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A direita perdida no labirinto sem Fio de Ariadne

O Presidente da República teve razão quando decretou a crise da Direita? E como se pode sair dela? O passado talvez nos possa ensinar uma ou duas coisas sobre isso. Ensaio de José Miguel Júdice

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Truísmo, causas e consequência

Os truísmos costumam ser um bom ponto de partida para as reflexões.

No que se refere a este texto, o truísmo é afirmar que aquilo a que o Presidente da República chamou Direita para anunciar anos de crise no seu seio – e eu estou de acordo com ele – está numa situação em que nunca esteve, nem sequer nos tempos posteriores à Revolução que se seguiu ao 25 de abril de 1974.

O problema não é o facto de há duas semanas apenas cerca de 30% dos eleitores terem votado no PSD, CDS, Aliança e Iniciativa Liberal, embora isso já fosse muito mau sinal.

E nem sequer o pior é que nas quatro últimas eleições (europeias de 2014, legislativas de 2015, municipais de 2017 e europeias de 2019) na Direita tenham votado sucessivamente apenas 28,25%, 33,20%, 36,86% e 30,9%, mesmo que seja evidente que é muito grave que em cinco anos nunca tenham chegado sequer perto da barreira histórica mínima de 40%. E que isso tenha ocorrido em eleições tão diversas e em conjunturas tão distintas, o que anuncia a forte probabilidade de muitos e maus anos de oposição desesperançada.

E nem mesmo o pior é a evidente probabilidade de que nos próximos cinco anos se assista ao surgimento de um partido populista de extrema-direita (que sondagem recente demonstra que só é surpreendente que ainda não tivesse ocorrido), o qual evidentemente irá buscar votos à Direita. Isso deve preocupar os dirigentes desses partidos, pois é prenúncio de agravamento da situação.

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E os prováveis anos de guerras intestinas no PSD e no CDS, após a mais do que provável derrota esmagadora nas legislativas em Outubro, nem isso me parece que seja o pior que pode estar para vir, embora acentue a tendência.

O pior de tudo é, em minha opinião, a total incapacidade da Direita orgânica e inorgânica em entender o que se está a passar, não querendo ver as causas e por isso não podendo evitar as consequências.

O passado é outro país?

Uma das grandes infelicidades de avançar na idade é não perder a memória. Devido a isso, lembramos o que se passou, comparamos com o que se está a passar e olhamos para o futuro com pessimismo que aumenta na função direta das recordações.

Para fazer uma inevitável e útil digressão histórica, convém lembrar que intervenho no espaço publico quase há 50 anos, que assisti ou participei de perto ou estive mesmo diretamente envolvido em muita coisa; e que disso não me esqueci ainda.

Quando Sá Carneiro decidiu tudo fazer para deitar abaixo o modelo dos governos presidenciais, teve de enfrentar a maioria do seu grupo parlamentar e de algum modo todas as elites bem pensantes centristas e moderadas da época.

É bom também recordar que, desde que se evaporaram os miasmas fétidos da revolução proto-comunista, sustentada e acelerada pela tropa mais ou menos fandanga, centrei a minha intervenção pública em alguns objetivos simples e a que sempre me mantive fiel:

  • Tentar evitar que Portugal caísse numa situação como a italiana de então, com a eternização da coligação dos moderados, a corrupção endémica, a radicalização dos extremos e o caminho aberto para os populismos protofascistas e/ou (o que nos anos 70/80 não parecia ridículo) a queda num “pacifismo” protocomunista que parecia provável com a invasão do Afeganistão, a chegada dos soviéticos aos mares quentes, a luta contra a bomba de neutrões e a estratégia de unificação alemã através do neutralismo entre os blocos, numa Europa em crise (muito Sá Carneiro me falou de tudo isto em 1979 e 1980);
  • Para potenciar essa luta, tentar que se gerasse uma situação de bipolarização ao Centro em que o combate político e a alternância democrática fossem reais, mas decorressem dentro de uma cultura política partilhada pelas forças do que chamava o arco constitucional;
  • Pelo mesmo motivo, lutar contra as tentações hegemónicas de uma força política, como o PS (a certa altura apoiado no movimento eanista, ao que Mário Soares se opunha) até 1985 e o PSD cavaquista (apoiado pelos restos do eanismo) até 1995;
  • Defender a liberalização “tous azimuts”:
    – A liberalização política (luta contra os resquícios do poder militar que se mantiveram até meados dos anos 80 e pela consolidação de um modelo de democracia liberal),
    – A liberalização económica (com privatizações, fim de indústrias reservadas para o Estado, dos monopólios estatais e outros, aumento das regras da concorrência, sendo de lembrar que por exemplo nos media ainda em 1985 o PS combateu a favor do monopólio estatal da televisão e da existência de jornais controlados eufemisticamente pelo Estado e realmente pelos sucessivos Governos),
    – A liberalização social e dos costumes (deixar o Estado e a Igreja fora do quarto de dormir, permitir sem estigmas o direito à diferença – e recordo um debate nos anos 80 com o então “mota-pintista” Eduíno Gomes sobre a inclusão desse direito no programa do PSD – e despenalizar o aborto);
  • Proteger o Estado Social, preservar o elevador social, investir na educação universal e em políticas ativas de redistribuição e de justiça fiscal;
  • Lutar contra a corrupção, o que nos anos 80 e 90 não era fácil nem popular.

Nem tudo foram rosas, nunca nada foi evidente

Este combate, em que me alistei como soldado, e sempre a partir da sociedade civil, teve sucesso, mesmo para além do que eram os sonhos modernizadores, desenvolvimentistas, europeizantes e patrióticos de tantos de nós.

E se foram muitos os alistados, é justo afirmar que de um modo geral foi sobretudo no PSD em que tudo se jogou; e com as arritmias do processo, os seus passos em frente e os recuos, era dentro do PSD que ocorriam as batalhas decisivas.

Realço em especial três delas. A primeira, que se tivesse terminado de outro modo tudo teria deitado a perder; a segunda, que se não tivesse permitido manter um foco de resistência teria destruído o que fora feito; a terceira, que foi o pior dos fracassos, que são sempre aqueles onde tudo parece significar sucesso.

Estou a falar:

  1. Da crise dos governos presidenciais/crise dos Inadiáveis e da luta de Sá Carneiro de 1978 à sua morte que passou pela ousadia da constituição da AD;
  2. Do governo do bloco central e da luta contra ele de uma ínfima minoria no PSD que passou à história com o nome de “Nova Esperança”;
  3. Da transformação do PSD num partido hegemónico que alterou a sua base social de apoio, a sua ambição e até as suas ideias.

Em minha opinião, os dois primeiros foram tão estruturantes para a democracia liberal, em que apesar dos seus defeitos vivemos, como a rutura de 25 de Abril, o combate de Soares e Zenha contra a unicidade sindical e o que esta trazia no bojo, a luta civil e militar aberta que culminou na derrota da extrema-esquerda no 25 de Novembro de 1975, a guerra de trincheiras contra o poder militar do Conselho da Revolução (CR) que o PS e Sá Carneiro encabeçaram.

Carlos Mota Pinto, pelo PSD, e Mário Soares, pelo PS, formaram o governo do Bloco Central

LUSA

A razão desta minha tese é que em 1978-80 se conseguiu integrar os conservadores e bonapartistas na normalidade constitucional e se fundou a alternância como modelo arquétipo de luta política, e em 1983-85 se manteve a viabilidade da bipolarização política contra a tentativa de uma nova hegemonia “centrista”. Claro que essa luta gerou o subproduto do “cavaquismo”, mas a sociedade civil já estava mais forte e resistiu à tentativa de um partido dominante à Direita, como o evitou ao Centro.

Com o benefício do hindsight talvez hoje possa parecer que os riscos não existiam e/ou que tudo era tão evidente que não pode ter deixado de ser fácil.

Nada mais errado. E para o demonstrar valerá a pena lembrar algumas verdades esquecidas ou subvalorizadas. O que tentarei fazer a seguir.

Dos inadiáveis à dupla maioria da AD

Quando Sá Carneiro decidiu tudo fazer para deitar abaixo o modelo dos governos presidenciais, depois do fracasso da primeira tentativa com Nobre da Costa, teve de enfrentar a maioria do seu grupo parlamentar e de algum modo todas as elites bem pensantes centristas e moderadas da época.

Tais elites achavam que um Governo de génese presidencial, chefiado por um social-democrata moderado e oriundo da zona sociológica que era a base de apoio do PSD, com a confiança dos militares mediatizada pelo Presidente Eanes, era o máximo viável no afastamento da poderosa esquerda inorgânica que gravitava à volta do CR e, além disso, aparentemente a única maneira de derrotar o projeto de partido dominante “mexicano” que os “soaristas” estavam a tentar edificar sobre os (merecidos) louros de terem enfrentado a deriva marxizante que sobreviveu, adaptando–se, ao 25 de Novembro.

O Governo Mota Pinto ia do centro-direita a algum radicalismo de esquerda extrema (na qual se gerou depois o terceiro governo presidencial, de Maria de Lurdes Pintasilgo, que se colocou no mesmo amplo espectro, mas com uma tónica mais radical); a recusa de apoio ordenada pelo líder do PSD gerou a saída da maioria do grupo parlamentar (em 3 de Abril de 1979) e a consequente cisão profunda do PSD. Aparentemente Sá Carneiro ficou isolado. E ninguém dava nada pela sua pele.

A tese que dominava era que o PSD estava acabado por culpa do irredentismo e radicalismo de Sá Carneiro — mas ele já estava a pensar na AD (que assinaria com Freitas do Amaral e Ribeiro Teles)

Alfredo Cunha

Sei do que falo. Estava em Coimbra a passar um fim de semana quando um bom amigo e influente personalidade de Direita independente me pediu para vir a um jantar a casa dele onde se iria falar de política. Quando cheguei para o jantar encontrei muitas dezenas de pessoas: colaboradores de Eanes, pessoas próximas de Mota Pinto, alguns dos que tinham passado a deputados independentes e figuras marcantes da sociedade civil.

A tese que dominava era que o PSD estava acabado por culpa do irredentismo e radicalismo de Sá Carneiro, que tudo deitara a perder ao opor-se ao governo Mota Pinto, e que por isso era preciso e urgente começar a preparar um partido novo que se opusesse ao PS. Lembro-me de ter dito que estavam a considerar Sá Carneiro e o PSD mortos antes de tempo.

Eu tinha entretanto escrito nos finais de 1978, para ser publicado numa revista próxima do CDS, “Democracia e Liberdade”, num número especial sobre a Europa, um artigo intitulado “Linhas de Força do Sistema Político-partidário na Europa”. Nesse texto teorizava a bipolarização política, creio que de modo pioneiro em Portugal. Sá Carneiro pediu-me para ir falar com ele e lembro-me de me ter feito um cerrado interrogatório sobre essa minha tese, percebi depois porque já estava a pensar no acordo que em Junho de 1979 foi assinado com o CDS e o PPM.

Esse acordo pré-eleitoral (que teve de ir a votos por duas vezes no PSD, que o rejeitou à primeira), a que depois se juntou um grupo de dissidentes do PS e pessoas de centro-esquerda liderados por António Barreto, foi decisivo para a vitória eleitoral em 2 de Dezembro de 1979, em que a AD obteve 45,26% deixando o PS com 27,33% e a APU (comunista) e UDP (extrema-esquerda) com um total de 20,98%. Em outubro de 1980, a AD reforçou a maioria com 47,59%.

De um dia para o outro, o que não era de surpreender, desapareceram à espera de melhores dias os até então adeptos da AD dentro do PSD. Havia exceções, nessa pequena aldeia de Asterix: entre eles, Santana Lopes, que era o líder da Distrital de Lisboa, e Marcelo Rebelo de Sousa, que era dos resistentes a figura mais destacada dos que se opunham ao que iria ser o Bloco Central.

Do Bloco Central à Nova Esperança

As eleições legislativas de 25 de abril de 1983 já antes anunciavam o que se iria passar. O PS obteve 36,11%, o PSD 27,24, a APU 18,07, o CDS 12,56. O PS e o PSD já estavam a conversar antes das eleições (as primeiras em que participei como militante do PSD, a que aderira um ano exato após a morte de Sá Carneiro). As eleições sucederam-se a uma crise na AD e no PSD após as eleições autárquicas de dezembro de 1982, o que levou à queda do governo Balsemão.

O PSD foi às eleições liderado por um triunvirato em que pontificava Carlos Mota Pinto, e entre os dois partidos centrais foi feito, invocando-se motivos de interesse nacional, o que passou à história como Governo do Bloco Central.

Na sequência dessa opção, que encerrava a fase estratégica que tinha levado o PSD a, pela primeira vez, liderar um governo em Portugal, senti que havia que se tomar uma posição coletiva dos que discordavam da solução, preferindo a ela a viabilização negociada de um mero apoio parlamentar, sendo certo que a governabilidade estava assegurada pois o PS poderia formar governo e/ou ter apoio maioritário sempre que necessitasse com qualquer dos partidos (PSD, APU ou CDS).

De um dia para o outro, o que não era de surpreender, desapareceram à espera de melhores dias os até então adeptos da AD dentro do PSD. Havia exceções, nessa pequena aldeia de Asterix: entre eles, Santana Lopes, que era o líder da Distrital de Lisboa, e Marcelo Rebelo de Sousa, que era dos resistentes a figura mais destacada dos que se opunham ao que iria ser o Bloco Central. O primeiro tinha tropas e coragem política, o segundo tinha prestígio intelectual e força social.

Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes e José Miguel Júdice estiveram juntos na Nova Esperança

Eu já conhecia bem os dois e Conceição Monteiro, que fora a mais direta colaboradora de Sá Carneiro e que com Pedro Santana Lopes tinha proposto a minha filiação no final de 1981. Mas Santana Lopes e Rebelo de Sousa não morriam de amores um pelo outro. Por isso, combinei com a Conceição convidar os dois para jantar no discreto English Bar no Estoril, e fez-se um acordo de trabalhar juntos sob a liderança de Marcelo.

Éramos uma meia dúzia de pessoas, motivados sem dúvida, mas sem nenhum poder. Um ano depois, para o Congresso de Braga, conseguimos eleger 5% dos delegados, e em Maio de 1985 sem o nosso apoio Cavaco Silva teria perdido o Congresso da Figueira da Foz e a história teria sido por certo muito diferente.

O programa com que Cavaco Silva ganhou na Figueira – em que as ideias eram evidentemente dele, mas eram também as nossas, pois sem uma moção as regras não permitiriam que se pudesse candidatar — foi escrito numas horas a três mãos pelo António Maria Pereira, pelo Jorge Bleck e por mim, todos delegados pela Nova Esperança. O poder, claro, ficou com outros, mas felizmente nenhum de nós queria ser ministro…

Ou melhor, alguns não queriam, pois dos seis que começaram tudo, três chegaram a liderar o PSD, dois deles a serem primeiro-ministro, um presidente da Comissão Europeia, outro (Nuno Morais Sarmento) ministro da Presidência. E evidentemente, last but not the least, um chegou a Presidente da República. Para um grupo tão isolado e contracorrente, não se pode dizer que tenha sido um fracasso…

A causa da coisa

Não é evidentemente minha intenção fazer a História desses períodos, para o que me falta imparcialidade. Nem escrever memórias, para o que acho que ainda me sobra vida para viver, e prefiro viver a contar o que vivi.

Este texto nasceu de uma conversa com a minha queridíssima e admirada amiga, Maria João Avillez, após as eleições europeias, em casa de amigos comuns. Com a rapidez e intuição que sempre foram dela, lembrou-se do paralelismo entre o que se passa agora com o que à Direita se passou nesses tempos. Daí à provocação (a que não gosto de resistir…) foi um passo e ao convite do Observador foi um fósforo.

Vejamos então.

As razões do sucesso de Sá Carneiro

A vitória de Sá Carneiro foi possível em 1979 por um conjunto de circunstâncias que nem todas dependeram dele. Mas os cemitérios estão cheios de ocasiões perdidas quando tudo levaria a pensar que a vitória era uma serena e triunfal caminhada por entre alas de ansiosos apoiantes.

Mas não foi assim.

Quase todos os dirigentes políticos, os comentadores ou os membros da elite bem pensante davam Sá Carneiro como morto, os jornais e a televisão do regime não se cansavam de o lembrar, a revolução tinha menos de cinco anos e uma aliança com o CDS era – não exagero – rotulada (incluindo por muitos que discretamente depois mudaram, e só lhes fez bem…) de regresso ao “fascismo”.

Por isso a primeira razão do sucesso foi que Sá Carneiro levantou voo contra o vento, como Vítor Cunha Rego se não cansava de lembrar ser essencial para pilotos de aviões e para políticos. A segunda – que lhe está intimamente ligada – foi a sua capacidade de lutar, perder, voltar a perder, para acabar a ganhar. Os povos percebem isso e, com razão, sentem que quem assim vive anuncia que lutará por eles e pelas suas ideias, sem desfalecer e sejam quais forem as dificuldades.

A terceira razão do sucesso foi apresentar aos portugueses uma estratégia clara e um programa inovador e distintivo. A estratégia era a bipolarização liderada por um partido moderado. Era afinal colocar os portugueses com opções claras e soluções distintas e pedir-lhes que escolhessem. O programa era o de quem queria manter o que do velho se não deveria perder e o que do novo se deveria reforçar, projetando-se no futuro. Como o escrevi então, isso tinha algo semelhante (tudo sendo diferente, claro) ao que Napoleão fez quando tomou o poder. Sobre isso escrevi em 1981 um livro chamado O Pensamento Político de Sá Carneiro, reeditado 30 anos depois (O Meu Sá Carneiro) apenas lhe aditando então umas notas pessoais e comparando o que teria sido a evolução do País se as suas ideias (que crismei de “liberalismo avançado”, ou seja, a social-democracia como objetivo e não como caminhada para o socialismo) e não outras tivessem triunfado. Quem quiser aprofundar, por certo que os encontrará em algum alfarrabista.

Com a Nova Esperança, ficou demonstrado (o que, natural e compreensivelmente, desagrada às maiorias conjunturais) que um pequeno grupo pode ganhar desde que seja capaz de coerência, frontalidade, que não receie ser estigmatizado e que apresente um programa estratégico e político claro.

A quarta razão foi ter uma relação empática com o povo, o que alguém saído da alta burguesia nortenha se poderia pensar que não conseguiria. Mas, atenção, a empatia não era seguir a multidão (como agora é de regra), nas suas constantes flutuações humorais, mas conseguir que nos sentíssemos disponíveis para o seguir. Sá Carneiro tinha carisma e sem isso pouco ou nada se consegue, sobretudo em tempos difíceis.

A última razão, que de certa forma já está em todas as outras, convém que seja realçada. Em cada momento Sá Carneiro estava psicologicamente preparado para perder, arriscar em vez de entesourar, não se dar por satisfeito com a mera sobrevivência, não se resignar a postos e postas: viver perigosamente, dirão alguns; ir até ao fim das suas convicções, dirão outros. E seguir os seus instintos, pois não há verdadeiro carisma sem instinto político. Como ele disse, já não me lembro se ao Pedro Santana Lopes se ao Francisco Lucas Pires após a debandada dos Inadiáveis, “nunca estive tão sozinho e nunca tive tanto a certeza de estar certo”. E seis meses depois todos descobriram que tinha razão.

O que a Nova Esperança deu e o que falhou

O caso da Nova Esperança foi diferente, pois não podia ser igual. Para o bem, e para o mal, Marcelo Rebelo de Sousa não era Sá Carneiro, e Cavaco Silva entrou como um “mutante” na história, como diria Isaac Asimov. Por isso o que interessa aqui rever, para as finalidades deste texto, não é o sucesso pessoal de alguém, mas o que aconteceu e porquê às ideias de que era portador o grupo.

Houve sucesso, sem dúvida. E mesmo que se não considere como sinal disso a futura carreira de destacados membros do grupo, o que em todo o caso demonstra que discordar, ficar em minoria, perder, ver outros levantar voo usando como porta-aviões os que estiveram antes, a prazo compensa porque é reconhecido de modo positivo.

Mas ficou demonstrado (o que, natural e compreensivelmente, desagrada às maiorias conjunturais) que um pequeno grupo pode ganhar desde que seja capaz de coerência, frontalidade, que não receie ser estigmatizado (nessa altura, o mundo melhorara, o insulto já não era chamar “fascista” como Sá Carneiro era brindado, mas “liberal”…) e que apresente um programa estratégico e político claro.

O programa estratégico da Nova Esperança (1984) era realmente claro e afinal seguia o que Sá Carneiro propusera, a bipolarização ao Centro.

O programa político-ideológico também era claro. Talvez por eu ser o menos motivado para uma carreira política, coube-me a tarefa de o redigir com contributos de todos, verdade seja dita que quase só de Marcelo (muitos e ainda tenho os textos dele com a sua redondinha e inconfundível letra) e alguns de Durão Barroso (o mais importante foi colocar no programa o aumento da escolaridade obrigatória para os 9 anos, que veio a concretizar-se em 1986), pelo que recordo bem como era muito inovador, modernizador e claramente sintonizado com o “liberalismo avançado”. Talvez um dia escreva sobre isso, mas desta vez há que continuar.

A certa altura os “cavaquistas” cederam à ânsia da perpetuação no poder, em que antes caíra o PS

Picasa

O programa e a estratégia triunfaram em 1985, começando logo com o apoio bipolarizador ao Centro à candidatura de Freitas do Amaral, com que Cavaco Silva enfrentou os “laranjinhas” na Figueira. E só não houve coligação com o CDS nas eleições de 1985 (esforço em que com António Gomes de Pinho me envolvi) porque Lucas Pires teve mais olhos do que barriga: em vez de usar a relação 27,24%/12,56% (com algumas cedências do PSD sobre esse ponto de partida) das últimas eleições, queria usar uma sondagem que antes da tomada do poder “à la hussard” por Cavaco dava o CDS à frente do PSD e ceder uma mais pequena diferença a favor do PSD.

Pode parecer anedótico, mas é politicamente relevante: o jornal Semanário (onde com Marcelo pontificavam muitos dessa zona) fez tudo para que na segunda volta estivessem Freitas e Soares. E, sendo fiel ao programa estratégico da bipolarização ao Centro, lembro-me nessa altura de eu ter escrito que preferia que Freitas perdesse para Soares do que ganhasse contra Zenha ou Pintasilgo. Era essa a lógica levada provavelmente a um nível que a curto prazo muitos não entenderam, mas que foi essencial para a normalização democrática que se seguiu.

O problema foi que a certa altura os “cavaquistas” cederam à ânsia da perpetuação no poder, em que antes caíra o PS. Foi quando o PSD, em vez de se aliar ao CDS, mantendo coesão político-ideológica, se aplicou a querer destruir o CDS (lembram-se do “partido do táxi”?) e até o PS, para reinar mais tempo, a privilegiar o diálogo com as centrais sindicais (sabe Deus, e alguns mais, como…), a dar vento ao PCP com a mesma intenção.

A tragédia do PSD foi essa mudança no “cavaquismo”. Não é possível ter mais de 50% dos votos sem se descaraterizar e para isso – como tantas vezes referi – o PSD mudou de natureza deixando de ter uma base de apoio e perder e ganhar eleições com ela, para ser um “partido de consumidores”, volátil como e com eles, tentando ser hegemónico onde há mais pessoas, nos reformados e no funcionalismo público, e fazendo OPAs a nível local a quadros dos outros partidos. Deste modo ganham-se eleições, mas perde-se a alma.

Pode por tudo isso afirmar-se que, se alguma ideologia houve no consulado “cavaquista”, para além dos tecnocráticos “na base finanças sãs” e “crescimento económico”, ela veio de algumas ideias do programa da Nova Esperança. Curioso seria ver o que não foi aproveitado e o que, sendo-o formalmente, depois foi sofismado, aguado, adulterado ou apenas esquecido. Mas fica para outra ocasião.

E agora? Que fazer?

Chegou a altura de dar um salto de 30 anos e tentar comparar. A solução mais fácil, mas ainda assim correta, seria não dizer mais nada porque tudo se percebe facilmente.

Mas talvez valha a pena recordar e comparar alguma coisa com algum detalhe.

Em primeiro lugar, não apareceu agora no PSD um líder empático, carismático e com instinto político. Não quer dizer que não apareça, mas já passaram quatro anos que Sá Carneiro não teria deixado prolongar-se numa espécie de “austera, apagada e vil tristeza”. Com exceção de Miguel Morgado, de imediato insultado (agora tem de ser “neoliberal” a palavra a usar), mas que não se atirou para a piscina e seja o que Deus quiser, não vi nenhuma ideia de rutura com o status quo.

Em segundo lugar, o deserto ideológico e programático do PSD (que só piorou e muito em 30 anos) não foi enfrentado com um corpo político que sacuda o impasse (curiosamente, a palavra-ação de Sá Carneiro nesses tempos). Posso andar distraído, mas não vi nada que me pudesse ao menos levar a admitir que o PSD tem uma razão para existir em termos de projeto político-ideológico, que fale para uma base de apoio e a possa motivar e empolgar. Como é óbvio, copiar quarenta anos depois não serviria de nada. Portugal, o Mundo, os valores, a estrutura dos grupos sociais, os meios de ação, as tecnologias, as oportunidades e os desafios, tudo mudou. Mas o modelo deveria ser o mesmo e não o vejo em lado nenhum.

Não vejo nenhum programa político-ideológico e estratégico para contrapor ao que António Costa – arriscando tudo, voando quando o davam por derrotado – deu aos portugueses para nele votarem.

Em terceiro lugar, não vejo uma surpresa que cause um sobressalto nas águas estagnadas, um projeto de poder mobilizador de um grupo humano que esteja disposto a correr riscos, não vejo uma estratégia de alianças e uma definição clara do “inimigo principal”. E, sem isso, todas as (melhores e piores) intenções soçobram. Recordo que o meu querido amigo Francisco Lucas Pires me convidou um dia para almoçar e me perguntou se eu o apoiaria numa candidatura presidencial para perder com honra contra Mário Soares em 1991 (acabou por ser Basílio Horta a ir a jogo). Respondi-lhe que, sendo seu amigo, claro que o apoiaria, nem que fosse o único a fazê-lo. Mas fui-lhe dizendo que em política a luta começa por ser um ato solitário e só depois pode tornar-se (ou não, eu sei) solidário. Se ele esperava que fosse solidário e só depois solitário, era melhor tirar o cavalinho da chuva; e foi o que fez, aderindo ao PSD a seguir e sem mais histórias, em vez de o fazer com um resultado de 20% a 25% (Basílio Horta teve 14%). Não vejo hoje ninguém que possa dizer a frase que Sá Carneiro disse no dia seguinte à saída dos Inadiáveis.

E em quarto lugar, não vejo nenhum programa político-ideológico e estratégico para contrapor ao que António Costa – arriscando tudo, voando quando o davam por derrotado – deu aos portugueses para nele votarem. Ao recusar o que os bens pensantes, os moderados, as elites lhe diziam e que era a aliança para um novo bloco central, foi António Costa quem – ironicamente – aprendeu mais com Sá Carneiro e, de certo modo (horribile dictu, eu sei que será a exclamação à Direita e se calhar à Esquerda…), revelou-se seu discípulo.

Com tudo isto, a clássica pergunta de Lenine não tem resposta possível.

Não é possível que a resposta seja a confusão de palavras sem sentido de Rui Rio e a sintomática passagem de dizer que o PSD não é um partido de Direita e… é um partido de Direita; ou que se deve aliar ao PS… e ser a alternativa a ele. Era o que diziam os Inadiáveis e não levou a lado nenhum.

Não é possível que seja (ou baste…) estar ao lado dos portugueses e “pôr as pessoas em primeiro lugar”, como agora Assunção Cristas defende. Porque isso faz sentido, mas não basta para ganhar eleições, é o primeiro passo para a diluição de um programa… e sobretudo só ganha quem consegue que o ou a sigamos, mesmo que seja para perder.

Não é possível que seja uma coligação pré-eleitoral para salvar os móveis. Para isso seria necessário saber para quê além dos móveis. Colocar quatro anões às cavalitas uns dos outros não chega para fazer um gigante.

Por tudo isso, se fosse hoje que me convidassem para um jantar como o que ocorreu há 40 anos, não seria capaz de dizer que estavam a dar o PSD por morto cedo de mais. Hoje, sinceramente, não vejo nenhuma função sistémica para o PSD nem acredito na sua regeneração. Talvez o Presidente Rebelo de Sousa devesse ter dado um paulada ao comentador Marcelo há dias para o fazer calar. Mas Marcelo tem razão. E para ele isso é, para além de uma preocupação legitima quanto à sua recandidatura, uma dolorosa preocupação.

Agora, creio que a única solução – a não ser possível encontrar Ariadne e pedir para que ela faça para a Direita o que fez por Teseu — é que a Direita aproveite as férias para ler a deslumbrante saga Fundação, de Isaac Asimov.

Para a motivar à leitura, talvez valha a pena lembrar algo que vezes de mais é esquecido: no dia seguinte ao acordo do Bloco Central, Marcelo tinha 35 anos e com exceção de Conceição Monteiro todos os outros eram mais novos. Alguns já tinham uma carreira política, outros ambicionavam ter. Optar por ser uma vocal e dura oposição interna ao PSD no poder, não transigir, não aceitar nada desse lado, foi para eles – que não para mim, que sempre pensei ficar na vida privada – um risco enorme. Veja-se Marcelo. Se tivesse negociado com Mota Pinto poderia ter sido quase tudo. Não o tendo feito, e não tendo a seguir negociado nada com Cavaco Silva, perdeu os anos que seriam mais ativos para exercer a sua vocação. E se Guterres se tivesse candidatado, seguramente que ficaria fechado numa nota de rodapé da História do seu tempo, como um genial comentador e um divertido diabrete. Mas foi nesse caldeamento de tomar riscos em nome de convicções que se forjou. E acabou por lhe valer muito a pena.

Claro que, como dizem os jurisconsultos no final dos seus pareceres (mas eles não são sinceros…), admite-se melhor opinião.

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