sonho, mesmo que esse sonho muitas vezes se tenha desenrolado num campo lamacento, numa quarta-feira à noite, em Stoke. Ainda há lama no futebol inglês, mas mais nos bastidores, que permitem que clubes locais se tornem fachadas de regimes deploráveis. Para os românticos o sonho é agora ver os clubes regressarem aos seus verdadeiros donos – os adeptos.