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O debate teve lugar no salão principal da Universidade de Birzeit, uma das principais instituições de ensino superior da Cisjordânia. Estávamos em maio de 2023 e esta era a primeira campanha eleitoral desde 2019 para eleger uma nova Associação de Estudantes. A votação tinha principal relevância por servir de barómetro para a política palestiniana no geral: ganharia a lista apoiada pela Fatah, o histórico partido da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat, ou o movimento islamista do Hamas?
O debate foi tenso. Mu’tasim Zaloom, o representante da lista do Bloco Islâmico (associado ao Hamas), atacou diretamente o opositor da lista Shabiba (ligada à Fatah): “Quem escreveu o teu discurso? Um responsável dos serviços de segurança da Autoridade Palestiniana? Aqueles que nos perseguem e nos detêm?”, questionou. “É a vossa Autoridade Palestiniana que os persegue”, decretou, perante o aplauso da multidão.
Os resultados deixaram claro que o Hamas atravessa um bom momento entre a opinião pública palestiniana. O Bloco Islâmico venceu as eleições, com mais de cinco mil votos e o Shabiba reuniu pouco mais de três mil. “Tudo o que tem acontecido recentemente em Jenin e Jerusalém fez-nos entender que aqueles que protegem o povo são o Hamas. Portanto, a nação une-se em torno desse partido”, resumiu um dos estudantes à revista israelita +972, que acompanha temas palestinianos. A Fatah ficou em choque: alguns dos escritórios do partido fecharam as portas nesse dia e o debate interno agudizou-se.
Cinco meses depois, o Hamas tentava consolidar-se como movimento líder da causa palestiniana, avançando com a Operação Al-Aqsa. Os seus combatentes entraram em território israelita, mataram mais de mil civis e fizeram mais de 200 reféns. A Autoridade Palestiniana (AP), nos primeiros dias, quase não reagiu. O presidente, Mahmoud Abbas, falou com o secretário de Estado Antony Blinken e com o Presidente francês, Emmanuel Macron, e resumiu o momento como uma “explosão” decorrente das políticas “coloniais” de Israel. Uns dias depois, viria a criticar diretamente o Hamas por ter feito vítimas civis. Ao longo das duas semanas desde o início desta guerra, tem feito poucas declarações públicas.
O ato de equilíbrio de Abbas ilustra o desconforto em que a Autoridade Palestiniana e a Fatah se encontram. Por um lado, o partido de Arafat e o Hamas são rivais históricos, com duas visões diferentes de como se deve constituir um Estado palestiniano: a Fatah é um partido secular, que defende a solução de dois Estados e que renegou a luta armada; o Hamas quer uma Palestina islâmica, não reconhece o direito à existência do Estado de Israel e recorre a métodos terroristas para alcançar os seus fins.
Por outro, com a opinião pública palestiniana descontente com a gestão da AP, a Fatah teme perder ainda mais apoio popular para o Hamas. A Operação Al-Aqsa só veio agudizar as tensões — e ninguém sabe exatamente qual o futuro da política palestiniana, caso o objetivo de Israel de destruir o Hamas em Gaza se concretize.
O Hamas. O grupo islâmico que recorre à violência e oprime até dentro da Faixa de Gaza
Nathan J. Brown é claro: “O Hamas e a Fatah sempre foram rivais.” O especialista no Médio Oriente da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, explica ao Observador como, apesar de alguma cooperação pontual — em particular durante as Intifadas —, os dois grupos nunca atuaram em conjunto. “E, quando os Acordos de Oslo foram assinados, o Hamas assumiu-se claramente como estando na oposição [à Fatah].”
O Hamas (acrónimo para Movimento de Resistência Islâmica em árabe) foi fundado em Gaza em 1987, como braço da Irmandade Muçulmana egípcia. No seu primeiro manifesto, de 1988, deixava claro o que defendia: a destruição do Estado de Israel e o estabelecimento de uma sociedade islâmica no território da antiga Palestina.
Jeroen Gunning, professor da King’s College e autor da obra Hamas in Politics: Democracy, Religion, Violence, resume assim ao Observador a forma de pensamento do Hamas: “Eles querem resistir à ocupação israelita, mas consideram que primeiro é preciso construir uma geração muçulmana, porque os palestinianos se afastaram do Islão. Isso tem implicações no tipo de Estado que desejam. O ideal para o Hamas é um Estado islâmico”, diz. “Já a Fatah é mais ambígua. Alguns dos seus elementos são islamistas, mas o movimento é secular, por isso há uma mistura.”
Outro dos pontos onde os dois grupos divergem é no recurso à violência para atingir os seus objetivos. O manifesto do Hamas é claro no seu propósito antissemita, declarando que “o invasor sionista (…) atua de uma forma semelhante ao nazismo”. E também é claro na escolha de recorrer à violência, ao decretar que “as ditas soluções de paz (…) contradizem os princípios do Movimento” e que “não há solução para a questão palestiniana a não ser através da Jihad”.
Desde a assinatura dos Acordos de Oslo — que estabeleceram o princípio dos dois Estados e atribuíram à OLP a gestão dos territórios palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza — que o Hamas continuou a levar a cabo várias ações terroristas dentro do Estado de Israel. Isto enquanto a Fatah pousava as armas. E esse foi o statu quo durante quase vinte anos.
Até que, em 2006, tudo mudou. As eleições para o Conselho Legislativo Palestiniano foram vencidas pelo Hamas e não pela Fatah, como indicavam as sondagens. “Inicialmente, a Fatah pareceu aceitar os resultados. Mas acabou por rebentar uma guerra civil entre os dois lados”, resume o professor Nathan J. Brown. O resultado final acabou por ser uma Cisjordânia controlada pela Fatah e uma Faixa de Gaza dominada pelo Hamas. A rivalidade entre os dois grupos acicatou-se desde aí, sublinha o especialista, com membros da Fatah a serem perseguidos até hoje em Gaza e militantes do Hamas perseguidos na Cisjordânia. “Desde então já houve todo o tipo de negociações e acordos limitados, mas a animosidade entre os dois persiste”, resume Brown.
O Hamas venceu as eleições de 2006 muito graças à sua estratégia de se apresentar como um ator alternativo à Fatah, percecionada pelos palestinianos como corrupta e ineficaz. Na campanha, prometeu “transparência e responsabilidade no uso de fundos públicos” e a defesa “do pluralismo político e da rotação do poder”, lembrava em 2016 Justin Curtis, da Faculdade de Direito de Harvard.
A chegada ao poder revelou, porém, que não seria essa a realidade. A repressão dentro da Faixa de Gaza não é apenas contra membros da Fatah: mulheres, membros da comunidade LGBTQ+ e jornalistas continuam a ser perseguidos. Uma sondagem do Instituto de Opinião Pública Palestiniano dava conta, em 2022, de que 54% dos habitantes de Gaza sentem que não podem criticar a autoridade do Hamas. Na sociedade civil vão surgindo iniciativas, como as conversas no X (antigo Twitter) com a hashtag “#Gazasequestrada”, onde se responsabiliza abertamente o Hamas pela situação atual da população.
Isso não significa, é claro, que todos os habitantes de Gaza estejam contra o Hamas. Mas num regime em que o poder se exerce de forma autoritária, é difícil haver espaço para a resistência, explica Nathan J. Brown: “O Hamas tem algum apoio significativo dentro de Gaza. Mas o Hamas é autoritário, não aceita oposição e os palestinianos simplesmente convivem com ele como sendo algo inevitável”, afirma. Jeroen Gunning confirma que este é um cenário “complexo”. “Inicialmente, as pessoas viam o Hamas como menos corrupto do que a Fatah e valorizavam isso. O grupo inicialmente melhorou alguns serviços públicos, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, construiu um aparelho de segurança que é extremamente duro para quem critica o Hamas. E foi-se tornando progressivamente mais autoritário.”
O ataque a Israel de 7 de outubro vem confirmar que o braço-de-ferro interno entre moderados e radicais está a ser vencido pela linha dura, aponta o especialista. “Houve momentos nos últimos 15 anos em que os elementos mais pragmáticos do Hamas pareciam estar dispostos a aceitar uma solução de dois Estados. Mas esses elementos foram marginalizados. Estes últimos ataques são o Hamas a dizer que não vai seguir o caminho da Fatah. São eles a dizerem que continuam no caminho da resistência violenta.”
Mas a dimensão da violência aplicada contra civis, desta vez, deixa todos num cenário nunca visto. “Quando o Hamas parte para confrontações militares contra Israel, geralmente fá-lo porque pensa que vai recolher mais apoio popular junto dos palestinianos”, nota Brown. Desta vez, porém, pode não ser esse o resultado. “A resposta de Israel deve estar a ser profundamente assustadora para quem vive em Gaza e não sabe como vai ser o dia de amanhã. O meu palpite é que a maioria está simplesmente em choque e não quer ser pró-Hamas ou anti-Hamas, só quer sobreviver.”
A Fatah. Sem o talento de Arafat, partido afunda-se em contestação na Cisjordânia
Enquanto os bombardeamentos a Gaza e a ameaça de uma invasão terrestre por parte de Israel se mantêm, na Cisjordânia a situação também permanece tensa. E a Autoridade Palestiniana de Mahmoud Abbas faz esforços tímidos, como a participação na cimeira diplomática do Cairo neste fim-de-semana. Mas muitos se interrogam sobre a sua real capacidade para influenciar o conflito.
E as dúvidas não são de agora. Já em 2006, um artigo do New York Times citava uma velha piada que circulava entre os palestinianos: “O que aconteceria se a AP desaparecesse?”, pergunta alguém. A resposta surge rápida: “Como é que notávamos sequer que tinha desaparecido?”
A Fatah (acrónimo em árabe para Movimento de Libertação Nacional Palestiniano) tem tido sérias dificuldades em se afirmar como um ator político em nome dos palestinianos desde a morte do líder Yasser Arafat, em 2004. O líder histórico conseguiu manter a popularidade, mesmo quando depôs as armas, notam dois investigadores do think tank israelita INSS Kobi Michael e Ori Wertman: “A sua conduta sempre se caracterizou por uma dualidade: a de uma figura de Estado que procurava um acordo acompanhada pelo cultivo de um ethos de resistência e de libertação de toda a nação.”
A par disso, sempre conseguiu manobrar a política palestiniana, mascarando as divisões internas, num processo que o próprio descreveu em tempos como a imposição “da democracia numa selva de armas”.
Desde a morte de Arafat, porém, a AP tem sido conduzida por Mahmoud Abbas, que não revelou o mesmo talento político. Antigo comandante de Arafat, aos 88 anos é visto como um líder que abafa os dissidentes internos e recorre crescentemente a uma postura autoritária. Ao mesmo tempo, é percecionado por muitos palestinianos como incapaz de impor a sua visão junto de Israel e da comunidade internacional. Abbas tem repetidamente adiado eleições e governa por decreto desde 2009, altura em que o seu atual mandato expirou.
“A Autoridade e a Fatah não nos representam nem nos servem”, desabafava um membro da juventude partidária do grupo ao Christian Science Monitor no ano passado, na cidade de Nablus. “Na verdade, consideramo-los um inimigo silencioso, disposto a trair-nos a qualquer segundo.”
Jeroen Gunning destaca que a impopularidade da Fatah já era gigantesca ainda antes da Operação Al-Aqsa: “Numa sondagem de setembro, 78% dos palestinianos dizem que Abbas se devia demitir. E 65% dizem que votariam no Hamas caso houvesse eleições”, aponta. “Muitos na Cisjordânia estão desiludidos com a Fatah, sentem que ela está a gerir a ocupação de Israel. E isso deixa a Fatah numa posição muito difícil.”
O ano de 2023 já era aquele com mais vítimas mortais em Israel e Palestina desde a segunda Intifada. Em meados de setembro, 182 palestinianos e 24 israelitas já tinham morrido na sequência de ataques com rockets e, sobretudo, confrontos entre as forças de segurança (israelitas e da Autoridade Palestiniana) e palestinianos na Cisjordânia. Sob o atual governo de Benjamin Netanyahu, apoiado por partidos de extrema-direita, os colonatos expandiram-se e a violência aumentou — com rumores de que poderia estar para breve uma nova Intifada e alguns a falar na “Gazificação” da Cisjordânia.
“Frustração e alienação” cresce entre os palestinianos. Quem os vai liderar após o 7 de outubro?
Foi neste caldo que, ao longo dos últimos dois anos, surgiram milícias populares que dizem não alinhar nem com a Fatah nem com o Hamas e que prometem defender-se com as próprias mãos. Os grupos — dos quais o mais conhecido é o “Covil dos Leões” — atuam sobretudo em cidades como Jenin e Nablus e já levaram a cabo alguns ataques violentos sobre israelitas em colonatos.
O seu apoio popular tem crescido. Uma sondagem citada pelo New York Times dá conta de que 7 em cada 10 dos inquiridos, em dezembro de 2022, diziam apoiar o “Covil”. Nathan J. Brown diz que este é o resultado da falta de estratégia quer do Hamas, quer da Fatah. “A frustração e a alienação entre os jovens palestinianos é astronómica. No verão passado estive na Cisjordânia e vi a disposição deles para apoiar qualquer ação por parte de qualquer grupo”, confessa.
Apesar disso, o especialista considera que a influência de grupos como o “Covil dos Leões” ainda é limitada: “Embora representem um problema real, não é claro se estão assim tão bem organizados e se conseguirão sobreviver”; nota.
É no meio deste cenário de caos e falta de liderança do movimento palestiniano que o Hamas lançou o seu ataque a Israel a 7 de outubro, que pode vir a alterar por completo o panorama da política interna palestiniana. “Com este ataque, o Hamas assumiu-se como o líder incontestável da causa palestiniana”, alerta Jeroen Gunning. “A Fatah foi completamente afastada destes acontecimentos.”
Se isso se traduzirá numa radicalização dos palestinianos e num apoio incontestado ao Hamas, ainda é uma incógnita. “O padrão anterior era o de aumento de apoio após uma ação armada. E é verdade que o simbolismo do Hamas ter rompido a barreira de Gaza fará com que parte da população os veja como heróis. Mas nem todos partilham dessa visão”, acrescenta o professor da King’s College.
A isso soma-se o impacto da ofensiva israelita, com um número de mortos civis acima dos quatro mil (segundo dados do Hamas): “Não sabemos se isso vai fazer com que os habitantes do Hamas se afastem dele ou o apoiem ainda mais”, confessa Gunning.
Certo é que o momento é absolutamente transformador e será ainda mais caso Israel consiga cumprir o seu objetivo de destruir totalmente o Hamas. “É possível que haja uma tentativa da comunidade internacional de voltar a colocar a Fatah em Gaza”, aponta Nathan J. Brown. “A questão é se o Hamas irá resistir ou estará sequer capaz de resistir a isso.” E se os palestinianos aceitarão ser conduzidos por um partido com o qual já estavam profundamente descontentes.