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O regime imperial, instituído na prática por Augusto, trouxe estabilidade a Roma, por comparação com o tumultuoso período de guerras civis que marcou os últimos anos da República. Porém, essa estabilidade era relativa e a ela subjaziam permanentes tensões entre o imperador (ou princeps, como Augusto se fez designar), os seus familiares (e potenciais candidatos ao poder), o Senado, os generais proeminentes e o povo. Tibério, que acolheu o sobrinho-neto Calígula no seu retiro em Capri a fim de o preparar para ser seu sucessor, deu-lhe este precioso conselho: “Dá prioridade ao teu próprio prazer e segurança. Pois todos eles te detestam e desejam ver-te morto”.

Nero contemplando o incêndio de Roma, segundo Alphonse Mucha, 1887

A dinastia júlio-claudiana

Tom Holland é um escritor de sucesso na área da divulgação histórica, particularmente nos períodos da Antiguidade Clássica e da Idade Média, que tem tido a fortuna de ver publicadas em Portugal as suas obras mais conhecidas neste domínio: Fogo persa: O primeiro império mundial e a batalha pelo Ocidente, sobre a ascensão do império persa e as suas tentativas frustradas para subjugar Atenas e Esparta; Rubicão: O triunfo e a tragédia da República Romana, que faz um retrato da República Romana no seu momento culminante, no séc. I a.C., antes de soçobrar nas guerras civis de onde emergiu a autocracia de Júlio César; Sob o signo da espada: A batalha pela constituição de um império global e o fim do Mundo Antigo, que mostra como, no século VII, o colapso dos sucessores dos impérios rivais de Roma (Bizâncio) e Pérsia (o Império Parto), criou um vazio de poder que permitiu a ascensão meteórica do Islão, uma religião que Holland faz questão de mostrar como sendo uma derivação pouco imaginativa do judaísmo e do cristianismo; e Milénio: O fim do mundo e o avanço do Cristianismo, sobre as lutas e tensões na Europa na viragem do primeiro para o segundo milénio, com destaque para os sucessivos braços-de-ferro entre o papa e o Sacro Imperador Romano.

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Todos estes livros foram publicados na Alêtheia, surgindo agora Dinastia: Ascensão e queda da casa de César na Vogais, com tradução de José Pires.

“Dinastia”, de Tom Holland (Vogais)

Holland não traz revelações a um domínio que tem sido intensamente explorado por historiadores e divulgadores, mas consegue urdir uma prosa sedutora e fluida, esboça retratos psicológicos convincentes e delineia motivações para as decisões e actos dos protagonistas, o que ajuda a trazer de volta à vida estas figuras da há dois milénios. Porém, tal é conseguido através da mistura indiscriminada de factos históricos comprovados com os relatos de Tácito, Suetónio e outros historiadores romanos, cujo compromisso com a verdade é bem diverso do dos historiadores modernos e que muitas vezes reproduziam os mais desvairados rumores que corriam por Roma. Acresce que alguns destes relatos foram escritos muito tempo depois dos factos – Tácito tinha 12 anos quando Nero, o último imperador júlio-claudiano, faleceu e Suetónio nasceu um ano depois – e outros foram feitos para agradar ao novo imperador, cuja ascensão seria tanto mais legitimada quanto mais denegrida fosse a actuação do seu antecessor.

Muito do que Holland apresenta como versão única e factual dos eventos não passa de uma entre várias hipóteses, cada uma das quais tem os seus defensores e críticos, e algumas situações que surgem nitidamente recortadas no livro, são, à luz do que hoje se conhece, apenas borrões indistintos. A leitura, sendo instrutiva e agradável, deve, pois, ser feita cum grano salis.

O livro tem a seu favor a inclusão de vários mapas e árvores genealógicas, sendo estas últimas absolutamente indispensáveis para nos orientarmos pelo emaranhado que é a dinastia júlio-claudiana, com os seus muitos filhos adoptivos e múltiplos casamentos entre parentes próximos.

Octaviano/Augusto

Se no mundo de 44 a.C. existissem casas de apostas, Octaviano (63 a.C. – 14 d.C.), nascido como Gaio Octávio e depois conhecido como Augusto, estaria longe de ser o candidato favorito a ocupar o lugar de Júlio César, assassinado nos idos de Março desse ano. É verdade que não só era sobrinho-neto de Júlio César, como este, que não tinha filhos, o adoptara formalmente como seu sucessor, mas quando o tio-avô sucumbiu sob os punhais dos conspiradores, Octaviano tinha apenas 19 anos, tinha uma ascendência “suficientemente obscura a ponto de permitir que os seus inimigos fizessem acreditar que um seu bisavô tinha sido um ‘escravo liberto, um servo’” e não tinha dado mostras, na sua breve vida, de particulares talentos.

“A morte de César”, por Jean-Léon Gérôme, c.1859-67

Octaviano parecia, pois, ser o parceiro mais débil do triunvirato que formou com Marco Emílio Lépido (c.88 a.C. – c.12 a.C.) e Marco António (83 a.C. – 20 a.C.) com o objectivo de vingar a morte de César. Após o triunvirato ter imposto aos conspiradores uma pesada derrota na batalha de Filipos, na Macedónia, em 42 a.C., não tardaram a surgir tensões entre os triúnviros – o primeiro a ser afastado foi Lépido, que Holland descreve como “um velho companheiro de César, cuja impecável linhagem e enorme variedade de ligações não conseguiam esconder a sua essencial mediocridade”. Marco António era reconhecido como general e tinha dado provas do seu valor no campo de batalha (nomeadamente em Filipos), mas Octaviano “tinha sido agraciado com duas heranças de inestimável valor: a fortuna do seu tio-avô e o seu prestígio”. Poderia acrescentar-se que Octaviano revelou talento na gestão financeira, uma vez que soube consolidar a herança de César com desvios de receitas de impostos e fundos públicos destinados a campanhas militares. E também soube cimentar o prestígio herdado, primeiro, em 42 a.C., acrescentando o seu nome com “Divi Filius” (“filho do divino”, remetendo para Júlio César, que tinha, entretanto, sido divinizado), e depois, em 38 a.C., tornando-se Imperator Caesar Divi Filius (embora a maioria dos historiadores continue a referir-se a ele como “Octaviano” até ao momento, em 27 a.C., em que se tornou imperador de facto e assumiu o nome de “Augusto”).

Marco António e Cleópatra, por Lawrence Alma-Tadema, 1883

Marco António, que assumira a governação da parte oriental (a mais rica) das possessões romanas parecia desfrutar de vantagem, mas a verdade é que depois de ter ficado embeiçado por Cleópatra VII, a governante do Egipto (e ex-amante de Júlio César), o seu desempenho nos campos político e militar foi pautado pela inépcia e frouxidão, acabando por conferir um cunho de veracidade aos rumores disseminados por Octaviano de que o seu rival se deixara seduzir por uma feiticeira oriental e renegara os valores romanos (em António e Cleópatra, Adrian Goldsworthy faz uma convincente desmontagem das supostas qualidades militares de Marco António, que pouco mais seriam do que propaganda).

A desastrosa actuação de Marco António culminou na derrota na batalha de Ácio, no Mar Jónio, em 31 a.C., em que os dois amantes empreenderam uma fuga precipitada e vergonhosa, abandonando os seus soldados e marinheiros no campo de batalha. De nada lhes serviu refugiarem-se em Alexandria, pois Octaviano perseguiu-os e o casal acabou por ficar sem outra saída senão o suicídio. Pelo sim, pelo não, Octaviano mandou eliminar também Cesarião, o filho de 13 anos de Júlio César e Cleópatra.

“A batalha de Ácio”, por Lorenzo A. Castro, 1672

Octaviano assumiu o nome de Augusto e acabou por reinar de 27 a.C. a 14 d.C. – 41 anos, de longe o mais longo reinado de um imperador romano – embora sem nunca assumir o título de “imperador”, optando antes pelo título de princeps civitatis, algo como o “primeiro cidadão do Estado”. Augusto foi homem de refinada dissimulação, que ao mesmo tempo que concentrava nas suas mãos cada vez mais poder, fingia desdenhar títulos, aclamações, honrarias e recompensas (no que revela algumas afinidades com o “nosso” Salazar). Proclamava ser “um homem comum, interessado apenas numa vida tranquila”, fingiu restaurar a preeminência do Senado, mas, “a sua renúncia aos poderes formais não consubstanciava a renúncia ao poder” e se “os aristocratas com nomes famosos podiam concorrer aos altos cargos, como os seus antepassados tinham feito […] fá-lo-iam como tigres em cativeiro, sem ultrapassar os limites de um jardim zoológico ornamentado e esplêndido”.

Estátua de Augusto, de dois metros de altura, conhecida como “da Prima Porta”, por ter sido descoberta, em 1863, na antiga villa de Lívia, em Prima Porta, perto de Roma

Augusto nunca deu mostras de capacidade militar – Holland classifica-o como “um general incapaz” – mas encontrou em Marco Vipsânio Agripa um eficaz lugar-tenente, não só no domínio militar como nas obras públicas e na gestão. Augusto concedeu a Agripa poderes quase idênticos aos seus, fez dele seu genro e tudo indicava que seria o seu sucessor, não fosse ter morrido com 51 anos, em 12 a.C.

Ruínas do teatro romano de Mérida, construído em 16-15 a.C., uma das muitas obras monumentais promovidas por Agripa durante o reinado de Augusto

Em Guerra! Para que serve? (2016, Bertrand), Ian Morris defende que a Pax Romana imposta por Augusto foi benéfica para Roma e para os povos a ela submetidos: a aristocracia romana reconheceu “que apenas Augusto podia usar violência mortífera [e encontrou] modos mais calmos de resolver as suas diferenças. O Leviatã desarmou a aristocracia”. Também os vários reinos e tribos da bacia mediterrânica e da Europa que se digladiavam constantemente acabaram, ao ficar sob o jugo romano, por viver um período de paz inédito. Morris estende estas considerações a outros tempos e geografias para fazer o elogio do Leviatã de Hobbes: para que o mundo goze de paz é preciso que emerja um império suficientemente poderoso para intimidar todos os potenciais desordeiros.

Holland anda próximo das ideias de Morris quando escreve que “juntas, a ganância dos poderosos e a brutalidade das massas tinham [conduzido a República Romana] à beira da ruína. Se os deuses não tivessem enviado Augusto para resgatar Roma da miséria das guerras civis” a cidade teria perecido. “O dever do princeps era claro: ficar de guarda à República e protegê-la de si mesma. A revolução não poderia estar mais longe do seu pensamento”. Augusto tinha uma natureza conservadora e terá afirmado que “o homem bom é aquele que não tenciona alterar a forma tradicional de fazer as coisas”.

É natural que o forte conservadorismo de Augusto não visse com bons olhos os escritos de Públio Ovídio Naso (43 a.C. – c.17 d.C.), que faziam o elogio da licenciosidade e do adultério e troçavam das tradições. Ovídio afirmava que “por mais restrições que se façam a uma pessoa, a mente permanece adúltera. Não se pode regulamentar o desejo” e admitia que “os meus gostos sexuais são desviantes, já não é a primeira vez que me metem em trabalhos”.

Estátua de Ovídio em Constanta, Roménia, por Ettore Ferrari, 1887

“Como alguém designado pelos deuses para a grande tarefa de salvar e regenerar os romanos, Augusto não podia fechar os olhos perante qualquer corrosão dos seus valores ancestrais […] e não tinha abençoado a cidade com monumentos de deslumbrante beleza para vê-los tornarem-se em locais de passeio de parasitas sociais e mulherengos”. A publicação por Ovídio, no ano 2 d.C., de Ars amatoria (“A arte de amar”), um guia prático e desassombrado “no qual dava conselhos às mulheres sobre como enganar os maridos” (Holland), terá sido um dos factores a pesar na decisão de Augusto de condenar o poeta ao exílio em Tomis (hoje Constanta, na Roménia), uma cidadezinha remota na costa do Mar Negro. Para mais, Augusto poderá ter visto nalguns dos conselhos dados por Ovídio – “a melhor forma de uma mulher ludibriar um guarda, como escrever mensagens em tinta invisível e como ter uma aventura nas costas de um pai super-protector” (Holland) – uma alusão aos escândalos sexuais em que a sua filha Júlia se envolvera recentemente, para seu grande desgosto e irritação.

“Ovídio banido de Roma”, por J.M.W. Turner, 1838

Os cuidadosos e muito ponderados planos de Augusto para a sua sucessão foram sucessivamente malogrados pela morte precoce, por doença, de alguns candidatos e pelo comportamento visto como pouco recomendável de outros, de forma que no seu testamento estabeleceu que “dado que o destino cruel me arrebatou os meus filhos Caio e Lúcio, faço de Tibério o meu herdeiro”. Claro que o testamento não poderia mencionar que outro possível candidato à sucessão, Agripa Póstumo, irmão mais novo de Caio e Lúcio, tinha sido condenado a um exílio solitário na minúscula ilha de Planasia (hoje Pianosa), por ter incorrido no desagrado de Augusto, por razões que permanecem obscuras.

Tibério

Tibério Cláudio Nero (42 a.C. – 27 d.C.), que reinou entre 14 e 37 d.C., tornou-se enteado de Augusto, que mais tarde o adoptou formalmente, um recurso frequente entre os imperadores de Roma como forma de conferir legitimidade acrescida à sucessão.

Apesar de Tibério ter manifestado escassa vocação e vontade para ocupar os altos postos do Estado – tendo mesmo, em 6 a.C., escolhido renunciar aos seus cargos e retirar-se para a ilha de Rodes –, acabou por desempenhá-lo aceitavelmente durante os primeiros anos. Porém, após a morte, em 23 d.C., em circunstâncias obscuras, do filho, Druso, que partilhava com ele o poder e estava destinado a suceder-lhe, Tibério parece ter-se desinteressado da política e em 26 d.C. retirou-se para a ilha de Capri, deixando Lúcio Élio Sejano, o seu homem de confiança e Prefeito Pretoriano, a governar em Roma.

Busto de Tibério

Porém, Sejano era tudo menos digno de confiança e aproveitou-se da sua posição e do alheamento e da crescente paranóia de Tibério para, através de um maquiavélica rede de intrigas, consolidar o seu poder e remover todos os potenciais rivais à sua ascensão a imperador.

Tudo corria de feição ao ambicioso e implacável Sejano até que Antónia a Jovem (neta de Augusto e mãe de Cláudio) fez chegar a Capri uma carta que abriu os olhos de Tibério para o que estava a acontecer. A reacção não se fez esperar: a 18 de Outubro de 31 d.C., quando Sejano se deslocou a uma reunião do Senado para ouvir ler uma carta de Tibério que ele julgava conferir-lhe o estatuto de tribunicia potestas, com poderes equiparados aos de um tribuno, deparou-se antes com a denúncia das suas malfeitorias e a perda dos seus cargos – foi preso e o Senado, que momentos antes parecia estar nas suas mãos, ordenou a sua execução por garrote nessa mesma noite.

A Villa Jovis, uma das várias mansões que Tibério fez construir em Capri para seu uso, numa reconstrução (fantasiosa) de Carl Weichardt, 1900

Mas nem o fim de Sejano trouxe Tibério de volta a Roma: continuou a viver em Capri, indiferente aos rumores cada vez mais desvairados e malévolos que pululavam em Roma sobre as actividades extravagantes a que aí se entregaria e que incluíam uma vasta gama de actos perversos com rapazes da alta sociedade romana: “Beleza e corpos esbeltos; pura inocência e ascendência ilustre; era isto que o excitava”, escreveu o historiador Tácito.

Quando morreu em 37 d.C., em circunstâncias pouco claras – sugeriu-se que teria sido envenenado e depois sufocado com uma almofada pelo seu sobrinho-neto e sucessor, Calígula – o povo de Roma não sentiu saudades do imperador ausente e gritou pelas ruas “Tibério para o Tibre!”, um trocadilho que sugere que o Tibre, que era usado como sepultura para os criminosos comuns, era destino adequado ao cadáver do imperador.

Calígula

Mesmo que nem todos os rumores sobre a perversidade da corte imperial de Capri não tenham fundamento, é provável que o facto de Calígula ter aí passado boa parte da sua juventude sob a supervisão de Tibério não terá contribuído positivamente para a formação do seu carácter. No seu auto-exílio insular, Tibério foi perdendo, pouco a pouco, o sentido de Estado e o apego a rígidos e conservadores princípios, que tinham levado Augusto a escolhê-lo como seu sucessor, e parece ter desistido da intenção original de inculcar em Calígula as qualidades necessárias a um imperador e assistido com algum regozijo perverso ao despontar das más inclinações em Calígula, no meio da atmosfera de luxo mórbido e decadente que ele criara em Capri. Pelo menos é o que se depreende da frase que terá proferido sobre Calígula: “Estou a criar-lhes uma víbora”.

Calígula representa, no imaginário corrente, o paradigma do imperador romano devasso, imprevisível, exuberante, megalómano, malévolo e louco – Calígula terá sido tudo isso, mas Holland sugere que há método sob o seu desvario, uma racionalidade cruel e sádica, mas, ainda assim, uma racionalidade.

Calígula

Caio Júlio César Augusto Germânico (12-41 d.C.) ganhou a alcunha de Calígula ao ser adoptado como mascote pelas legiões estacionadas junto ao Reno e comandadas pelo pai, Germânico: “caligula” (“pequenas sandálias”) alude à réplica miniatural das sandálias ferradas dos legionários que o rapazinho calçava.

Enquanto Tibério “desprezara tudo aquilo que as multidões mais apreciavam [e] se recusara a esbanjar dinheiro para as manter entretidas”, mal subiu ao poder, Calígula começou a dissipar o fabuloso tesouro amealhado por Tibério em “extravagâncias públicas”: corridas de quadrigas, lutas de gladiadores, festas, erecção de estátuas douradas com o seu rosto.

Os sucessivos insultos aparentemente arbitrários que Calígula infligiu ao Senado podem parecer nascidos de um espírito demente, mas Calígula sabia o que fazia: “o seu objectivo era cortar cerce tudo o que sustentasse o prestígio e a auto-estima do Senado, e demolir as próprias base da sua respeitável auctoritas”. Quando um dia, no Fórum, Calígula subiu a um telhado e começou a arremessar mãos-cheias de moedas de ouro e prata à populaça, levando a que centenas de pessoas morressem esmagadas, estava também “a lembrar aos ambiciosos senadores que eles também estavam dependentes dos seus caprichos”. Às vezes a suas mensagens eram menos subtis: uma vez, “num banquete com os dois cônsules, de repente riu baixinho e disse que, com um aceno de cabeça, podia mandar cortar-lhes o pescoço ali mesmo”.

Por outro lado, “os valores morais que o seu bisavô [Augusto] tão ansiosamente defendera, eram algo que o jovem princeps escarnecia, subvertia e enfraquecia”. A monarquia vivera atrás de uma cortina tecida pelas “hipocrisias habilmente trabalhadas de Augusto e pelas ultrapassadas tradições tão valorizadas por Tibério”, que foi deliberadamente rasgada por Calígula, cuja juventude em Capri lhe abrira “os olhos para os excessos da novidade e do espectáculo que o poder de um imperador podia controlar”. “Longe de esconder a sua supremacia, tinha prazer em ostentá-la”.

Mas Calígula levou os seus mind games e a estratégia consubstanciada na frase “deixem que me odeiem, desde que me temam”, demasiado longe, e Cássio Quereio, centurião da guarda pretoriana e uma das vítimas recorrentes das humilhações dispensadas pelo imperador, assassinou-o à punhalada durante uma festa em homenagem a Augusto, a 24 de Janeiro de 41 d.C..

De Calígula diria Séneca que “a natureza, na minha opinião, produziu-o para mostrar quão longe a depravação sem limites pode chegar quando combinada com o poder ilimitado”.

Cláudio

Cláudio

Cláudio foi poupado às punhaladas, venenos e desterros que fizeram sair precocemente de cena a maioria dos membro da família imperial por ser alguém que ninguém via como rival: uma doença em pequeno deixara-o coxo, gago e ligeiramente surdo e babava-se com frequência. Porém, embora parecesse idiota estava longe de o ser e a sua paixão pela história e pelo jogo – chegou a escrever um tratado sobre o assunto – muniram-no de conhecimentos e capacidades que faltavam a outros candidatos mais óbvios ao poder.

Ainda assim, o factor sorte pesou muito a favor da subida de Cláudio ao trono. Reza a lenda que no massacre desordenado de membros da família imperial que se seguiu ao assassinato de Calígula, um guarda pretoriano terá descoberto Cláudio oculto atrás de uma cortina – Cláudio, aterrado, suplicou que o poupassem e ouviu, surpreendido, o guarda aclamá-lo como imperador.

Detalhe de pintura de 1871 de Lawrence Alma-Tadema que une o assassinato de Calígula e a proclamação de Cláudio numa mesma cena

O que é certo é que, contra todas as probabilidades, no dia seguinte ao assassinato de Calígula, Cláudio, então com 50 anos, foi designado pelo Senado como seu sucessor e ainda recebeu o título de “César”, que não fora outorgado a nenhum dos princeps anteriores. E uma vez no poder, Cláudio fez uso das suas capacidades de manipulação e do seu conhecimento dos anais romanos para lá se manter: “Ao contrário de Tibério, cuja devoção à herança do passado apenas confirmava o seu desdém instintivo pela multidão, o seu sobrinho parecia ser bem mais apreciador da plebe”. E assim investiu fortemente em infra-estruturas que contribuíram para melhorar o nível de vida dos romanos, fingiu restaurar o direito de voto popular – que, no contexto político da época, bem diverso do tempo da República, de pouco ou nada servia – e assegurou o reforço do abastecimento gratuito de cereais aos habitantes de Roma (o “pão” do “pão e circo”).

Cláudio representado como Júpiter; se as estátuas dos imperadores eram sempre lisonjeiras para os retratados, esta vai ao ponto de emprestar a um homem aleijado, enfermiço e de meia-idade, o corpo possante de um atleta na força da idade

Cláudio faleceu a 13 de Outubro de 54 d.C. e, embora a morte de um homem de saúde frágil aos 63 anos, no insalubre mundo da Antiguidade Clássica, nada tenha de inesperado, não faltaram rumores a atribuí-la a cogumelos envenenados encomendados pela sua quarta esposa, Agripina.

Nero

Tenha havido ou não mão de Agripina na morte de Cláudio, Nero (37-68), o seu sucessor (e filho adoptivo, como era da praxe), devia imenso a Agripina, sua mãe, que removera do seu caminho candidatos mais bem colocados. Nero, que era filho do anterior casamento de Agripina com Cneu Domício Enobarbo (e que começou por se chamar Lúcio Domício Enobarbo), tinha apenas 17 anos quando o padrasto Cláudio morreu e ele foi aclamado imperador, em 54, e foi Agripina quem, juntamente com o seu tutor Séneca, que lhe guiaram (ou tentaram guiar) os primeiros tempos de governação.

Nero corado por Agripina

É curioso que Séneca, tão lúcido na análise da depravação de Calígula acima transcrita, não tenha percebido que o seu próprio discípulo não era muito melhor. Nero não tardou a mostrar a sua fibra: quando começou a querer libertar-se da orientação da mãe e do tutor, Agripina tentou metê-lo na ordem, fazendo do seu irmão Britânico (filho de Claúdio e da sua terceira mulher, Messalina) um potencial candidato a imperador. Nero neutralizou a ameaça eliminando Britânico, que não chegou a perfazer 14 anos de idade. Suetónio conta que, para liquidar Britânico, Nero recorreu a Locusta, a mesma especialista em venenos que estivera envolvida na morte de Cláudio e que ambos terão testado diversos venenos em escravos antes de envenenar Britânico.

Nero e Locusta testam venenos em escravos, segundo Joseph-Noël Sylvestre, 1876

Não tardou que a sombra da mãe, que, segundo alguns historiadores, aspiraria a governar através do filho, se tornasse suficientemente incómoda para que Nero decidisse ver-se livre dela, sobretudo quando Agripina se opôs a que Nero se divorciasse de Octávia e se casasse com Popeia Sabina, mulher do seu amigo Otão.

Consta que, após muitos atritos, em Março de 59 Nero terá simulado uma reconciliação com a mãe, oferecendo-lhe um barco especialmente construído para ela – este estava armadilhado e colapsou pouco depois de deixar o ancoradouro, mas Agripina conseguiu escapar e, apesar dos ferimentos, nadar até à costa. Quando soube que o seu plano – cuja sofisticação trapalhona tinha um elemento Wyle E. Coyote – Nero deixou-se de rodeios e enviou soldados para a matarem. Claro que, como usual nestes casos, a causa oficial da morte foi “suicídio”.

[A morte de Agripina às mãos dos carrascos enviados por Nero foi objecto da cantata Agrippina condotta a morire (Agripina condenada à morte, c.1707-8), de George Friedrich Handel; excerto da interpretação de Véronique Gens (soprano) e Les Basses Réunies (Virgin/Erato)]

O trecho que descreve o atentado contra Agripina é um exemplo das liberdades “poéticas” que Holland toma e que, embora tornem a leitura menos seca, minam a credibilidade do livro: “O barco zarpou, noite fora. Na costa, as luzes brilhavam, iluminando a curva da ‘baía mais bonita do mundo’ enquanto as estrelas prateadas refulgiam no céu. Os remos batiam, as madeiras rangiam e as vozes murmuravam no convés. Tudo o mais estava calmo”. Ora, este episódio do “barco armadilhado” é apenas relatado por Tácito – Suetónio oferece uma versão completamente diversa da morte de Agripina (sem meter água nem barcos) – e sem os condimentos literários de plácido cruzeiro nocturno, que são um excipiente adicionado por Holland. Haverá sempre estrelas no céu (se for de noite e o céu não estiver encoberto) e luzes na costa do Golfo de Nápoles (se não houver nevoeiro ou blackout) e os barcos de madeira rangerão sempre, sejam novos ou velhos; quanto às vozes no convés, murmurarão, gritarão, soltarão imprecações ou cantarão consoante as circunstâncias, embora se admita que o murmúrio dá jeito para, por contraste, tornar mais estrepitoso o colapso do barco no instante seguinte.

Nero e o cadáver de Agripina, segundo Antonio Rizzi (1869-1940)

Enquanto ninguém sensato assumirá que o quadro de Antonio Rizzi sobre o matricídio de Agripina, ou os muitos que Jean-Léon Gêrome ou Lawrence Alma-Tadema ou Jacques-Louis David pintaram sobre a história de Roma, reproduzem com rigor fotográfico os episódios a que aludem, já estes trechos de fantasia no meio de um livro sobre factos históricos podem induzir os leitores incautos em erro. E deixa nos leitores mais avisados a suspeita de que, noutros trechos, Holland poderá ter acrescentado ornamentos a seu bel-prazer ou moldado a narrativa de forma a torná-la mais dramática e apetecível.

Nero

Em 62, Nero divorciou-se de Octávia, alegando que esta era incapaz de gerar descendência, e casou-se com Popeia Sabina, que já estava grávida dele. Para assegurar que não subsistiria qualquer tipo de obstáculo a ensombrar aquela união, Octávia foi condenada ao exílio e, quando os protestos populares forçaram a autorizar o seu regresso, mandou matá-la. Quanto ao ex-marido de Popeia, Otão, foi remetido para um cargo anódino num canto remoto do império – foi nomeado governador da Lusitânia…

O enlevo amoroso do casal de pombinhos teria um fim abrupto em 56, quando (conta Suetónio) Popeia, que estava grávida do seu segundo filho, reprovou a Nero passar demasiado tempo nas corridas de quadrigas – a discussão azedou e Nero deu um pontapé na barriga da esposa, o que causou a sua morte.

[“Pur ti miro”, dueto final da ópera L’incoronazione di Poppea (1643), de Monteverdi: Nero e Popeia Sabina celebram o afastamento dos obstáculos ao seu amor e fazem juras de paixão eterna. Interpretação de Max Emanuel Cencic (Nero) e Sonya Yoncheva (Popeia), Le Concert d’Astrée, direcção de Emanuelle Haïm, encenação de Jean-François Sivadier (DVD Virgin/Erato)]

Em Julho de 64, deu-se o Grande Incêndio de Roma e Nero precisou de encontrar um bode expiatório para a catástrofe. Na falta de um SIRESP ou de um downburst, encontrou-o nos “adeptos de um culto sinistro, para não dizer sociopata” e que estavam “motivados por um ódio às normas da sociedade humana”, “desprezo pelos deuses e por todos os que não pertenciam à sua seita”: os cristãos.

O Grande Incêndio de Roma, segundo Hubert Robert, 1785

Nero tirou partido do crescente sentimento de xenofobia que tinha vindo a tomar conta de Roma nos últimos anos e que tem curiosos paralelos com a atitude da Europa e dos EUA perante a imigração nos nossos dias. A capital do império tinha, necessariamente, uma grande mistura de povos, mas enquanto uns viam “na diversidade da sua cidade uma homenagem paga pelo mundo à sua grandeza e uma potente fonte de renovação, outros não estavam tão convencidos. Aceitavam acolher imigrantes desde que eles acabassem por tornar-se romanos; mas, e se eles preservassem os seus comportamentos bárbaros, infectando os cidadãos decentes com as suas superstições?”. Havia quem temesse que a proliferação de cultos e usos estranhos estivesse a fazer Roma perder a identidade. Tácito advertiria, umas décadas depois, que “hoje em dia, os escravos das nossas casas vêm de todo o mundo e [envolvem-se] em todo o tipo de cultos estranhos […] Só as tácticas de terror ajudarão a manter esta gentalha sob controlo”.

Tácticas de terror foi precisamente o que Nero aplicou sobre os supostos autores do incêndio e, com o sentido de espectáculo que seria de esperar de um imperador que se jugava um grande cantor e actor, organizou perseguições e punições exemplares, que passaram por cobrir cristãos com pez e transformá-los em tochas humanas, usadas para iluminar os jardins do seu palácio.

“As tochas de Nero”, por Henryk Siemiradzki, 1876

Apesar destas espectaculares punições, Nero não conseguiu impedir que começassem a proliferar rumores de que fora ele que ateara fogo a Roma. Não é de admirar que estes rumores se tornassem cada vez mais insistentes, pois a reputação de “extravagante e assassino” que Nero cultivara em seu torno, dava-lhe um perfil compatível com o de um pirómano de grande escala. Estava criado um ambiente favorável ao fervilhar de conspirações para remover do poder aquele “assassino da mãe e da mulher, condutor de bigas, artista de rua e incendiário” (Tácito). Em 65, Séneca envolveu-se na conspiração abortada liderada por Caio Calpúrnio Pisão e quando o descobriu o envolvimento do seu antigo tutor Nero não hesitou em ordenar-lhe que se suicidasse.

A morte de Séneca, segundo Manuel Domínguez Sánchez, 1871

Porém, o tempo de Nero estava a esgotar-se: em 68, uma rebelião contra os impostos na Gália deu origem a lutas entre legiões romanas e no clima de dissensão e instabilidade que foi alastrando, os soldados aclamaram Galba, governador da Hispania Tarraconensis, como imperador e várias forças declararam-lhe o seu apoio – nomeadamente a Guarda Pretoriana. Ao ver-se abandonado, Nero alimentou planos insensatos e desesperados que não levou a cabo e, crendo que o Senado o tinha declarado inimigo público, acabou por decidir pôr termo à sua vida, deixando como despedida uma frase bem apropriada à sua personalidade megalómana: “Que artista morre comigo!” (segundo outras versões, não tendo coragem de se suicidar, terá ordenado ao seu secretário que o fizesse).

E com Nero extinguiu-se a dinastia júlio-claudiana. Suceder-lhe-ia Galba, que reinou durante sete meses, sendo sucedido por Otão (entretanto regressado da Lusitânia), que reinou durante três meses, e Vitélio, que reinou por oito meses. Vespasiano tomou o seu lugar e não só o manteve durante 10 anos, como conseguiu algo que os seus quatro antecessores, todos vítimas de mortes violentas, não lograram: morreu na cama. E deu início a uma nova dinastia imperial.

Vespasiano

Leituras adicionais

Não há período da Antiguidade Clássica mais exaustivamente coberto em livros, filmes e séries de TV, ficcionais ou não, do que a história romana entre Júlio César e Nero. O novo volume de Tom Holland, Dinastia: Ascensão e queda da casa de César, defronta, pois, concorrência renhida – no mundo anglo-saxónico, já que em Portugal a edição de livros sobre a história romana é mais rarefeita.

Ainda assim, reportando-nos apenas aos últimos oito anos e sem contar com os livros do próprio Holland mencionados no início deste texto, foram publicados vários títulos que funcionam como complemento a Dinastia:

  • Generais romanos, por Adrian Goldsworthy (2009, A Esfera dos Livros);
  • Uma biografia de Marco Aurélio, por Frank McLynn (2009, Civilização);
  • Roma: Ascensão e queda de um império, por Simon Baker (2009, Casa das Letras);
  • Uma biografia de Cleópatra, por Stacy Schiff (2010, Civilização);
  • O fim do Império Romano, por Adrian Goldsworthy (2010, A Esfera dos Livros);
  • António e Cleópatra, por Adrian Goldsworthy (2012, A Esfera dos Livros);
  • Uma biografia de Júlio César, por Adrian Goldsworthy (2013, A Esfera dos Livros);
  • As mulheres dos Césares, por Annelise Freisenbach (2013, Texto);
  • Uma biografia de Augusto, por Adrian Goldsworthy (2016, A Esfera dos Livros);
  • SPQR: Uma história da Roma Antiga, por Mary Beard (2016, Bertrand);

Num registo mais ligeiro saíram:

  • Roma Antiga por cinco denários por dia, de Philip Matyszak (2015, Bizâncio)
  • Veni, vidi, vici, de Peter Jones (2016, Texto)