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A imagem foi-nos apresentada por um treinador, ainda na primeira semana do regresso aos trabalhos das várias equipas. “À partida parece mais fácil um atleta treinar para uma maratona e depois fazer uma mini maratona do que treinar para uma mini maratona e depois fazer uma maratona. No futebol não é assim”. Se dúvidas existissem sobre a ideia, os jogos iniciais da Bundesliga depois da pandemia tiraram-nas: o ritmo médio dos encontros e a multiplicação de lesões musculares (muito maior do que antes da paragem) mostraram que este será sempre um final de temporada atípico. Mas não ficam por aí as mudanças, porque até máximas como o “factor casa” perderam validade neste novo normal sem prazo.
Primeiro houve a tentativa de reforçar a casa dos atletas com equipamentos que permitissem fazer treinos via Zoom, com parte física e bola em exercícios restritos a meia dúzia de quadrados. Depois, o regresso, com circuitos únicos de passagem, os trabalhos individuais, a obrigatoriedade de levar a roupa de casa – e os sinais de desgaste e fadiga que chegaram nesse período, porque treinar num relvado de chuteiras é diferente. E testes, muito testes aos futebolistas, naquela que se tornou a profissão mais testada ao coronavírus do país. A Bíblia da DGS a isso obriga, sendo que o Código de Conduta está longe de merecer aceitação total porque muitos, entre jogadores, treinadores e clubes, continuam sem perceber o porquê do confinamento antes e depois dos treinos.
Mas houve mais mandamentos na retoma, cada um pensado ao detalhe por quem consegue hoje monitorizar ao limite qualquer atleta percebendo a probabilidade de contrair uma lesão muscular caso jogue 45, 60, 75 ou 90 minutos, e que envolveu plantéis mais extensos, muito trabalho tático por setores e atenção especial à vertente mental, a mais desgastada nesta fase.
A partir desta quarta-feira, com o Portimonense-Gil Vicente no Portimão Estádio (19h00), começam 90 jogos que irão dar a conhecer o campeão, os apurados para as provas europeias e os despromovidos. Até lá, entre os dois meses de confinamento e as quatro/cinco semanas de treinos, houve muito trabalho (in)visível feito por todos.
Antes do regresso aos treinos, houve máquinas em casa e até férias
Os hospitais tinham poucas dúvidas: depois de aparecerem os primeiros casos do novo coronavírus, seria uma questão de tempo até à propagação da pandemia. Os departamentos médicos dos clubes da Primeira Liga também tinham essa perceção e, em poucos dias, começaram a preparar um confinamento que ninguém sabia ao certo como iria decorrer e quanto tempo poderia durar. Nos clubes com essas possibilidades foram instaladas máquinas e demais acessórios nas casas dos jogadores; noutros, foram estudadas formas alternativas para fazer todo o trabalho possível em casa – as únicas exceções, poucas, foram jogadores a recuperar de lesões mais graves e que necessitavam de material e apoio que dessa forma não eram possíveis. A preparação foi feita com sessões diárias durante a semana via Zoom para todos, depois havia trabalho complementar para alguns. O método mudou na segunda quinzena de abril, já a preparar o regresso: primeiro houve treinos individuais, em que os atletas recebiam o programa que tinham de cumprir; a seguir, e de forma ponderada, seguiram-se férias.
O Código de Conduta foi aceite – mas muitos continuam a não concordar
Danilo, Zé Luís, Soares ou Francisco Geraldes foram alguns dos jogadores que, em termos públicos, manifestaram a sua discordância com o parecer da DGS em relação ao Regresso à Competição. Algo que levou mesmo o Sindicato de Jogadores a pedir a Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde que integra a task force criada pela Federação Portuguesa de Futebol, para que tivesse uma conversa com os capitães de equipa. Também os clubes consideraram “abusivos” alguns contornos do Código de Conduta para os atletas, mesmo não expressando essa ideia em termos públicos. Em resumo, não concordavam com a responsabilidade que caía em cima de atletas e clubes em caso de infeções estando a mesma ligada a um regime que obriga a que os jogadores só possam deslocar-se de casa para os treinos e dos treinos para casa, o que não acontece com todas as outras pessoas que estão agora a começar o desconfinamento. Fazer cumprir essas “regras” tem sido uma das preocupações das equipas.
Como foi preparado o plano físico de regresso (e a monitorização do treino)
Já era de certa forma esperado, mas houve um “choque” com a realidade no regresso aos treinos: apesar desse tempo de férias com mera atividade de manutenção, é certo que os jogadores tiveram quase dois meses a treinar em casa durante a pandemia. Problema? Faltava relva. Consequência? A primeira semana foi complicada, com casos em algumas equipas de jogadores a acusarem o desgaste e a fadiga. Solução? Adaptar parte dos treinos a essas situações sem desviar o coletivo do programa que estava traçado e que, de comum acordo entre todos os responsáveis dos departamentos médicos, foi montado para um período de pouco mais de quatro semanas: uma primeira de readaptação, uma segunda a aumentar a carga em regime de treino individual, duas últimas com mais de parte tática, mas já a misturar o plano físico com a vertente de jogo. Nota importante: quase todas as equipas têm hoje mecanismos de monitorização que permitem não só controlar a forma física de um jogador, mas também a probabilidade de lesão antes da alta intensidade, neste caso na vertente muscular.
As duas últimas semanas mais dedicadas ao treino tático
No fim de semana de 23 e 24 de maio, mais especificamente no sábado, quase todas as equipas fizeram um treino conjunto no campo inteiro, 11×11, sem as limitações que existiam inicialmente de acordo com o parecer da DGS e do Código de Conduta que estava em vigor. Aliás, como nos explicaram, as duas últimas semanas funcionaram quase como se fosse uma pré-temporada: treinos de segunda a sexta-feira, “teste” no sábado, folga no domingo. Neste particular, houve a distinção entre equipas como FC Porto e Benfica ou Sporting: enquanto os dois primeiros têm modelo e ideia de jogo enraizadas que podem sofrer mudanças depois no plano tático com pequenas variações mediante o adversário e a forma como se apresenta, os leões, que antes da pandemia tinham treinador há menos de uma semana por quem foram liderados só num encontro, puderam sistematizar processos e consolidar rotinas.
A importância do treino feito por setores (o que neste contexto não alterou)
Quando as equipas da Primeira Liga começaram a voltar aos treinos no relvado, os jogadores foram colocados em grupos que, ao longo do dia, realizavam a sua sessão chegando ao local, seguindo circuitos obrigatórios únicos e não utilizando os balneários. Depois, para quem tinha centros de estágio, foi possível cada atleta poder utilizar o seu quarto para se equipar e tomar banho, ao mesmo tempo que foram criadas condições de distanciamento para utilização do refeitório (sendo que muitos ou levavam refeições confecionadas pelo clube ou tinham dietas para irem seguindo em casa). A “normalidade” voltou a seguir à segunda ronda consecutiva de testes negativos, mas até aí houve momentos em que os plantéis treinaram por grupos, com o treinador principal a agarrar num setor (que por norma costuma ser a defesa) e os restantes técnicos a trabalharem os outros (mais as ações ofensivas).
O “factor casa” desapareceu mas ainda se podem construir referências
Uma das principais ilações das quatro primeiras rondas da Bundesliga, a primeira a recomeçar depois da pandemia, é que aquilo que se denominava de “factor casa” desapareceu: o número de pontos conquistados pelas equipas visitantes aumentou em média, sinal de que, com os encontros a decorrerem à porta fechada o “peso” de jogar num outro ambiente teve tendência para diminuir, tratando-se quase de uma partida em terreno neutro. No entanto, existe ainda um ponto que tem sido trabalhado pelos treinadores nas últimas semanas, de forma mais ou menos frequente: treinar nos relvados onde depois vão jogar permite que os jogadores consigam construir referências posicionais e de espaços que não teriam se jogassem em campos “neutros”. Os “grandes”, que concentram a sua preparação nas respetivas academias, já passaram todos pelos seus estádios (incluindo com treinos à noite), e as restantes equipas têm também aproveitado para fazer o mesmo – até o Santa Clara, que vai treinar e jogar na Cidade do Futebol (uma estreia).
A observação dos adversários, que não está às escuras mas quase
Os departamentos de observação e análise de adversários das equipas técnicas da Primeira Liga têm por missão recolher todos os dados dos conjuntos que se cruzam no calendário a dois níveis: acompanhar a evolução dessas mesmas formações ao longo da temporada e, na semana em que se cruzam com a sua equipa, fazer um relatório mais detalhados das principais características individuais e coletivas. Ou seja, a informação existe sobre A, B, C e D, mas nas vésperas de A ser o adversário é compilada toda a informação que reflete em termos táticos os últimos cinco encontros realizados, lances de estratégia adotados ao longo da época e o momento que cada jogador (provável titular ou suplente utilizado) atravessa. Nesta fase, são três os obstáculos: por um lado não há referências no plano coletivo a não ser as que existiam em março – sendo que até antes do início do Campeonato existem os encontros particulares de pré-temporada e agora nem isso; por outro, Sporting ou Sp. Braga, que mudaram de orientação técnica pouco antes da pandemia, tiveram agora tempo para trabalhar outras “propostas coletivas”; por fim, ninguém consegue saber ao certo em que plano físico conseguirão apresentar-se as equipas.
Controlar a ansiedade: primeiro a tranquilizar, depois a “normalizar”
O exemplo foi-nos dado por um médico de uma equipa “grande” ainda nos anos 90, altura em que “essa questão da parte mental do jogo não existia”: um jogador que era dos mais talentosos da equipa, que tinha vindo da formação e que tentava agarrar lugar treinava bem toda a semana, começava a ficar nervoso quando percebia a hipótese de ser titular e algumas vezes teve problemas musculares que o levaram à substituição ainda na primeira parte. Hoje era mais complicado que isso acontecesse, até porque a tal parte psicológica é uma das principais preocupações de trabalho das equipas técnicas: no regresso aos treinos, o foco das equipas passou por tranquilizar os jogadores em relação às condições de segurança criadas (num caso em específico, por exemplo, “blindando” o grupo às notícias nas redes sociais que davam conta da existência de casos positivos); agora, nos últimos dias, a ideia passou pela normalização do que será a volta aos relvados – “os estádios podem estar vazios mas vocês estão a fazer o que mais gostam”.
Os plantéis com mais de 30 jogadores e a dúvida que os treinadores têm
Por norma, 24/25 é o número mágico de um treinador quando constrói um plantel (21/22 jogadores de campo mais três guarda-redes). Depois, há sempre entradas ou permanências de última hora que aumentam para os 26 a 28 elementos, o que pode ou não ser acertado no mercado de inverno. Nesta altura, muitos plantéis têm mais de 30 atletas, alguns recrutados à equipa B e/ou à equipa Sub-23. Porquê? Três grandes razões: 1) acautelar qualquer eventualidade de testes positivos que obriguem outros elementos a entrar de quarentena; 2) aumentar o número de opções disponíveis, preparando um maior número de problemas físicos; 3) começar a trabalhar a próxima época, nomeadamente com jogadores mais jovens que entram já no conjunto principal para iniciar o processo de decisão. No entanto, como nos explicou um treinador, há uma grande dúvida que só o tempo poderá dissipar: é melhor para uma equipa promover uma maior rotatividade para poder jogar com uma intensidade mais alta ou abordar as dez jornadas com um núcleo duro que vá gerindo tempos e ritmos em função do resultado?
O desgaste mental de 12 meses sem parar e os jogadores em final de contrato
Em condições normais, havia duas possibilidades para os jogadores nesta altura do ano: ou estavam nas seleções qualificadas para o Campeonato da Europa a preparar a fase final ou já se encontravam de férias. Mas agora têm ainda cerca de um terço da Primeira Liga por realizar (seguindo-se, no caso de FC Porto e Benfica, a final da Taça de Portugal) de uma época que começou com a pré-temporada no início de julho de 2019 e que teve apenas uma semana de pausa nos treinos por altura do Natal. Mentalmente, existe um inevitável desgaste, adensado pelo volta-não-volta-volta-não-volta que houve no final de abril/início de maio – e a obrigatoriedade de confinamento dos jogadores, que também limita, e muito, qualquer solução para o problema. Depois, a questão dos contratos: cerca de 140 atletas terminavam o respetivo vínculo a 30 de junho, houve um prolongamento mas mantém-se a incerteza sobre o futuro com um mercado de transferências que será diferente e com valores muito mais baixos dos que estavam a ser praticados. Todos os pormenores têm importância e saber lidar com os mesmos é parte do caminho para o sucesso.
Treino, confinamento, teste. Máscara, estágio, teste
Alguns clubes decidiram concentrar os jogadores na última semana e meia antes do regresso do Campeonato, outros seguiram apenas a regra do parecer da DGS que obriga a que os atletas mantenham o confinamento e saiam apenas de casa para os treinos. Aí, os métodos têm sido semelhantes: medição de temperatura, questionário para aferir qualquer tipo de sintoma e permissão de entrada para a sessão de trabalho. E tem havido testes, muito testes. Tal como aconteceu na Alemanha, em Inglaterra ou em Espanha (país onde o maior “choque” acabou por ser o elevado número de jogadores que já tinham ganho anticorpos contra o vírus), a Primeira Liga registou pouco mais de dez casos positivos entre jogadores, técnicos e elementos do staff, estando já quase todos recuperados. Agora, com os jogos, os cuidados serão ainda maiores: um teste o mais em cima possível dos jogo (e a 72 horas, se o jogo for mais de cinco dias depois), uso de máscara nos autocarros, quartos individuais, proteções no acesso ao estádio. Cuidados que muitos consideram um exagero comparando com o resto da população, mas que todos aceitam por serem “as regras de jogo”.