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Se é daqueles que pensa que 2020 é o pior ano de sempre, talvez seja importante pôr as coisas em perspetiva. Veja 1980: no primeiro dia de janeiro, o maior terramoto dos últimos 200 anos em Portugal arrasou Angra do Heroísmo. A revolução do Irão prosseguia com sequestros, reféns, ataques terroristas e, pouco depois, o início da guerra com o Iraque. A Guerra Fria estava no auge e os Estados Unidos boicotavam os Jogos Olímpicos de Moscovo; a URSS prendia Sakharov e a mulher, acusados de atividades subversivas. 18 pessoas morreram e 400 ficaram feridas em confrontos em Liberty City, Miami, quando um grupo de polícias brancos, que tinham espancado até à morte um motociclista negro por infração das regras de trânsito, foi absolvido. Familiar?

Houve aviões a explodir na Arábia, golpes de Estado na Turquia, incêndios em Hollywood e atentados na Alemanha. Morreram Hitchcock, Sartre, Vinícius de Moraes, Steve McQueen, Nélson Rodrigues, Peter Sellers, Henry Miller. Ian Curtis enforcou-se. E, quando se pensava que o ano ia finalmente acabar, o primeiro-ministro morre num suposto acidente de aviação.

Quatro dias depois, um fã que, horas antes, tinha pedido um autógrafo na capa do álbum Double Fantasy, com um exemplar de The Catcher in the Rye de J.D. Salinger debaixo do braço e que não resistiu às “vozes” que lhe diziam o que tinha de fazer, mata a tiro um dos maiores e mais influentes músicos e ativistas pela paz de sempre. Ah! E proibiram a Playboy no Brasil – cá, ainda nem havia. Foi há 40 anos. O homem que o matou está preso, mas é como se estivesse morto; o artista morreu, mas é como se vivesse para sempre. Porque o que deixou, entre a obra e o legado, não tem prazo de validade. A lista que se segue é meramente sugestiva, porque já percebemos: cada fã guarda-o à sua maneira. E os novos que vão aparecendo descobrem sempre um novo olhar sobre Lennon.

Algumas das melhores canções de sempre

Facto. Uns preferirão umas do início dos Beatles, outros do fim, outros da carreira a solo, mas há uma canção de John Lennon para toda a gente. Uma não; uma meia dúzia. Aqui em casa, recomendamos “Come Together”, “I Want You (She’s So Heavy)”, “A Day in the Life”, “I Am the Walrus” ou “Help!”, dos anos Beatles, e “Jealous Guy” e “Mind Games” do tempo a solo. Isto, hoje; amanhã, poderão ser outras dez. Aliás, assim de repente já nos estamos a lembrar de “Norwegian Wood (This Bird Has Flown)”, a cítara de George Harrison e a confissão das infidelidades do autor. Caramba, e o “Happiness is a Warm Gun”? Até para McCartney, a melhor canção do “White Album”. Não dá. Quanto mais pensarmos nisto, mais músicas saem. Ficamos com estas. Vamos em frente. E o “Across the Universe”? E o “Don’t Let Me Down”? E “Instant Karma!” Aaaaaah. Vamos. Depressa!

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O exemplo de liberdade

Podia ter ficado confortavelmente instalado no sucesso instantâneo das melodias pop que punham louco o mulherio, mas passou para a folk, o blues, o rock, o psicadelismo, o que lhe apeteceu. Podia ter ficado confortavelmente instalado na melhor banda de todos os tempos, mas desfê-la com a mesma naturalidade com que a fez e foi fazer o que lhe apeteceu. Podia ter ficado confortavelmente instalado a receber a adoração e bajulação universais, mas afrontou todas as instituições que lhe apeteceu. Andou nu pela rua e fumou berlaites na casa de banho do Palácio de Buckingham. O comum mortal nunca conseguirá ser tão livre assim, mas vale a pena ter o exemplo de Lennon bem presente, sobretudo quando, como hoje, pesamos e repesamos tudo o que queremos dizer ou fazer, com medo da reação dos coros instantâneos de indignados e ofendidos.

Lalalás humanitários

Depois de Lennon, deixou basicamente de ser possível ser-se uma estrela pop e não usar esse palanque, esse alcance e esse tempo de antena para dar voz a causas e tentar fazer passar as mensagens certas. Nas intervenções públicas, no exemplo pessoal, nas canções, Lennon foi talvez o primeiro grande ativista pela paz da sociedade de informação. Deu-nos “Imagine” e “Give Peace a Chance”, entre outras. O mal é que, de então para cá, seguiram-se quatro décadas de lalalás humanitários compostos por gente menos talentosa e, frequentemente, mais oportunista.

O Natal enquanto tempo de reflexão

É claro que não foi exatamente John Lennon quem inventou isto – a questão, aliás, é mais devedora daquele outro senhor quase tão famoso como os Beatles – mas Lennon trouxe-a de volta. No Natal certamente enternecedor, mas consumista em que vivemos há décadas, bem embrulhado, entre outras coisas, em canções fofas e felizes, Lennon conseguiu infiltrar um cavalo de Tróia: “Happy Xmas (War is Over)”, convite a um exame de consciência disfarçado de canção tão fofinha e com tantos sininhos como as outras. E é assim que, ano após ano, antes ou depois da Mariah Carey aos saltos, temos direito a levar com aqueles dois versos de abertura que soam a voz da consciência:

“So this is Christmas
And what have you done?”

Ano após ano. Oportunidade após oportunidade. Já nem ouvimos o resto da canção, ou ela passa a música de fundo. O instrumento solo neste tema é o nosso pensamento, perguntando aqui dentro: então, e este ano? O que é que fizeste de jeito?

Música que podíamos ouvir com os nossos pais

Os nossos pais não a podiam ouvir com os pais deles, mas eles e nós sim. E os nossos filhos, se não quiserem ouvir, bem podem ir procurando casa e arranjando maneira de pagar a renda (quero lá saber se tens 5 anos, Martim Francisco!). A música de Lennon e dos Beatles foi, provavelmente, a primeira vez em que a geração que cresceu depois de Lennon e a que cresceu antes esteve de acordo nesse importante território da vida. Num mundo ideal, teria sido talvez o único concerto a que poderíamos ter ido juntos – e essa imagem, de repente, comove o cronista.

A carreira de Ringo Starr

“Será Ringo Starr o melhor baterista do mundo?”, perguntou, certa vez, um jornalista numa conferência de imprensa com os Fab Four. “Ele não é nem o melhor baterista dos Beatles”, respondeu John, perante um Ringo que quase ia às lágrimas de riso. Ringo era, provavelmente, o único homem normal dos Beatles, o único que não era um génio; Ringo era, no fundo, todos nós. Lennon – não só ele, mas também – possibilitou ao indivíduo comum um lugar a bordo da viagem até ao topo. E Ringo – e nós – estamos-lhe gratos por isso.

O look pitosga sexy

Canções à parte, Lennon foi o porta-estandarte, a salvação, o Messias que libertou os míopes deste mundo para a hipótese de também eles serem tidos por figuras com estilo. Nunca mais óculos escondidos nos bolsos por vergonha, nunca mais trocas embaraçosas de pessoas, casas de banho e autocarros em virtude da questão anterior. Os óculos de ver – não os de massa estilosos a dizer com a roupa ou a contrastar com outra coisa qualquer – frágeis, vulneráveis, a fazer pequeninos os olhos, passaram a ter de ser aceites como adereço e até declaração, statement, afirmação pessoal. O intelectual cool, masculino frágil, encontrou o seu lugar. O cabelinho lambido com risca ao meio permanece opcional.

O alerta Yoko

Com Lennon, aprendemos que, não importa quão bom seja o que tenhamos, quão forte e unido, tudo pode acabar – mesmo que a razão não seja compreendida por todos. Desde o fim dos Beatles que nenhum grupo de amigos avisado subestima razões aparentemente incompreensíveis. Imaginemos que nos separa uma coisa qualquer – por exemplo: a opinião que tenhamos de Pacheco Pereira. É por isso que vamos discutir? Nem pensem. Alguém, avisadamente, lembrará de pronto: “O Pacheco não será a nossa Yoko Ono.”

O rabo de Yoko e o dele próprio

Lennon conseguiu levar o rabo da Yoko e o dele próprio a capa de revista (depois da capa do álbum
Unfinished Music No. 1: Two Virgins, de 1968) – e não foi de nenhuma revista científica. Pensem, amigos: se os rabos deles conseguiram, porque é que nós não havemos de conseguir? O sonho está vivo e Lennon redefiniu-nos os limites da ambição: não ficam no céu, mas bastante mais abaixo.

A capa da Rolling Stone de 23 de novembro de 1968

O lembrete mais importante de todos

“A vida é o que acontece enquanto estamos ocupados a fazer planos.” A frase, frequentemente atribuída a Lennon, é, na verdade, de Allen Saunders, escritor e cartunista norte-americano. No entanto, foi Lennon quem a celebrizou, como mandamento tácito deixado à modernidade, em “Beautiful Boy (Darling Boy)”, canção dedicada ao filho Sean e incluída em Double Fantasy, álbum derradeiro do ex-Beatle e esse que o infame Mark David Chapman pediu a Lennon que autografasse seis horas antes do triste facto que lhe daria um lugar na História. Muita gente papagueia conselhos e mantras de auto-ajuda sem que sejam minimamente exemplo do que pregam; não é o caso. Lennon viveu apenas 40 anos há já 40 anos. Mas o que fez continua a encher-nos de vida desde então.

Alexandre Borges é escritor e argumentista