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50 anos depois tenho um amor imenso à Internet. E não é (totalmente) aborrecido

A internet tornou-nos mais integradores, brilhantes, sofisticados, mas também mais autistas. 50 anos depois, seríamos capazes de viver sem este pequeno milagre da tecnologia? João Bonifácio explica.

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Quando a Ana Pimentel me quis convidar para escrever um texto sobre o aniversário da Internet (este texto, já agora), não me telefonou, como seria normal há vinte ou mais anos – primeiro mandou-me uma mensagem no Messenger do Facebook (como seria normal em 1838, uma piada que explicarei mais tarde) e, só depois, como eu não a havia visto, fez a chamada.

Presumo que ela não tenha pensado para si mesma “Que pequeno milagre é ter esta tecnologia à disposição”, porque este tipo de comunicação é hoje tão omnipresente e existe numa escala tão grande que damos de barato o que, de facto, é um feito espantoso. Mas tenho a certeza que a imensidão deste milagre – que na realidade é uma estupenda manifestação de ciência e engenharia – lhe escapa.

Estou meio na dúvida se faço ou não faço o que me apetece fazer: mostrar o quão complexa é a engenharia envolvida – de modo a realçar a grandeza do feito de há cinquenta anos e que hoje permite estarmos todos ligados (sem estarmos diretamente ligados) e com acesso a qualquer tipo de informação a qualquer hora. Vou tentar escrever o primeiro parágrafo técnico não totalmente aborrecido em toda a história da geekice – mas não estou certo que consiga.

Exercício geek não totalmente aborrecido n.º 1: Por que é que a mensagem da Ana chegou ipsis verbis ao meu telefone

No momento em que a Ana pressionou o símbolo de “Enviar”, as frases delam foram sub-divividas e colocadas em pequenos pacotes de informação com um número específico de bytes (zeros e uns), devidamente numerados para que, no fim do trajeto, as frases pudessem ser de novo ordenadas; além deste número, cada pacote contém um segundo, que representa o total de pacotes a enviar, de modo a que, quando o sexto pacote de seis chega, se saiba que a mensagem está completa.

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Tudo calmo até agora? Ninguém demasiado confuso?

Bom, esses pacotes têm aquilo que se chama um header, onde consta informação como o IP do recetor e o IP do emissor. (As frases que constituem a mensagem a enviar são colocadas naquilo a que chamamos o Payload do pacote. É como se o header fosse o envelope e o payload a carta.)

Eu sei que isto parece tudo muito aborrecido – por isso deixem-me aborrecer-vos ainda mais. A questão da numeração é importante, porque nem sempre os pacotes chegam pela ordem que foram enviados. Neste instante – só para nos situarmos – a Ana ainda não me telefonou, só mandou uma mensagem pelo Messenger; tendo em conta que recebi a chamada dela a almoçar, provavelmente, no momento em que ela escreveu a mensagem, eu ainda nem me tinha sentado, estava a caminhar para o restaurante. Reparem: até agora, estive apenas a tentar mostrar o que aconteceu quando a Ana me mandou a mensagem.

Isto constitui um problema: se a mensagem for "I love you, don’t worry» corre-se o risco de à chegada estar transformada em «I don’t love you, worry". Ou então pode perder-se um pacote e a mensagem «Não quero fazer amor contigo» transformar-se em «quero fazer amor contigo». Ninguém quer que isto aconteça.

Costuma chamar-se TCP/IP à suite de protocolos de internet porque a combinação de TCP com IP é a mais usada para mandar informação pela net. A suite é dividida em quatro camadas e o TCP faz parte da Transport Layer – tal como, também, o UDP: são protocolos que servem, no fundo, para mandar pacotes – e se estou a contar-vos isto, correndo o risco de vos aborrecer, é porque quero que tenham consciência das escolhas que os engenheiros têm de fazer num mundo imperfeito.

Imaginem, por um instante, que são o engenheiro responsável por criar o Messenger. Têm à vossa disposição o protocolo UDP, que é super rápido, porque não está preocupado em saber se o recetor recebeu ou não os pacotes, ou em ordená-los. Isto constitui um problema: se a mensagem for “I love you, don’t worry» corre-se o risco de à chegada estar transformada em «I don’t love you, worry”. Ou então pode perder-se um pacote e a mensagem «Não quero fazer amor contigo» transformar-se em «quero fazer amor contigo». Ninguém quer que isto aconteça.

De modo que a opção do engenheiro é usar o protocolo TCP, que é mais lento mas mais fiável: cada vez que manda um pacote pede ao recetor para dizer que recebeu (aquilo a que chamamos acknowledgement). Se um pacote não chega ao destino então é reenviado e a mensagem final é recomposta no «I love you, don’t worry», don’t worry.

Entretanto, eu nunca mais lia a mensagem, atarefado que estava a comer; a Ana telefonou-me – e eu podia agora aborrecer-vos explicando que antigamente a voz seria «transformada» em impulsos elétricos, que seriam enviados pela linha telefónica; enquanto hoje tudo funciona por VoIP: pacotes de dados enviados pela rede de internet. Mas acho que a ideia – quão absurdamente complexo é este mecanismo que nos permite comunicar – já passou.

Exercício geek não totalmente aborrecido n.º 2: quem é a mãe da Internet

Nada disto era possível há uns sessenta anos, quando Nobert Wiener saiu do MIT no final de um dia de trabalho, se dirigiu para casa e, vendo-a completamente vazia, perguntou a uma rapariga que estava sentada no alpendre:

— Desculpe, menina, este é o nº x da rua XPTO ?

Ao que a moça respondeu:

– – Sim, pai, só que hoje é a nossa mudança de casa.

A anedota serve para realçar uma das características mais notórias de Wiener: a sua distração. Mas ele tinha outras, nomeadamente uma capacidade absurda para o pensamento lógico. Engenheiro de formação, foi recrutado para o esforço de guerra durante a Segunda Guerra Mundial, aprimorando o sistema de radares dos aviões de guerra, o que permitiu também criar armas mais eficazes.

Mas a natureza de Wiener era pacífica: estava em crer que se todas as pessoas partilhassem conhecimento os principais problemas do mundo seriam resolvidos e não haveria guerras. Wiener imaginou um mundo de transmissão de conhecimento através de mensagens, em que toda a informação estivesse disponível, em que as máquinas trabalhassem para os humanos, tudo isto em rede – imaginou, no fundo, a cibernética, a internet das coisas e a própria internet. Acabaria por morrer em 1964, com 69 anos, vítima de um ataque cardíaco – cinco anos antes do estabelecimento da ARPANET. A ARPANET, para quem não conhece, é a mãe da Internet.

Eu podia poupar-vos a isto – mas numa época de informação imediata e ligeira está a divertir-me assustar-vos demoradamente.

Chama-se ARPANET à primeira rede de transmissão de pacotes de informação – não por acaso, foi também a primeira rede a implementar o protocolo IP. A ARPANET tornou-se uma realidade quando os computadores de quatro universidades ficaram ligadas entre si – é aliás, isso que se comemorou na passada sexta-feira, no Dia Mundial da Internet; na base da ARPANET está um conceito tecnicamente complexo, cuja compreensão envolve anos de engenharia, o packet switching.

Eu podia poupar-vos a isto – mas numa época de informação imediata e ligeira está a divertir-me assustar-vos demoradamente.

Numa chamada telefónica das antigas, uma “linha” unia recetor e emissor, com uma determinada largura de banda atribuída do princípio ao fim da chamada: a voz do emissor era transformada em sinal elétrico, que percorria uma sequência de cabos até chegar ao recetor, onde os impulsos eram de novo transformados em voz; o recetor respondia de volta e a sua voz era transformada em impulso elétrico, que percorria a sequência de cabos até chegar ser de novo transformada em voz no aparelho do emissor inicial. Sendo que os impulsos só seguiam um trajeto.

O Packet Switching mudava o paradigma: a informação era dividida em pacotes e cada um dos pacotes podia tomar um caminho diferente dos restantes pacotes, sendo a mensagem inicial recomposta no final do trajeto.

Até hoje, esta é a principal característica da Internet: é descentralizada e cada mensagem pode seguir múltiplos caminhos. É, também, uma rede criada a partir do pressuposto de que os pacotes de mensagens podem atrasar-se, ser reenviados ou simplesmente perderem-se – daí a existência de tantos protocolos diferentes, uns para quando se precisa de rapidez, outros para quando se precisa de fiabilidade.

E, neste momento, presumo que alguns de vós já terão morrido de tédio ou tentado o suicídio. Vou tentar resumir.

Nesta altura, ainda nem pensava usá-la para colocar gifs de gatinhos, ou para aquele stream maroto quando a namorada está a milhares de quilómetros de distância. Mas como já havia email é muito possível que a internet já fosse usada para aquilo que hoje ocupa a maior parte da sua largura de banda: ver pessoas nuas.

Antes da ARPANET os computadores eram bisarmas gigantescas que ocupavam salas inteiras, com um terminal que servia de interface com os utilizadores – e que podia incluir (ou ser composto exclusivamente de) cartões perfurados (que, no fundo, eram os 0s e os 1s de então). Por vezes, dois computadores estavam ligados – mas só através de uma ligação única. O que significa que se o computador de Berkley quisesse comunicar com o computador da UCLA tinha de ver uma ligação exclusiva entre ambos – o oposto do que se passa hoje em dia, em que todos os smartphones e computadores comunicam entre si (ou com o carro, ou com o frigorífico) sem estarem ligados diretamente.

Em 1972, houve outra inovação, que nos aproximou dos dias de hoje: a criação do email. Antes do email, utilizadores da ARPANET só conseguiam comunicar uns com os outros se estivessem na mesma máquina. Até que Ray Tomlison resolveu usar o @ para separar o utilizador da máquina.

Apenas um ano depois, duas universidades, a University College of London (Inglaterra) e a Royal Radar Establishment (da Noruega) ligam-se à ARPANET – e o termo Internet comece a ser popularizado. Nesta altura, ainda nem pensava usá-la para colocar gifs de gatinhos, ou para aquele stream maroto quando a namorada está a milhares de quilómetros de distância. Mas como já havia email é muito possível que a internet já fosse usada para aquilo que hoje ocupa a maior parte da sua largura de banda: ver pessoas nuas.

Tim Berner Lee é o pai da World Wide Web e esteve presente na última edição da Web Summit

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

1974 foi um ano incrível para a internet: porque apareceu o primeiro ISP (Internet Service Protocol), chamado Telenet – ou seja, o conceito da ARPANET começou a ser comercializado. Para quem se interessa por estas coisas: a Internet usava, então, a rede telefónica convencional – e muitos de vós ainda hão-de lembrar-se de usar um modem para se ligarem à internet.

Ainda não havia World Wide Web em 1974 – e em 2019 ainda há quem confunda a WWW com a Internet, por isso permitam-me relembrar: a WWW é como um conjunto de pastas, guardadas em locais diferentes, a que acedemos se nos lembrarmos das respectivas moradas –um sistema de informação em que esta é acessível através de URLs (como observador.pt) disponibilizados na Internet.

Por sua vez, a Internet é um sistema de conexão de aparelhos eletrónicos, que inclui computadores, routers, o vosso carro e – possivelmente – o vosso vibrador. (Sim, este é o mundo em que vivemos.)

O único exercício que vale a pena ler: o rock e o amor na era pré-Tinder

Não é fácil quantificar o impacto da internet na nossa vida, mas sou velho suficientemente para me lembrar do mundo pré-WWW, que surge em 1989, no CERN, graças a Tim Berners-Lee, que criou o protocolo HTTP. É a chegada da WWW que muda isto tudo – porque a internet espalha-se a nível global.

Em 1993, quando entrei na universidade para estudar Engenharia Electrónica e Telecomunicações, a Internet não era o colosso que era hoje e a www muito menos. A maior parte dos telefones eram de disco, embora dois ou três anos depois os telemóveis começassem a popularizar-se; a esmagadora maioria do correio era analógico, isto é, cartas dentro de envelopes; o vinil dera lugar ao CD mas ninguém conseguia imaginar que um dia ouviríamos música por streaming – e a maior parte de nós gravava os álbuns em cassetes, que eram mais baratas.

Não havia chats, o que fazíamos, quando queríamos falar com pessoas, era ir a cafés – podíamos, quanto muito, telefonar a combinar coisas, mas em terras pequenas, como Aveiro, a gente limitava-se a ir ao café e estaria sempre lá alguém. Do mesmo modo, se queríamos ver um filme, íamos a estabelecimentos criados para o efeito, chamados "cinemas". Até filmes pornográficos passavam em cinemas – algo que hoje nos pode parecer bastante disparatado, porque um dos efeitos da globalização da WWW e da Internet foi o crescer da esfera da individualidade: antes qualquer coisa que quiséssemos implicava ir para o mundo obtê-la; hoje prime-se uma tecla num smartphone

Os exemplos não acabam: não havia chats, o que fazíamos, quando queríamos falar com pessoas, era ir a cafés – podíamos, quanto muito, telefonar a combinar coisas, mas em terras pequenas, como Aveiro, a gente limitava-se a ir ao café e estaria sempre lá alguém. Do mesmo modo, se queríamos ver um filme, íamos a estabelecimentos criados para o efeito, chamados “cinemas”. Até filmes pornográficos passavam em cinemas – algo que hoje nos pode parecer bastante disparatado, porque um dos efeitos da globalização da WWW e da Internet foi o crescer da esfera da individualidade: antes qualquer coisa que quiséssemos implicava ir para o mundo obtê-la; hoje prime-se uma tecla num smartphone.

O efeito disto é que hoje praticamente não temos de interagir em carne e osso com seres humanos reais para fazer a nossa vida.

Um bom exemplo disso é a busca por informação. Se eu quisesse informação extra tinha de ir à biblioteca (do meu departamento, da universidade, da cidade) consultar enciclopédias ou procurar livros difíceis de encontrar; mas por vezes os livros já haviam sido levantados por alguém e tínhamos de esperar duas semanas.

Foi assim que aprendi a estudar: num dia em que estava a bater com a cabeça contra esse gigante chamado Electromagnetismo fui por três ou quatro vezes ao departamento de Física tirar dúvidas, o que chateou o assistente da cadeira – nesse dia comecei a acumular dúvidas para depois as colocar todas de uma vez.

E recordo-me de um dia, porque não entendia um manual e não conseguia encontrar outros livros nas bibliotecas, percorrer a cidade à procura de amigos que me explicassem o conceito de multiplexagem.

(Uma das coisas que mudou é que antigamente, para obter informação, tínhamos de reconhecer a uma espécie entretanto caída em desgraça: a sabedoria das pessoas mais velhas. Que disparate, não é?)

Conhecer raparigas – uma das escassas tarefas mais complexas que entender engenharia de telecomunicações e de software – implicava a horrível, dolorosa, penosa, humilhante tarefa de tentar abordá-las, o que implicava recorrer à imaginação, ao engenho, ao swag e, por vezes, à mais pura e deliberada tanga. O que é diferente de colocar um coração numa foto do Instagram ou fazer swipe right numa foto do Tinder

Viajar, por exemplo, implicava o uso de umas folhas enormes, dobradas em inúmeras partes, chamadas mapas; hoje qualquer app contém quase o globo todo porque o globo todo foi mapeado. Podemos comprar viagens, com avião, hotel, carro e comboio logo marcados, porque os engenheiros das diversas empresas disponibilizam APIs que comunicam entre si e vão à nossa conta bancária enquanto registam a nossa identificação numa base de dados e criam um QR code ao mesmo tempo.

Conhecer raparigas – uma das escassas tarefas mais complexas que entender engenharia de telecomunicações e de software – implicava a horrível, dolorosa, penosa, humilhante tarefa de tentar abordá-las, o que implicava recorrer à imaginação, ao engenho, ao swag e, por vezes, à mais pura e deliberada tanga. O que é diferente de colocar um coração numa foto do Instagram ou fazer swipe right numa foto do Tinder.

Os assuntos amorosos são sempre simbólicos, porque toda a gente se relaciona com eles. De modo que vou usá-los para falar de uma das mais espantosas mudanças que a invasão da Internet, em particular a partir da explosão da WWW, nos trouxe: o ano passado, em Coura, a namorada de um amigo meu, mais nova do que eu 15 anos, perguntou-me como era «no meu tempo».

E era mais simples: a minha primeira namorada de universidade foi-o porque era bonita e gostava dos Sonic Youth. E pronto, eram estes os critérios. Hoje é mais complexo: uma rapariga pode marcar três ou quatro dates numa semana e um ouve má música, o outro disse mal de quinoa (guilty as charged), um terceiro detesta bombazine (um no no compreensível) e o quarto detesta viajar. É um fenómenos recorrente: nós bem nos esforçamos, mas não se encontra uma pessoa decente.

Pré-mundo globalizado esta questão não existia. A principal razão pela qual duas pessoas empernavam resumia-se: estavam ali. Nenhum de nós pensava: “Ora deixa-me cá conhecer mais meia dúzia de moças que gostem dos Sonic Youth e escolher a mais inteligente, bonita, simpática e com a qual converso com mais facilidade”. Nope: havia uma rapariga que gostava de boa música e bom cinema e estava disposta a despir-se? Obrigado, Senhor, ficarei com ela enquanto ela deixar.

O que quero dizer com isto é que: nós não sabíamos. Simplesmente não sabíamos que havia mais mundo. Sim, sabíamos que existia Paris (onde se compravam livros) e Londres (onde se compravam discos). Mas não sabíamos que havia mais pessoas como nós ou pessoas diferentes de nós e que essa diferença não era assim tão importante – e podia até ser fascinante.

Dou o exemplo da música: durante anos escondi que gostava dos New Order, porque era dançável e os meus amigos gostavam dos Joy Division e as duas bandas eram mutuamente exclusivas; escondi o meu apreço pelo Prince, porque a malta das guitarras não respeitava um baixinho em tronco nu que só cantava sobre sexo (não cantava só sobre sexo); que gostava de soul e de disco-sound. O Fórum Sons, nascido no Público, trouxe-me centenas de pessoas que gostavam do mesmo que eu.

O acesso à informação, que nos entra por todos os lados a todos os segundos, tornou as pessoas mais propensas a aceitar a diferença – o racismo, o sexismo partem de escasso acesso à informação. Ao mesmo tempo que o nosso espaço mental aumentou imenso, o nosso contacto in loco com o outro diminuiu brutalmente.

Hão-de ter reparado que dei um salto, da Internet para a WWW. Faz sentido que o tenha feito, porque, por duas vezes, nos anos 90 e no final dos anos 2000, esta teve booms avassaladores. A WWW é como que a relações públicas da Internet, imensamente popular, chegando a todos os lares e convencendo toda a gente a ter um laptop, um smartphone, um frigorífico conectado à Internet.

Lembro-me de o meu primeiro contacto com a www: um colega – que mais tarde veio a fundar o Sapo – levou-me a uma salinha onde introduzimos IPs para aceder a alguns materiais de estudo de uma qualquer universidade. «O nosso curso todo está aqui», disse ele e recordo-me de pensar quão pobre graficamente aquilo era. Como raio poderia eu ler livros inteiros ali? Clicava-se num link e aquilo saltava para outra página – era esquisitíssmo. Lembro-me de lhe dizer: isto assim não tem futuro. Um génio.

Em 1992, havia uns milhões de Internet Hosts; em 2006 eram 450 milhões; e desde então o número cresceu exponencialmente – hoje temos três mil milhões de utilizadores da Internet, três mil milhões, e já não precisam de usar modem. Isto alterou por completo a nossa economia: para quê vender produtos num mercado, quando os números das redes sociais indicam que no mundo inteiro há 150 milhões de pessoas doidas por azeitonas que adorariam receber em casa As Verdadeiras Azeitonas do Sado?

Tudo se tornou dados, o que levou à explosão de profissões inusitadas (como organizadores de baby showers) e a uma revolução no marketing. Esses dados são albergados em armazéns repletos de servidores cujos discos duros usam silício, cuja exploração é um negócio imparável; as nossas cidades – praticamente o globo inteiro, na realidade – têm fibra ótica e fios de cobre para transmitir sinal de voz e dados e há, literalmente, dezenas de milhar de empresas que se especializaram em produzir, comercializar e implantar estas redes.

Este é o mundo em que vivemos: em que estamos acordados até tardíssimo, com o cérebro excitado da luz azul dos ecrãs; em que o nosso cérebro abdicou de memorizar porque essa tarefa cabe hoje ao Google; em que abdicamos de memorizar um trajecto porque ele está no nosso telemóvel; em que somos mais curiosos mas também afastamos mais depressa pessoas da nossa vida porque há outras e essas outras hão-de ser melhores, pelo que abdicamos de dialogar.

Os dados são acessíveis por APIs,que as empresas disponibilizam em formato json, o que implica a contratação de programadores especializados no formato; especialistas em análise de dados são hoje pagos como pequenos reis; um browser hoje é mais poderoso do que um computador em 1987 e qualquer página web ou app tem uma quantidade de javascript tal que um bom programador de javascript nunca conhecerá o desemprego.

Literalmente todos os aspetos da nossa vida estão hoje inundados de Internet: aquela piada que fiz lá em cima sobre vibradores? Há uns tempos, uma empresa vendeu vibradores que se ligavam à internet que tinham uma câmara na ponta – o produto acabou por ser retirado no mercado quando se descobriu que o uso descuidado dos vibradores levava a que estes fossem hackeados (pirateados) e moços de capuzes tivessem acesso ao interior das utilizadoras dos respetivos vibradores.

Este é o mundo em que vivemos: em que estamos acordados até tardíssimo, com o cérebro excitado da luz azul dos ecrãs; em que o nosso cérebro abdicou de memorizar porque essa tarefa cabe hoje ao Google; em que abdicamos de memorizar um trajecto porque ele está no nosso telemóvel; em que somos mais curiosos mas também afastamos mais depressa pessoas da nossa vida porque há outras e essas outras hão-de ser melhores, pelo que abdicamos de dialogar.

Dentro em breve, o nosso fogão, a nossa torradeira estarão ligados à Internet (sendo que o nosso smartmeter já está), em que tudo (literalmente: tudo) que tivermos em casa ou mesmo a roupa que usarmos será produzido por máquinas automatizadas e as tarefas serão desempenhadas por robôs cada vez mais poderosos. A classe média alta será constituída por quem lida com números – a classe média baixa, a pessoa não licenciada, não especializada verá os seus empregos desaparecer.

Este é o nosso mundo na era da Internet total: tornámo-nos mais integradores, mais brilhantes, mais sofisticados – mas também mais autistas. E ainda não conseguimos alimentar metade da humanidade.

Perdoem o cinismo final: tenho um amor imenso pela Internet e pelas suas conquistas. Também tenho um enorme medo do caminho que estamos a seguir.

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