José Manuel Fernandes. Falam da Covid, mas pensam nas autárquicas

Sem qualquer tipo de pudor, o próximo OE plantou duas medidas que têm como objectivo descarado as eleições de Outubro.

Este é um Orçamento para tempos muitos especiais e de grande incerteza. Falar de grandes números e de grandes previsões não me parece por isso o mais útil dos exercícios. Ainda estamos muito no domínio da bola de cristal.

É também por isso um Orçamento de continuidade de muitas das medidas que foram sendo tomadas para responder à crise da pandemia, umas mais acertadas (por regra as que foram mais influenciadas por Siza Vieira), outras menos avisadas. Na economia ainda não temos o retrato completo do que nos está a acontecer – sobretudo do que está a acontecer a milhares de empresas e empregos – para saber em que estado estaremos quando sairmos disto. O Orçamento não traz ajudas realmente novas e aquilo de que se fala – um aumento do salário mínimo “porque tem de ser” – é mesmo capaz de criar sérios problemas a muitas empresas, pois 2021 não é 2016.

Resta assim a política, e é de política que temos falado nos últimos dias, mesmo quando parece que estamos a falar de Orçamento.

Deixo por agora de parte todo o teatro das negociações com o Bloco e com o PCP, que é muito revelador – tão revelador pois dele até fez parte uma devastadora rábula televisiva de Ricardo Araújo Pereira… – e vamos ao que conta: para o ano há eleições, onde é que elas entram no Orçamento?

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A resposta correcta devia ser: em lado nenhum. Os Orçamentos do Estado não são feitos para ganhar eleições autárquicas. Mentira. Ou pelo menos ninguém disse isso a António Costa.

Sem qualquer tipo de pudor, o próximo OE plantou duas medidas que têm como objectivo descarado as eleições de Outubro. A primeira delas é um filme em reprise: dar aos reformados o seu aumentozito um mês antes da ida às urnas. Ou seja, em Agosto. Já funcionou tão bem em 2017, por que não há-de funcionar igualmente bem em 2021? O PS nunca brinca em serviço e ter escrúpulos na forma como usa os dinheiros públicos – se são os nossos impostos, é bom nunca esquecer – é qualidade que não costuma cultivar.

Portanto, se há um brinde para os reformados, venha o brinde o mais perto possível das eleições autárquicas, que a memória dos eleitores é curta mas assim ainda pode ser que se lembrem dos euritos a mais na carteira.

A outra medida vinha escarrapachada na manchete do Expresso. O nosso benfazejo Governo pretenderia “mexer no IRS para subir salários”. Na verdade o Governo não vai mexer em IRS nenhum, vai sim fazer o que já devia ter feito este ano, que é actualizar devidamente as tabelas de retenção na fonte do IRS.

A manigância está a ser feita a duas velocidades. Primeiro, este ano, as tabelas de retenção ficaram quase na mesma. Não deviam ter ficado, não deviam ter sido actualizadas em apenas 0,3% sobretudo se se pretendia – como Costa afirmava alto e bom som – que, no sector privado, os salários crescessem 2,7%.

Não sei quanto é que, com tudo o que aconteceu, os salários cresceram realmente em 2020. Mas sei qual era o plano do Governo: reter este ano mais IRS para ter mais IRS para devolver nos meses que… antecedem as autárquicas em 2021. Também em 2019 foi isso que aconteceu, ano de legislativas, e também esse ano houve reembolsos mais gordos e também então o povo contente e com mais dinheiro no bolso, “agradeceu”. Não agradeceu muito, porque não deu a maioria absoluta, mas lá deu ao PS mais do que o resultado “poucochinho” de 2015.

É natural que, com a pandemia, a primeira parte do plano tenha saído furada. Só o Governo sabe, só ele controla os números. Por isso é necessário fazer aquilo que nunca se fez: anunciar uma medida que nem sequer integra do Orçamento de Estado. E vender as mexidas nas “tabelas de retenção na fonte” do IRS (que são as tabelas que as empresas utilizam para descontar o IRS nos nossos salários) como uma mezinha para “subir salários”.

Só que não é verdade, é mentira: sem alterar as tabelas do IRS, e essas não vão ser alteradas ao contrário do que estava previsto, no final do ano acabaremos a pagar o mesmo. A questão é saber se pagamos mais cedo ou mais tarde, mas no fim vai dar ao mesmo.

E assim se cozinha um Orçamento do Estado e os títulos sobre esse mesmo Orçamento. Enfim, são os tempos que vivemos.

Fernando Alexandre. A herança de Mário Centeno

Este orçamento confirma que a saída de Mário Centeno do Ministério das Finanças não mudou a política seguida até ao final do primeiro semestre de 2020.

O Governo acredita numa forte recuperação da economia em 2021, uma recuperação em V. A verificar-se, a recuperação não deverá muito às medidas orçamentais apresentadas. A descida de impostos é simbólica e com efeito reduzido na atividade económica. De facto, o governo espera poder reduzir o défice orçamental e o peso da dívida no PIB através de um forte aumento da receita fiscal.

Por outro lado, os aumentos da despesa são contidos, embora com efeitos positivos na economia. O novo apoio social protegerá o rendimento dos mais vulneráveis. Do investimento público espera-se o maior impulso. No entanto, o défice e a dívida em percentagem do PIB apresentam forte redução.

Este orçamento confirma que a saída de Mário Centeno do Ministério das Finanças não mudou a política seguida até ao final do primeiro semestre de 2020. O objetivo de consolidação das contas públicas parece prevalecer.

Paulo Ferreira. O fantasma da pasta de dentes

A boa notícia é que começámos a aprender alguma coisa com as crises em que nos tornámos profissionais: as despesas de hoje são os impostos de amanhã e as despesas estruturais e rígidas de hoje serão as bancarrotas do futuro.

A analogia não é original mas é muito útil. Todos sabemos que é muito fácil tirar a pasta de dentes do tubo. O problema é tentar voltar a colocá-la lá dentro. Essa é tarefa quase impossível.
Nas finanças públicas há fenómenos semelhantes: é muito fácil aumentar a despesa, mas é um enorme sarilho tentar cortá-la e fazê-la regressar a níveis anteriores.

O governo sabe disto. Este Orçamento do Estado para 2021 está notoriamente artilhado com cuidados para o pós-Covid. Porque, esperamos todos, a epidemia há-de passar, haveremos de regressar à nossa normalidade e nessa altura ainda queremos ter economia e finanças públicas.

Não se esperava outra coisa deste Orçamento que não fosse o seu carácter anti-cíclicio – se há uma crise grave que não tem origem no Estado, então este deve colocar recursos para a combater e amortecer. Podemos discutir se as medidas certas são estas ou algumas parecidas ou se a sua intensidade está bem doseada ou não. Mas defender rendimentos e o impacto social do que estamos a viver é uma das funções centrais de um Estado. Se não servisse para isto serviria então para quê?

Mas as medidas mais relevantes foram desenhadas com prazo de validade curto ou com um impacto orçamental nulo ou limitado. Nova prestação social extraordinária? Sim, é importante acorrer aos que não dispõem de apoios sociais relevantes, mas para já está limitada a seis meses. Crédito pelo IVA pago em restaurantes, cultura e hotéis? Sim, mas com descontos apenas no segundo trimestre e com um bónus para o Estado: vão aumentar os pedidos de facturas e vai cair a evasão fiscal. Redução da retenção na fonte de IRS? Sim, vamos deixar mais dinheiro no bolso das pessoas durante o ano crítico de 2021, mas sem que isto tenha qualquer impacto orçamental. A única coisa que se está a fazer é reduzir um pouco o financiamento forçado que os contribuintes fazem ao Estado durante o ano para acertarem as contas, sem juros, em meados do ano seguinte.

E, depois, há muitas promessas e boas intenções que vão depender da boa vontade do ministro das Finanças e da evolução da conjuntura, incerta como em poucas ocasiões. A inscrição de um crescimento de 22% do investimento público neste orçamento ou de contratações de pessoal aos milhares para a Educação ou Saúde só pode ser recebida com um sorriso por quem sabe o que se passou nos últimos cinco anos. Vamos ver se é para cumprir ou para voltar a incluir no próximo orçamento.

A boa notícia é que começámos a aprender alguma coisa com as crises em que nos tornámos profissionais: as despesas de hoje são os impostos de amanhã e as despesas estruturais e rígidas de hoje serão as bancarrotas do futuro.

A má notícia é que partimos para mais este choque com uma dívida pública de 120%, que este ano vai aproximar-se dos 135% para no próximo ano cair – esperemos que sim – para os 131%.

Já aprendemos que é bom ter as contas do Estado equilibradas em momentos de crescimento económico para que os estabilizadores automáticos possam funcionar em tempo de crise sem andarmos sempre com o coração nas mãos. Falta-nos ainda perceber que estes níveis de dívida pública são insustentáveis e uma permanente espada sobre a cabeça.

Inês Domingos. Portugal de novo num triste pódio

Depois de anos de desinvestimento persistem dúvidas sérias de que o Governo tenha capacidade para implementar um programa de investimento que seja reprodutivo para a economia no futuro e não seja uma mera corrida à despesa para gastar os fundos.

Uma primeira leitura do orçamento suscita logo três questões.

Desde logo, segundo as previsões macroeconómicas do Governo, o PIB português cairá 8,5% este ano e recuperará 5,4% em 2021. Isto representa um alisamento face à previsão da Comissão de julho, que apontava para uma queda de 9,8% e uma recuperação de 6%. Mas, mesmo com esta previsão mais otimista, Portugal ainda assim encontra-se entre os países que acumulam uma recessão mais severa nestes dois anos (em oitava posição).

As previsões económicas do Governo perante esta crise sem precedentes são, naturalmente, muito incertas. Mas o que parece ser incontestável é que Portugal se encontrará no já habitualmente triste pódio dos países da União Europeia que sofrerão uma maior recessão e uma menor retoma. E essa posição face aos outros indica que não conseguimos resolver os problemas de fundo que ainda afetam a nossa economia. Infelizmente, os acordos com o Governo à esquerda vão manter a rigidez da nossa economia, especialmente onde ela é especialmente gravosa — no mercado de trabalho. O Governo já cedeu em dois aspetos neste Orçamento: por um lado impediu a caducidade dos acordos coletivos de trabalho durante a crise, mas o PCP quer mais e não hesitará em exigir que esses acordos coletivos se tornem permanentes em negociações futuras. O Bloco também quer ir além da proposta atual do Governo no que diz respeito à manutenção do nível de emprego em 2021 nas grandes empresas que beneficiam dos apoios do Estado e quer assinar um acordo de longo prazo sobre a lei laboral, proibindo os despedimentos em todas as empresas com lucros que beneficiem de apoios do Estado.

Por fim, uma nota sobre o investimento público. É positivo que o Governo recue nas suas opções do passado e compreenda finalmente que o investimento público é a despesa do Estado que tem mais capacidade de afetar positivamente a economia no futuro. Assim, depois de um corte de 33% do primeiro Governo de António Costa face ao Governo PSD/CDS, o ministro das Finanças antecipa agora um crescimento do investimento acumulado em 2020 e 2021 de 50% face ao valor de 2019. Isto só é possível graças aos fundos europeus e irá permitir colmatar muitas falhas dos últimos anos, especialmente na educação e na saúde. No entanto, depois de anos de desinvestimento persistem dúvidas sérias de que o Governo tenha capacidade para implementar um programa de investimento que seja reprodutivo para a economia no futuro e não seja uma mera corrida à despesa para gastar os fundos.

Paulo Trigo Pereira. OE 2021: como sair desta pandemia?

Não parece haver dúvidas que existe uma forte componente social neste orçamento, alinhada com as linhas programáticas socialistas. A questão é saber se há os incentivos corretos para as empresas que são quem mais cria emprego e riqueza e quem financia, direta e indiretamente, este Estado social

Um bom Orçamento deve estar integrado numa estratégia económica clara e coerente (que deveria estar na proposta de Grandes Opções do Plano também apresentada ontem), assentar num cenário macroeconómico realista, ter previsões consistentes com esse cenário, nomeadamente ao nível fiscal, e medidas de política económica, social e ambiental alinhadas com as linhas programáticas do governo e, naquilo que tem a ver com fundos europeus, de acordo com as prioridades da União Europeia, nomeadamente o Pacto Ecológico Europeu. O Orçamento de Estado 2021, o sexto elaborado por João Leão, tem de resolver um problema: qual a rapidez com que o Estado deve fazer o phasing out de uma economia que ainda está muito dependente dos apoios do Estado, quando por um lado a pandemia continua a minar vários setores económicos e por outro permanece a vulnerabilidade do país associada ao excessivo endividamento público.

A resposta do governo, não escrita, mas implícita, parece ser a de que o apoio à economia dependerá da disponibilidade de fundos europeus e de uma trajetória para o saldo orçamental (a passar de -7,3% PIB em 2020 para -4,3% em 2021) consistente com alcançar um quase equilíbrio orçamental quando o produto regressar aos níveis de 2019, ou seja em 2023.

O cenário macroeconómico parece ser realista e prudente, não apenas porque é endossado pelo Conselho de Finanças Públicas, mas porque após a queda esperada do PIB real em 2020 (de 8,5%) se prevê uma recuperação (de 5,4%), e esta nem sequer é dinamizada sobretudo pelo consumo privado, que representa cerca de dois terços do PIB, e se prevê que cresça moderadamente (3,9%). Apenas para referência, o aumento nominal das remunerações com pessoal na administração central estima-se que seja de 4,7%.

Este é claramente um Orçamento, num ano de transição pandémica, de apoio aos rendimentos das famílias por razões sociais e económicas. A medida de redução das retenções na fonte de IRS é correta, do ponto de vista macroeconómico pois estimula a procura em 2021, em detrimento de 2022, e se peca é por ser tardia e insuficiente. O Estado não deveria almejar a devolver rendimentos aos contribuintes, mas a reter o que espera liquidar dos impostos. Politicamente tem sido sempre atrativa a primeira opção.

Outras medidas que contribuem para a melhoria da liquidez das famílias, sobretudo as mais vulneráveis, são a nova prestação do apoio extraordinário aos rendimentos dos trabalhadores, o aumento do valor mínimo do subsídio de desemprego ou o aumento extraordinário das pensões. Para a redução dos encargos obrigatórios familiares de salientar a gratuidade nas creches para mais crianças de famílias de baixos rendimentos, a baixa do IVA da eletricidade (defendo esta redução, mas não da forma apresentada no OE).

Não parece haver dúvidas que existe uma forte componente social neste orçamento, alinhada com as linhas programáticas socialistas. A questão é saber se há os incentivos económicos corretos para as empresas que são quem mais cria emprego e riqueza e quem financia, direta e indiretamente (através dos salários), este Estado social. Há vários tipos de medidas do Orçamento, que têm impacto na economia e nas empresas em particular, quer pela diminuição de receita pública (e.g. devolução do IVA no alojamento, cultura e restauração ou o incentivo fiscal de fomento a internacionalização), quer medidas que não têm impacto orçamental direto e que são anunciadas (e.g. dinamização do mercado de capitais ou colocar em velocidade de cruzeiro o novo Banco de fomento). Apesar da subida na hierarquia do governo de Siza Vieira, sinalizando, e bem, uma maior prioridade a ser dada à economia, não se vislumbra ainda uma estratégia coerente e integrada para o programa orçamental da economia.

Este orçamento tem, como todos, variáveis fáceis de estimar — despesas com pessoal, pensões, receitas fiscais e contributivas — e outras sujeitas a maiores riscos na fase de execução: investimento público, execução de garantias do Estado, e necessidades de capital das empresas públicas. A estimativa para a evolução da dívida pública – cujo peso se prevê diminua de 134,8% para 130,9% do PIB- é a variável onde considero haver mais otimismo governamental. Apesar disso, considero o OE2021 genericamente realista à luz da informação disponível, mas de incerta execução dado que o ritmo de saída da pandemia nos países Europeus é ainda uma incógnita.

P.S.: No artigo do próximo domingo, dia 18, desenvolvo mais a análise do OE2021.

Alexandre Homem Cristo. 5 notas sobre o orçamento da Educação

Este aumento significativo do orçamento do Ministério da Educação tem uma forte explicação conjuntural e, possivelmente, não se irá manter neste patamar nos próximos anos.

1. O orçamento da Educação finalmente ultrapassou 2011. A execução orçamental do Ministério da Educação em 2020 estima-se em 6549 milhões de euros. O que este valor tem de especial? Tem que é inferior à execução orçamental de 2011. Ou seja, em 2020 continuou-se a gastar menos na Educação do que há 9 anos. Em 2021, essa marca será finalmente ultrapassada. Pela primeira vez desde 2010, o orçamento do Ministério da Educação alcançará, em 2021, os 7 mil milhões de euros (concretamente, 7017 milhões). O que esta lenta recuperação de investimento desde a crise económica de 2009/2010 mostra é que a contenção orçamental imperou desde então — mesmo que o discurso político dissesse algo de diferente.

2. Há um aumento relevante (+7%) mas sobretudo conjuntural. Olhemos concretamente para 2021. No Ministério da Educação, o aumento orçamental para 2021, face a 2020, é de 7% (em números redondos, são 500 milhões de euros). É expectável que o governo exiba este aumento como uma vitória política. Mas o aumento tem de ser lido com prudência. Sim, por um lado, é o maior aumento orçamental na Educação da vida deste governo — aliás, na última década, o orçamento da Educação nunca aumentou tanto de um ano para o outro. Mas, por outro lado, o aumento tem dois destinos principais: não, não é para mais recursos humanos e não, não é para reforçar significativamente as despesas de funcionamento nas escolas. O dinheiro vai sobretudo para a Escola Digital (investimento para aquisição de computadores) e pré-escolar. Importa ter isto em conta porque, se o pré-escolar é um investimento estrutural (ou seja, veio para ficar), a aquisição dos computadores é conjuntural (faz-se este ano, mas não se repete anualmente). O que é que eu pretendo dizer com tudo isto? Que este aumento significativo do orçamento do Ministério da Educação tem uma forte explicação conjuntural e, possivelmente, não se irá manter neste patamar nos próximos anos.

3. A Escola Digital é bandeira, mas números ainda não batem certo. O governo anunciou (desde Abril) uma forte aposta na digitalização das escolas, sobretudo em resposta ao confinamento e aos obstáculos materiais no ensino à distância. O primeiro-ministro começou por se comprometer com um computador para cada aluno neste mês de Setembro — compromisso obviamente impossível, pelo que até ao momento foram distribuídos zero computadores. Entretanto, a promessa foi ajustada: iniciar a distribuição dos computadores durante o 1.º período deste ano lectivo e prosseguir até Junho para a totalidade dos alunos. E, afinal, o que diz o OE 2021? A verba referida oficialmente pelo governo é de 400 milhões. Mas os números no OE 2021 são um pouco diferentes e, se a diferença não significa forçosamente que falte dinheiro, importa esclarecer a incongruência. É que a verba existente no orçamento do Ministério da Educação para o “investimento/ despesas de capital” (onde se inclui a “universalização da escola digital”, embora não seja exclusivamente para este fim) corresponde a 307,4 milhões de euros. E, além disso, este valor difere do investimento em 2020 em +253,1 milhões de euros, subentendendo-se que os 54 milhões de euros já despendidos em 2020 se referem a outro tipo de investimento (que não a Escola Digital). Por enquanto, são apenas dúvidas. Estamos longe dos prometidos 400 milhões para as escolas em 2021, pelo que convém esclarecer como se estruturará esse investimento e qual é realmente o seu montante na Educação.

4. A despesa com recursos humanos diminui. A notícia é que o governo autorizou mais 3 mil contratações de pessoal não-docente. Mas, em bom rigor, o valor global do orçamento com pessoal (docentes e não docentes) baixou de 5141 milhões (em 2020) para 5137,7 milhões de euros (em 2021). O governo, antecipando a crítica, informa que com a descentralização para os municípios haverá despesas com recursos humanos que mudam de rubrica — ou seja, assistentes operacionais e outro pessoal não docente nas escolas cujos salários as autarquias passam a pagar. Mas mesmo aí, nas transferências referentes à descentralização, o aumento orçamental é de 4% (~30,2 milhões) e este não irá todo para salários com pessoal não docente (isto porque também inclui as actividades de enriquecimento curricular e a manutenção do parque escolar). Ou seja, os números mais detalhados permitirão esclarecer, daqui a umas semanas. Mas, entretanto, fica já a moral da história: quem achava que ia encontrar neste OE 2021 um balão de oxigénio para preencher as escolas com recursos humanos é melhor desistir das ilusões.

5. Finalmente, cumpriu-se a promessa do pré-escolar. Parece que, por fim, o pré-escolar será alvo de um aumento de investimento relevante e significativo. Esta é uma das promessas do governo PS desde 2016, mas que tardou em concretizar-se — entre 2016 e 2020 aumentou apenas cerca de 70 milhões de euros (nos orçamentos iniciais). Agora, o salto de investimento poderá ser mais de o dobro — o documento hoje divulgado não permite a comparação directa com os dados detalhados do orçamento do Ministério, a que daqui a umas semanas teremos acesso. Seja como for, o aumento no pré-escolar é evidente e relevante: tardou, mas o governo cumpriu esta promessa. E, porque o pré-escolar tem um impacto tremendo no sucesso escolar dos alunos, isso é uma boa notícia.

Rui Pedro Antunes. Geringonça para totós: dicas para viabilizar um orçamento sem voltar a PECar

As pessoas vão receber mais em 2021, ano de autárquicas, e depois recebem menos em 2022

A primeira lição do Orçamento é que a geringonça não é uma geringonça. Muitos acreditaram que era desta que o acordo à esquerda chegava ao fim: com o PCP a precisar de romper a menos de um ano das autárquicas e o Bloco a pedir impossíveis ao Governo. Criaram-se linhas vermelhas, fizeram-se ultimatos, reuniões noturnas, alimentou-se uma espécie de Borgen lusitano ou House of Cards do eixo São Bento-FoxTrot para, no fim, ficar tudo na mesma.

A geringonça é, afinal, um side car que António Costa conduz e, conforme a curva, escolhe a quem dá boleia. Nos Orçamentos para 2016, 2017, 2018 e 2019 era preciso PCP e BE votarem a favor para que o documento fosse aprovado. E votaram. No Orçamento para 2020 era preciso que se abstivessem. E assim foi. No Orçamento suplementar a meio de 2020 nada foi preciso porque o PSD fez esse papel. O Bloco optou por se abster, mas o PCP, livre, leve e solto, votou contra sabendo que o tiro era de pólvora seca. E se agora o Bloco reivindica o direito ao amuo, estão lá o PCP e o PAN para darem a mão ao Governo. O side car tem pisca para a direita, mas é à esquerda que há estrada para andar.

E Costa vai ter sempre o seguro em dia: a memória do PEC IV. A esquerda não esquece que a última vez que chumbou um documento estratégico de um governo minoritário do PS, entregou o poder à direita. Quatro anos e meio de Passos Coelho, mais uns pozinhos de oposição dura à espera de Belzebu. É por isso que a esquerda vai resistindo ao pecado capital de pôr fim ao acordo à esquerda. L’avenir apartien a Dieu, mas, mais Novo Banco para aqui, menos prestação social para acolá, dificilmente a esquerda voltará a PECar como PECou em 2011.

A segunda lição é que este Orçamento de um governo minoritário do PS, não é só um orçamento do PS. Na proposta de Orçamento é possível aferir a paternidade de algumas das medidas, se tem a cara do Bloco ou os olhos do PCP. Mesmo com insatisfação, a criação de obstáculos aos despedimentos nas grandes empresas ou a nova prestação social são medidas associadas aos bloquistas, da mesma forma que o subsídio de penosidade ou a moratória de 24 meses para a caducidade dos contratos coletivos são medidas com o cunho do PCP — nalguns casos de ambos. Para não esquecer os 4,4 milhões de euros para abrigos ou a criação da figura do provedor do Animal que têm o carimbo do PAN.

A terceira lição é que, em política, o que parece, muitas vezes não é. O Governo vendeu a ideia de que vai aumentar os salários por via do IRS, na verdade o que o executivo fará é mexer nas tabelas de retenção na fonte de forma a que as pessoas tenham um ligeiro aumento do valor que recebem ao fim do mês, que depois lhes é retirado quando no ano seguinte no momento do reembolso do IRS. Isto significa que as pessoas vão receber mais em 2021, ano de autárquicas, e depois recebem menos em 2022. O aumento extraordinário das pensões também vai ser só a partir de agosto, um mês antes dessas mesmas autárquicas.

A quarta lição é nunca embandeirar em arco. Um “bom orçamento”, como o classificaram Costa e Leão, é aquele que não erra em pontos fundamentais. Erros há em todos os orçamentos, mas logo no quadro relativo ao Fundo de Resolução de onde saem as transferências para o Novo Banco foi a pior estreia para o sucessor de Centeno. É que o diabo, já se sabe, está nos detalhes.

Nuno Vinha. João Leão, o “mentor das cativações” que não abdicou da sua ferramenta de eleição

João Leão não abdicou da sua ferramenta de eleição: na proposta de Orçamento para 2021 o ministro manteve intocada a regra das cativações seguida em anos anteriores. Resta saber como a vai usar.

É mau sinal quando um ministro das Finanças, ao entregar uma proposta de Orçamento do Estado, diz – sem que ninguém lho tivesse perguntado – que “este é um orçamento sem austeridade”, que “não junta mais crise à crise”. Na verdade, é mau sinal e má comunicação, porque parece uma tentativa atabalhoada de convencer os cidadãos sobre aquilo que o exercício orçamental não é – em que vez de lhe enaltecer as virtudes: um aumento do subsídio de desemprego, novos apoios sociais para quem ficou mais afetado pela pandemia, subsídio de risco para profissionais de saúde ou a manutenção de apoios ao emprego como o atual “layoff 3.0”. João Leão, o “homem que desenhou e projetou as cativações de Centeno”, ainda tem, de facto, muito que aprender nesta fase mais visível da sua carreira política.

Muitas vezes ouvimos os críticos do Partido Socialista dizerem que, à esquerda, “austeridade” tem outro nome, como “responsabilidade” ou “contas certas”.  Nos primeiros quatro anos de António Costa à frente do Governo, o mantra nas Finanças era “reduzir a dívida pública” – acumulada nos anos do ajustamento pós-resgate – para níveis que chegaram aos 118,2% do PIB em 2019. Fê-lo beneficiando de uma conjuntura de dinheiro “barato” disparado pela bazuca do BCE e das cativações que tão laboriosamente João Leão preparou e executou. E que teve efeitos negativos sobre os serviços públicos, com reflexos de raspão sobre o Serviço Nacional de Saúde.

Com a catástrofe (sanitária e económica) que se abateu com a chegada da Covid-19, a dívida disparou para níveis que bateram os máximos do tempo da troika, prevendo o Governo que este ano fechemos as contas com um rácio de dívida próximo dos 134,8% do PIB. Mas tudo bem, argumentam os partidos à esquerda, a Comissão Europeia não vai penalizar nenhum dos Estados-membros por esta trajetória (nem pelo aumento do défice) pelo menos até ao final de 2021. E o Bloco de Esquerda até argumentou durante as negociações que esta é a altura perfeita de abrir os cordões para “proteger quem mais precisa” ou para reter e promover o emprego.

O primeiro exercício orçamental da inteira responsabilidade de João Leão – o tal que não tem “austeridade” – pretende no espaço de um ano reduzir a dívida pública para 130,9% e reduzir o défice de 7,3% deste ano para 4,3% em 2021. E essa escolha tem custos: é, forçosamente, menos dinheiro para apoiar as empresas a gerar crescimento – aliás, não é descabido o mau-estar que andará pela Horta Seca devido à atual proposta – ou menos “almofada” para “amparar” a Segurança Social caso o desemprego dispare em outubro e janeiro (a seguir ao período de nojo do primeiro layoff) como já anunciaram algumas confederações patronais.

Se, no entender de João Leão, “Orçamento sem Austeridade” se traduz por um exercício sem um aumento substancial e transversal dos impostos, então sim esta proposta “não traz mais crise à crise”. Mas por via das dúvidas – e porque ninguém sabe com toda a certeza se vai ser preciso confinar outra vez ou não – João Leão não abdicou da sua ferramenta de eleição: na proposta de Orçamento para 2021 o ministro manteve intocada a regra das cativações seguida em anos anteriores. Resta saber como a vai usar.