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82 reflexões sobre ética: dos ovos das galinhas à mão de Maradona

"Ética no mundo real", de Peter Singer, aborda desde os direitos das galinhas à defesa do veganismo, passando por questões como a cidadania e o direito de voto, até à batota no jogo.

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“Em alguns círculos filosóficos há a ideia de que não vale a pena falar do que não puder ser compreendido por quem não estudou filosofia, pois isso não será suficientemente profundo. Pelo contrário, suspeito que o que não puder ser dito claramente é provável que não esteja a ser pensado com clareza.” Foi com base neste pressuposto que o filósofo australiano Peter Singer (nascido em 1946, em Melbourne) escreveu 82 ensaios, publicados na imprensa entre o verão de 2001 e janeiro de 2017 e coligidos em Ethics in the real world: 82 brief essays on things that matter, que foi publicado em Portugal pelas Edições 70 como Ética no mundo real: 82 ensaios sobre coisas realmente importantes, com tradução de Desidério Murcho.

Nestes ensaios, Singer regressa a alguns dos temas que lhe deram notoriedade mundial, como os direitos dos animais e a defesa do vegetarianismo e do veganismo — que foram objeto do livro Libertação animal (1975, traduzido para português pela Via Optima) –, as implicações éticas da forma como nos alimentamos — Como comemos, em colaboração com Jim Mason, (2006, D. Quixote) –, o dever dos mais abastados de contribuir para aliviar o sofrimento dos mais desfavorecidos mediante doações — A vida que podemos salvar: Agir agora para pôr fim à pobreza no mundo (2009, Gradiva) e O maior bem que podemos fazer: Como o altruísmo eficaz está a mudar as ideias sobre viver eticamente (2015, Edições 70) –, ou a legalização da eutanásia e do aborto. Mas também se encontram no novo livro reflexões sobre assuntos tão variados como os direitos dos robots, o conceito de felicidade interna bruta ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Haverá — sobretudo entre os que discordam das posições de Singer — quem entenda que estes micro-ensaios mais não são do que opiniões, tão subjectivas como quaisquer outras. Mas Singer esclarece que “os juízos morais não são puramente subjectivos; nesse aspecto são diferentes dos juízos de gosto. Se fossem puramente subjetivos, não pensaríamos que vale a pena discutir questões éticas, tal como não pensamos que vale a pena discutir a escolha do sabor de um gelado. Reconhecemos que os gostos diferem e que os molhos não têm uma quantidade ‘certa’ de alho; mas pensamos que vale a pena discutir a legalização da eutanásia voluntária e a moralidade de comer carne”.

É curioso confrontar esta sensata argumentação com o facto de as livrarias e a imprensa dos nossos dias darem tão escassa atenção à ética e aos juízos morais e de, em contrapartida, nelas campearem os juízos de gosto, com incontáveis autores e articulistas a reclamar serem os únicos a deter o segredo do correcto ponto de cozedura do polvo à lagareiro ou dos ingredientes de uma refeição saudável ou que enunciam os preceitos para a preparação de uma piña colada ou de um dry martini como se lhes tivessem sido transmitidos pessoalmente pelo Criador do Universo.

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Proclamação universal dos direitos das galinhas

No ensaio “Os ovos éticos da Europa”, Singer recorda os longos anos de luta dos ativistas dos direitos dos animais que conduziram, em 2012, à interdição em todos os países da União Europeia da criação de galinhas poedeiras “em gaiolas tão pequenas que, mesmo que só tivesse uma lá dentro, esta seria incapaz de abrir as asas completamente — e cada gaiola tinha normalmente quatro galinhas”. A legislação europeia que entrou em vigor em 2012 exige gaiolas que não só têm de ser mais espaçosas como incluir “ninhos e um poste para as galinhas se coçarem”.

A legislação europeia que entrou em vigor em 2012 exige gaiolas mais espaçosas para as galinhas (Joern Pollex/Getty Images)

Getty Images

Mesmo o mais obstinado carnívoro concordará que é desejável que as galinhas tenham condições de vida menos miseráveis mas nesta, como noutras questões que envolvam o bem-estar animal, Singer apresenta sempre as condições penosas em que os animais vivem como se resultassem da malevolência gratuita dos criadores. Em parte alguma Singer menciona que maior bem-estar animal significa quase sempre custos de exploração mais elevados para o criador, com a inevitável repercussão no preço do produto para o consumidor final. Claro que um professor universitário como Peter Singer teria — caso não fosse vegan — capacidade financeira para encaixar no seu orçamento a duplicação do preço dos ovos ou da carne de galinha, mas nem todas as pessoas auferem rendimentos nesse escalão. Quando se advoga que todas as galinhas deveriam ser deixadas crescer em liberdade (a “free-range chicken” defendida pelos “omnívoros éticos”) e que todas as vacas deveriam ser criadas em pastagens, presume-se que:

  1. O planeta disporia de espaço agrícola para criar animais nestas condições em quantidade suficiente para satisfazer a procura mundial de ovos e carne de frango e vaca;
  2. E que os seus habitantes com menores rendimentos seriam capazes de pagar o acréscimo de preço resultante da produção pecuária em moldes “éticos”.

Um bife de soja para o Faísca?

Sem surpresa, o assunto mais insistentemente abordado no livro são as implicações éticas da forma como nos alimentamos. No ensaio “Uma defesa do veganismo”, Singer afirma que “de todas as maneiras como afectamos os animais, a que mais precisa de justificação hoje é a indústria alimentar. Muitos mais animais são afetados pela indústria alimentar do que por qualquer outra atividade humana”, o que, no seu entender, não tem justificação porque “muitos estudos mostram que podemos viver tão saudavelmente, ou mais, sem carne [ou] com uma dieta vegana, sem consumo de quaisquer produtos de origem animal”.

Será verdade, se reduzirmos a alimentação à absorção de quantidades padronizadas de nutrientes, mas essa é uma ideia que colide com a ideia, que ganhou imenso impulso nos últimos anos (em boa parte veiculada pelos “juízes do gosto” acima mencionados) de que comer não é apenas um ato de satisfação de necessidades biológicas elementares, é também cultura, tradição e requinte civilizacional, e que prescindir do da chanfana de borrego, do anho à moda de Fajões, do bacalhau à Brás, da sardinha assada, da chouriça de Vinhais, do presunto de Barrancos e do queijo de Azeitão resultará num empobrecimento do leque de prazeres que a vida proporciona.

Será verdade, se reduzirmos a alimentação à absorção de quantidades padronizadas de nutrientes, mas essa é uma ideia que colide com a ideia, que ganhou imenso impulso nos últimos anos (em boa parte veiculada pelos “juízes do gosto” acima mencionados) de que comer não é apenas um ato de satisfação de necessidades biológicas elementares, é também cultura, tradição e requinte civilizacional, e que prescindir do da chanfana de borrego, do anho à moda de Fajões, do bacalhau à Brás, da sardinha assada, da chouriça de Vinhais, do presunto de Barrancos e do queijo de Azeitão resultará num empobrecimento do leque de prazeres que a vida proporciona.

Por outro lado, sabemos que o Homo sapiens é, estruturalmente, um animal omnívoro — nem sequer são necessárias pesquisas sofisticadas sobre paleodietas para o apurar, os caninos que integram a nossa dentição não deixam lugar para dúvidas –, pelo que a maioria das pessoas sente uma inclinação natural por bifes, fígados e outras vísceras (Portugal, com 93 kg/ano, em 2009, está entre os recordistas do consumo de carne per capita, a apenas algumas doses de bifanas dos campeões EUA, com 120 kg/ano).

Seria portanto mais produtivo, do ponto de vista ambiental e do bem-estar animal, fazer campanha para que toda a população reduzisse substancialmente o seu consumo de carne — sobretudo nos países desenvolvidos, onde esse consumo é mais elevado — do que apelar à conversão ao veganismo, que será sempre a opção de uma minoria. Um utilitarista como Singer deveria considerar que sete mil milhões de omnívoros a consumir 10 kg de carne por ano (padrão próximo do que se registava em 2009 na Indonésia) provocam danos ambientais e sofrimento animal muito inferiores ao da soma de 6.900 milhões de omnívoros a consumir 42 kg de carne por ano (era esta a média global em 2009) com 100 milhões de vegans e vegetarianos a consumir 0 kg de carne por ano.

Os portugueses consomem, em média, 93 kg de carne por ano, de acordo com dados de 2009 (Maria João Gala / Global Imagens )

Maria João Gala / Global Imagens

Ainda mais difícil de explicar é que embora Singer argumente repetidamente em prol do veganismo, omita em absoluto a questão da alimentação do número crescente de cães e gatos de estimação. Porque há-de um humano omnívoro fazer o sacrifício de prescindir de comer carne, leite, ovos ou qualquer produto de remota origem animal quando um cão de tamanho médio consome 160 kg de carne por ano? O mais irónico é que o amor pelos animais que motiva boa parte dos vegans a adoptar tal dieta costuma manifestar-se também pela posse de vários cães e gatos, sem que a contradição de tais escolhas perturbe a digestão da sua salada de tofu com agriões.

O tabu do incesto

Em todas as suas reflexões, Singer adopta uma perspectiva utilitarista, ou seja, tem como desejável a maximização dos resultados benéficos de uma ação, independentemente de essa ação ser vista, em termos tradicionais como “boa” ou “má”. Segundo Singer, quando se defende a interdição ou a criminalização de uma acção, deveremos sempre perguntar-nos: “Que mal advém dela?”.

Singer usa este argumento para defender que o incesto consensual entre irmãos adultos não seja criminalizado (Portugal faz parte dos países em que tais relações não caem sob a alçada da lei, ao contrário do que se passa, por exemplo, na Alemanha), embora o tabu sobre o incesto tenham raízes profundas. Na raiz dele estará a elevada probabilidade do nascimento de crianças com deficiências genéticas, mas mesmo quando o incesto não produz descendência, não deixa de despertar repugnância — como atesta a resposta de uma inquirida num estudo sobre um caso de incesto sem descendência, na Alemanha: “Não sei explicar porquê, mas sei que é um erro”.

Singer usa este argumento para defender que o incesto consensual entre irmãos adultos não seja criminalizado (Portugal faz parte dos países em que tais relações não caem sob a alçada da lei, ao contrário do que se passa, por exemplo, na Alemanha), embora o tabu sobre o incesto tenham raízes profundas. Na raiz dele estará a elevada probabilidade do nascimento de crianças com deficiências genéticas, mas mesmo quando o incesto não produz descendência, não deixa de despertar repugnância.

Pergunta-se Singer: “Será de permitir que o nosso juízo do que é ou não um crime seja determinado por sentimentos de repugnância que talvez tenham ajudado os nossos antepassados que não tinham contracepção eficaz a melhorarem a sua adaptação evolutiva?”.

A cidadania é um privilégio ou um direito?

O ensaio “Será a cidadania um direito?”, de 2014, teve como pretexto a revogação pela parte do Governo britânico da cidadania a pessoas envolvidas em atentados terroristas, mas tem vindo a ganhar actualidade acrescida por países em que a revogação de cidadania não está prevista, como é o caso da França, estarem a discutir a possibilidade de alterar a  lei, para fazer face aos muitos jovens nascidos na Europa que foram combater nas fileiras do Daesh na Síria e no Iraque.

Singer apresenta argumentos a favor e contra a revogação da cidadania, mas os segundos são débeis e um é mesmo falacioso: a revogação, afirma, “estabelece um precedente que será aproveitado por regimes autoritários que desejam livrar-se de dissidentes expulsando-os, como na antiga União Soviética fez com o poeta e mais tarde Prémio Nobel Joseph Brodsky”.

Ora:

  1. Os regimes autoritários nunca precisaram de invocar precedentes vindos dos regimes democráticos para revogar a cidadania, expulsar ou de alguma forma privarem de liberdades e direitos os seus cidadãos “incómodos”;
  2. Após a perda de cidadania soviética e a expulsão, Brodsky não teve dificuldade em obter a cidadania de outro país, pelo que o risco de se ficar indefinidamente na condição de apátrida não é real — os governos não costumam manifestar relutância em conceder cidadania a “terroristas” apátridas cujas armas são poemas, embora seja provável que só estados-párias façam o mesmo com autores de atentados bombistas.

A principal objecção a levantar à revogação de cidadania a “filiados” do Daesh e organizações similares é que pouco ou nada adianta: mesmo tendo ficado apátridas continuarão livres para exercerem a sua nefasta acção, se não no país de origem, noutro qualquer. Mais vale que em vez da simbólica revogação de cidadania se invista maior esforço em seguir o rasto dos terroristas, seja qual for a nacionalidade do seu passaporte.

O ensaio “Será a cidadania um direito?” foi escrito depois da revogação do Governo britânico da cidadania a pessoas envolvidas em atentados terroristas

AFP/Getty Images

Que falta fazemos no planeta?

O ensaio “Evitar a extinção humana” é o mais desconcertante do livro. Nele, Singer considera a possibilidade de a colisão com um asteróide, uma pandemia ou uma guerra nuclear poder aniquilar a espécie humana, que a conduz a duas perguntas:

  1. O que podemos fazer para o evitar?
  2. Quão má seria a extinção dos seres humanos. O ensaio concentra-se na segunda pergunta e conclui que, pior do que “milhares de milhões de pessoas terem provavelmente mortes dolorosas”, seria a inexistência de gerações futuras. Ora, entende Singer, uma vez que “progredimos bastante, tanto moral como intelectualmente, ao longo do último par de séculos, e temos todas as razões para ter a esperança de que, caso sobrevivamos, este progresso irá continuar e aumentar o ritmo (…) se não evitarmos a extinção, teremos eliminado a oportunidade de criar algo verdadeiramente maravilhoso: um número astronomicamente elevado de gerações de seres humanos que têm vidas ricas e realizadas”.

É uma conclusão relativamente óbvia, mas surpreende que alguém com a mundividência de Singer — que não coloca a vida humana num patamar muito superior à dos animais sencientes e que entende que “os chimpanzés também são pessoas” não considere que a desaparição do planeta de uma espécie destruidora — devoradora insaciável de recursos, perturbadora do equilíbrio climático, causa directa e indirecta da extinção de milhares de espécies de animais e plantas e responsável por impor condições de vida miseráveis às espécies que explora para o seu sustento e conforto, seria uma benção para todos os outros habitantes do planeta — com eventual excepção de cães e gatos.

O voto decisivo

No ensaio “Porquê votar?” Peter Singer defende o voto obrigatório, um modelo que apenas vigora efetivamente numa dezena de países, entre os quais o seu país natal, a Bélgica, o Luxemburgo, vários países sul-americanos e a Coreia do Norte. É uma posição defensável — a Austrália e a Bélgica não são menos democráticas por isso — mas os argumentos aduzidos por Singer não são muito convincentes.

Sendo Singer um utilitarista, tenta analisar a opção de não votar como resultado de o eleitor entender que só valeria a pena dar-se ao trabalho de sair de casa e ir até à assembleia de voto se a cruz no seu boletim decidisse o resultado das eleições, uma posição pueril e egocêntrica (mas muito difundida, mesmo entre pessoas inteligentes e bem informadas), que mereceria ser rebatida mais energicamente. A ideia de que só vale a pena votar se esse voto decidir o resultado das eleições é mais absurda e detestável do que a ideia de que uma equipa desportiva só deve jogar se tiver a certeza de que vai ganhar. Se for levada ao limite, faz com que nenhum eleitor vote, pois todos os votos contam o mesmo e têm todos a mesma ínfima probabilidade de serem decisivos. O conceito de eleições democráticas não é o de uma lotaria, em que a uma única pessoa é concedido poder de decisão sobre quem vai governar o país.

A ideia de que só vale a pena votar se esse voto decidir o resultado das eleições é mais absurda e detestável do que a ideia de que uma equipa desportiva só deve jogar se tiver a certeza de que vai ganhar. Se for levada ao limite, faz com que nenhum eleitor vote, pois todos os votos contam o mesmo e têm todos a mesma ínfima probabilidade de serem decisivos. O conceito de eleições democráticas não é o de uma lotaria, em que a uma única pessoa é concedido poder de decisão sobre quem vai governar o país.

Pode haver muitas razões para a abstenção, umas com alguma fundamentação e a maior parte dela pífias, mas o cidadão que não vota “porque o meu voto não vai mudar nada” é um megalómano e um tiranete em potencial.

Filosofia de jogo

No ensaio “Será que não faz mal fazer batota no futebol?”, Singer reprova a atitude do guarda-redes alemão Manuel Neuer quando, no jogo com a Inglaterra no campeonato do mundo de futebol de 2010, interceptou uma bola que já entrara dentro da sua baliza e a recolocou em jogo, sem que a equipa de arbitragem disso se desse conta. Após invocar outros casos de golos decisivos evitados ou marcados de forma irregular — entre os quais o célebre golo de Maradona no jogo Argentina-Inglaterra no Mundial de 1986, conseguido com “um pouco da cabeça de Maradona e um pouco da mão de Deus” (Maradona dixit) — e de considerar que “a batota intencional nos desportos (…) é muito pior do que fazer batota na nossa vida privada”, por ser presenciada por milhões de espectadores, muitos deles “jovens e influenciáveis”, Singer conclui que “Neuer perdeu uma oportunidade rara de agir de forma nobre à frente de milhões de pessoas. Poderia ter estabelecido um exemplo ético positivo (…) Poderia ter sido um herói, pugnando pela ética. Ao invés, é apenas mais um futebolista com muita habilidade para a batota”.

[O golo de Frank Lampard sonegado pela manha de Manuel Neuer, no Mundial de 2010:]

Singer tem razão, em abstrato, mas parece estar completamente alheado da verdadeira natureza do espetáculo desportivo (o que é algo muito diferente do desporto). O espetáculo desportivo é um território onde a ética e a racionalidade se suspendem, é um reduto de tribalismo, superstição, pensamento mágico e egocentrismo pueril.

Tudo começa pelo estranho processo de identificação que faz com que alguém se torne “adepto” de um clube. Os objetos de tantas paixões inflamadas e devoções fanáticas são abstrações geridas em moldes empresariais por sociedades financeiras por vezes opacas, cada vez mais nas mãos de milionários de perfil pouco ético ou de fundos soberanos de petro-oligarquias medievais do Golfo Pérsico. Os seus jogadores e treinadores saltitam livremente entre os clubes em função das propostas milionárias que lhes são feitas, sem qualquer noção de lealdade (a expressão “amor à camisola” há muito deixou de fazer qualquer sentido).

No futebol de hoje, em que as equipas mudam de plantel, de forma de jogar e de proprietário a uma velocidade vertiginosa, só os adeptos se mantêm obstinadamente aferrados ao mesmo clube desde que na infância é feita a primeira “impressão” — um pouco como os gansos recém-saídos do ovo adoptam como figura paternal o primeiro ser vivo de grande porte que lhes aparecer pela frente. Para justificar a fidelidade vitalícia para com tão nebulosa e mutável entidade, os adeptos (e os dirigentes e comentadores desportivos) invocam a “mística do clube”, uma imaginária linha de continuidade que remonta à fundação do clube (fala-se mesmo em “jogar à Benfica” ou “jogar à Porto”, como se, independentemente de jogadores, treinadores, esquemas tácticos e circunstâncias, todos os jogos disputados pela equipa comungassem de uma mesma “essência profunda”).

[O golo marcado com a mão por Maradona, no Argentina-Inglaterra do Mundial de 1986:]

O desejo supremo do adepto não é que a “sua” equipa se comporte de forma eticamente irrepreensível ou seja um modelo de cavalheirismo e fair play, ou sequer que proporcione um espectáculo pleno de lances tecnicamente admiráveis e tensão dramática do primeiro ao último minuto — é que a “sua” equipa ganhe, seja por que meio for, com a ajuda da distração ou da conivência do árbitro, da lesão que impede o melhor marcador adversário de alinhar ou da rasteira mal-intencionada que o faz sair do campo em maca, do discreto puxão na camisola do avançado que corria para a baliza vazia, da remoção in extremis da bola que já cruzara a linha de golo ou do toque providencial da “mão de Deus”.

O desejo supremo do adepto não é que a “sua” equipa se comporte de forma eticamente irrepreensível ou seja um modelo de cavalheirismo e fair play, ou sequer que proporcione um espectáculo pleno de lances tecnicamente admiráveis e tensão dramática do primeiro ao último minuto -- é que a “sua” equipa ganhe, seja por que meio for, com a ajuda da distração ou da conivência do árbitro, da lesão que impede o melhor marcador adversário de alinhar ou da rasteira mal-intencionada que o faz sair do campo em maca, do discreto puxão na camisola do avançado que corria para a baliza vazia, da remoção in extremis da bola que já cruzara a linha de golo ou do toque providencial da “mão de Deus”.

Não há espaço para a ética na lógica simplista e unidireccional do adepto. Na verdade, nem sequer há espaço para a “estética”: qualquer entusiasta de futebol preferirá ver um jogo maçudo, desconexo, frouxo e atabalhoado em que a “sua” equipa ganha do que um jogo excitante, cheio de jogadas arrebatadoras e reviravoltas no marcador, em que a “sua” equipa perde.

Os “heróis” do espectáculo ludopédico não são, na ótica do adepto, os jogadores honestos, são os que marcam ou evitam golos, independentemente dos expedientes que empreguem.

[Compilação de 10 golos reprováveis do ponto de vista ético:]

https://youtu.be/3E8aJNGV9aw

Peter Singer revela no último ensaio do livro, “Uma reflexão surfista”, que é praticante de surf, um desporto amador e não-competitivo na sua origem e na sua essência e que só muito tardiamente foi convertido, algo artificialmente, num desporto profissional e competitivo, porque só assim atrai espectadores, canais de televisão e patrocinadores e faz circular grandes quantias de dinheiro. Talvez a experiência, pessoal, intransmissível e não-monetarizável, de desfrutar da “beleza e harmonia que podemos viver ao surfar uma onda” sem ter de mostrar que se é melhor do que outra pessoa, tolde um pouco o entendimento de Singer do que é o futebol e esse potentíssimo “ópio do povo” que é o espetáculo desportivo de alta competição.

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