(No final deste texto, incluímos a primeira parte do capítulo que Jean Tirole dedica ao tema da Inovação, no livro «Economia do Bem Comum»)

Quando Jean Tirole tirou o doutoramento em Economia no MIT, o Massachusetts Institute of Technology, no bairro onde vivia só havia barracas e armazéns velhos — estávamos em finais dos anos 70, nos EUA. “Era assustador, era preciso ter coragem para caminhar por lá à noite”, diz o académico francês à entrevista do Observador. Hoje, volvidas várias décadas (que para Jean Tirole foram de profícua pesquisa académica que culminou com o Prémio Nobel em 2014), quando o francês regressa ao mesmo bairro fica “fascinado” com a quantidade de edifícios modernos que albergam empresas inovadoras, nas áreas da tecnologia, centros de pesquisa na área farmacêutica, entre outras. Os EUA, com todos os seus problemas, estão a saber incentivar a inovação — e a Ásia também — falta perceber porque é que “a Europa está a marcar passo”. Jean Tirole dá algumas pistas.

“Preocupa-me que se olharmos para as maiores empresas do mundo elas são quase todas norte-americanas ou chinesas: a Google, a Apple, a Amazon… a Tencent, a Alibaba… E se olharmos para as startups mais valiosas e promissoras, passa-se o mesmo”, afirma Jean Tirole, que visitou Lisboa com o apoio do Instituto Francês para promover o seu livro mais recente — “Economia do Bem Comum”, editado em Portugal pela Guerra e Paz.

“Na Europa há muito poucas startups de sucesso, o que não significa que não exista talento. Pelo contrário, há muito talento na Europa, seja na parte comercial ou na engenharia”, acrescenta.

“Nós temos o talento, esse não é o problema (ou, pelo menos, esse ainda não é o problema). Mas se temos uma startup bem sucedida em França ela vai acabar por mudar-se para Silicon Valley [nos EUA]. Só fica em França se não tiver tanto sucesso”, lamenta o investigador da Universidade de Toulouse, cuja pesquisa no campo da regulação económica e concorrência lhe valeu a distinção pela Real Academia Sueca das Ciências.

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Ora, se não falta “talento” na Europa, onde está o problema? “Parte dos problemas são específicos de cada país”, começa por dizer Jean Tirole, mas uma primeira explicação pode ser ilustrada com a mudança visível no bairro onde Tirole vivia quando estava a fazer o doutoramento, perto de Boston. “Nos EUA, os professores incentivam os alunos a abrirem negócios nas vizinhanças da universidade, oferecem-se para participar nos conselhos de administração, convidam pessoas de outras áreas. E não temos isto na Europa, regra geral”, lamenta o economista, em conversa com o Observador.

A crise já passou? “Não há assim tanta coisa que tenha mudado na Europa”, avisa o Nobel da Economia Jean Tirole

“As universidades nos EUA têm um papel crucial na promoção da inovação, de várias formas”, considera Jean Tirole. Em contraste, na Europa, o Nobel da Economia — que conhece bem, pelo menos, a realidade francesa — diz que “as universidades na Europa ainda não têm tradição de incentivar o empreendedorismo“, e isso depende sobretudo das “lideranças estratégicas”, incluindo por parte dos responsáveis políticos.

“O Presidente [francês] Emmanuel Macron tem isto muito presente, porque sabe que é preciso atrair a inovação para aqui — porque é da inovação que vem o crescimento e os postos de trabalho do futuro”, defende o economista, sublinhando que “não só temos de manter os nossos inovadores mas temos, também, de atrair os estrangeiros para cá”.

Como? Começando por “facilitar a vida aos empreendedores”. Como assim? Um exemplo: “em França há muitos subsídios para startups, há muitos subsídios para apoiar a inovação — mas para obter esses subsídios é preciso fazer candidaturas a 60 entidades diferentes”, diz o Nobel da Economia. “Desperdiça-se tempo e energia à procura de subsídios e não a trabalhar, a inovar“, atira Jean Tirole.

O francês sentou-se à conversa com o Observador a 15 de maio. Dali a algumas horas ia apresentar o seu livro na Fundação Calouste Gulbenkian. E a conversa terminou com uma confissão: “eu vou à China na próxima semana, e estive em Palo Alto (Califórnia) na semana passada. Quando vamos a esses sítios e sinto um misto de entusiasmo e medo…” Porquê medo? “Porque, quando vou a esses sítios, pergunto-me ‘onde é que está a Europa? O que é que estamos a fazer?'”

O Observador publica uma parte do capítulo que Jean Tirole dedica à inovação no seu livro Economia do Bem Comum, onde o Prémio Nobel da Economia de 2014 escreve que “além da crise que a zona euro vive há alguns anos, uma fonte de preocupação para a Europa ocidental é a taxa de inovação, atualmente mais baixa do que a dos Estados Unidos e, talvez amanhã, que a dos países asiáticos, que investem intensamente na economia do conhecimento” e defende que “a inovação exige uma cultura e instituições propícias”.

A inovação e a propriedade intelectual

O imperativo da inovação

A teoria clássica do crescimento parte do postulado de que ele resulta da acumulação de capital (através da acumulação de meios de produção, do abastecimento energético…) e de força de trabalho (através da demografia, das melhorias na saúde e na educação). Desde 1956, entretanto, um célebre artigo de Robert Solow mostrou que a acumulação destes dois factores de produção apenas explicava uma parte, deixando um lugar importante ao progresso tecnológico na explicação do crescimento das nações.

Actualmente, ainda mais do que em 1956, a inovação tecnológica encontra-se no coração do mecanismo de crescimento. A economia do século XXI é, diz-se, a do conhecimento; certamente, a de uma mutação tecnológica de grande amplitude.

Na verdade, a visão antiga é sempre pertinente para as economias ditas «de convergência». O Japão viveu deste modo durante três décadas assinaláveis após a Segunda Guerra Mundial. A China faz o mesmo desde 1980. A França teve os seus 30 anos gloriosos. Mas chega um momento em que a imitação das práticas e técnicas estrangeiras e a acumulação de capital são confrontadas com rendimentos decrescentes e deixam de ser suficientes; o país deve, então, assumir uma nova orientação e fazer progredir a «fronteira tecnológica».

A inovação necessária às economias na fronteira tecnológica necessita de uma cultura e de instituições diferentes das da economia de convergência. As universidades devem não só oferecer formações de qualidade, mas também realizar investigações de ponta e incentivar os seus alunos ao empreendedorismo. O financiamento da economia já não pode limitar-se às grandes empresas e às PME tradicionais, mas deve também incluir uma vertente dedicada à criação de empresas inovadoras. E para que entre em acção a «destruição criadora» cara a Schumpeter (as novas inovações tornam as inovações anteriores obsoletas), as autoridades da concorrência independentes devem acabar com as barreiras à entrada.

A aposta é considerável. O valor acrescentado localiza-se cada vez mais na inovação. A riqueza das nações depende, portanto, cada vez mais da sua capacidade de captar a criação de valor a este nível na cadeia de valor.

Esta constatação leva-me a abordar, em primeiro lugar, o assunto muito controverso da propriedade intelectual: o que se entende por isso? Quais são os benefícios e os perigos da propriedade intelectual? Quais são os principais desafios, na matéria, com que o poder público é confrontado actualmente? Analisarei, em seguida, um desafio particular, mas essencial, o da acumulação das patentes, o que cria uma multiplicidade de guardiões (gatekeepers) para qualquer tecnologia. Veremos como a análise económica sugere soluções concretas para este problema, permitindo uma difusão maior das tecnologias sem, com isso, diminuir os incentivos para inovar.

Para além da crise que a zona euro vive há alguns anos, uma fonte de preocupação para a Europa ocidental é a taxa de inovação, actualmente mais baixa do que a dos Estados Unidos e, talvez amanhã, que a dos países asiáticos, que investem intensamente na economia do conhecimento. A inovação exige uma cultura e instituições propícias. Analisarei, portanto, as características do ambiente em torno da inovação.

Por fim, alongar-me-ei num modelo cooperativo, alternativo à propriedade intelectual, ou, melhor dizendo, que assenta num conceito diferente de propriedade intelectual: o software livre. Este modelo é um modo de organização original; tentaremos compreender as suas especificidades e estudaremos as estratégias dos diferentes actores económicos em relação a ele.

A propriedade intelectual – as instituições

O leitor conclui os seus estudos de biotecnologia e orienta-se para a investigação aplicada com o objectivo de descobrir uma nova vacina, de utilizar os microorganismos para a produção de biocombustíveis ou de desenvolver novas colheitas mais resistentes e com menor necessidade de água. Necessitará de financiamentos, os quais se concretizarão apenas se o seu projecto oferecer uma perspectiva de benefício financeiro que permita reembolsar os investidores.

O que nos leva ao cerne do tema. O conhecimento que irá gerar é o que se chama um «bem público». Uma vez criado, pode ser utilizado por todos, de modo não exclusivo e a custo quase zero. Uma vez conhecida a fórmula química de uma molécula e a sua utilização, qualquer empresa pode utilizar esta fórmula e comercializar o produto correspondente (vacina, biocombustível, sementes), deixando margens de lucro mínimas a quem arcou com as despesas de investigação e de desenvolvimento.

Voltamos a encontrar aqui o problema do passageiro clandestino (free riding), já abordado no capítulo dedicado ao meio ambiente: se toda a descoberta caísse de imediato no domínio público e
fosse, portanto, explorável gratuitamente por todos, cada um esperaria que os outros tivessem as despesas de R&D, mergulhando a actividade criadora numa atitude de expectativa generalizada. A propriedade intelectual é um mal necessário que visa estimular o R&D ou a criação artística, proporcionando um rendimento ao seu detentor. É por esta razão que surgiram, muito cedo, as primeiras patentes, que datam da antiguidade grega; depois, desenvolveram-se no século xv, em Florença e em Veneza.

A propriedade intelectual assume múltiplas formas:

  • A patente, que garante ao seu detentor um direito exclusivo, um monopólio da utilização do conhecimento assim gerado. A atribuição de uma patente inclui um período determinado (normalmente, 20 anos a partir da data do depósito), após o qual a patente cai no domínio público. De acordo com a lei, pode incidir apenas sobre uma descoberta não evidente e não abrangida pela arte anterior, e deve ser útil. A patente é um processo público e permite ao seu detentor comercializar licenças, se este não desejar explorar a inovação de modo exclusivo.
  • O direito de autor (copyright), que protege um modo de expressão (um livro, um filme…), também durante um dado período (nos Estados Unidos, a duração de vida do autor mais 70 anos após a sua morte, por exemplo).
  • O segredo de fabrico, que, como o seu nome indica, protege unicamente o inventor contra o roubo da sua propriedade intelectual eque diz respeito, no geral, apenas a uma inovação de processo (um produto novo é, no geral, uma informação pública e não consegue ser mantido o segredo). Constatamos, quanto a isto, que a abolição de patentes levaria os inventores a optarem sistematicamente pelo segredo de fabrico, mesmo tendo de se integrar verticalmente com unidades de produção se não forem elas próprios fabricantes. Mas, contrariamente à patente, o segredo de fabrico torna muito difícil a atribuição de licenças; pois o adquirente de tal licença quererá legitimamente conhecer a natureza do conhecimento pelo qual deverá pagar; e uma vez este conhecimento revelado, o adquirente pode utilizá-lo sem pagar… De facto, na prática, as licenças dizem respeito a invenções patenteadas.
  • A marca registada que oferece à empresa um signo, permitindo-lhe distinguir o seu produto de produtos semelhantes dos seus concorrentes.

O que há em comum entre estas diferentes instituições? Todas, protegendo a propriedade intelectual, atribuem ao inventor um poder de mercado, ou seja, a possibilidade de este se aproveitar financeiramente da sua invenção, quer através da venda de licenças das suas patentes, quer obtendo margens de lucro acima do custo de produção do produto final, se for ele a produzir e a comercializar esse bem final. Deste modo, um inventor irá exigir royalties sobre as licenças, enquanto os utilizadores da invenção não pagariam nada se esta caísse no domínio público. Vê-se imediatamente o custo da propriedade intelectual. Para criar um estímulo à inovação, permitindo ao inventor retirar proveito da sua invenção, o poder público encarece o custo de utilização desta invenção e limita, portanto, a sua difusão: há, pura e simplesmente, menos utilizadores. É o compromisso fundamental subjacente às nossas instituições.

Esta é a razão pela qual alternativas à propriedade intelectual foram procuradas ao longo dos séculos. Nos séculos XVII e XVIII, a Inglaterra e a França criaram prémios com recompensas atribuídas pela coroa; uma vez obtida a recompensa, o inventor não dispunha da propriedade intelectual e o conhecimento assim adquirido caía no domínio público. Deste modo, no século XVII, a França concebeu um prémio para uma turbina de água. Em 1714, e no seguimento de prémios semelhantes (e nunca atribuídos), em Espanha e na Holanda, no final do século XVI, o Parlamento britânico prometeu uma recompensa significativa a quem descobrisse um método para medir com precisão suficiente a longitude no mar. A maior parte do prémio, avaliado em função da precisão
obtida na medida da longitude, foi, por fim, após várias controvérsias, atribuído a John Harrison. Este tinha iniciado o trabalho em 1714; só recebeu o pagamento completo 59 anos depois!

Atribuir prémios é um procedimento complexo, pois tem de se especificar a montante o que se deseja exactamente. Ora, muito frequentemente faz parte da natureza do trabalho criativo não se saber o que se irá encontrar. Se se pudesse descrever antecipadamente um artigo científico ou uma sinfonia inovadores, o trabalho criativo ficaria, por assim dizer, reduzido a nada. Mas, em alguns casos, pode definir-se um resultado desejável, sem por isso se saber como se chegará a esse resultado (desde logo, põe-se a questão da amplitude da recompensa: o prémio sub-recompensará o esforço da investigação, sendo que se corre o risco de não atrair os talentos? Ou sobrerrecompensará o esforço através de um compromisso excessivo de fundos públicos?).

Recentemente, o mecanismo de recompensa através de prémios conheceu uma retoma de vigor no domínio das vacinas e dos medicamentos específicos, nos países em desenvolvimento, continuando estes últimos sem atrair a investigação privada de que necessitariam devido à sua pobreza. Especifica-se, deste modo, um objectivo para a vacina investigada, submetendo-o simplesmente a obrigações ligadas à percentagem de efeitos secundários.

A protecção intelectual originou vários debates sociais nestes últimos anos. Na impossibilidade de ser exaustivo, contentar-me-ei em abordar alguns pontos marcantes, concentrando-me no caso das patentes, mesmo que algumas controvérsias incidam, também, sobre outros modos de propriedade intelectual. Por exemplo, a extensão retroactiva da protecção do direito de autor é particularmente surpreendente. De facto, se, como pretende a lógica, a propriedade intelectual não é mais do que um mal necessário que visa proporcionar incentivos à R&D ou à criação artística, é necessário que se mantenha fiel a esse objectivo.

Porém, tratando-se de investimentos já realizados, um reforço da propriedade intelectual não tem qualquer efeito estimulante: é demasiado tarde! O reforço reduz a difusão sem contribuir para a criação. E, contudo, o legislador americano prolongou, em duas ocasiões, o período da protecção dos direitos de autor, primeiro em 1976, estendendo-o a 50 anos após a morte do autor, depois, em 1988, em que este período foi estendido a 70 anos.

Este último Copyright Term Extension Act é, por vezes, chamado o Mickey Mouse Protection Act, como referência à empresa Disney que se arriscava a perder os direitos de autor dos filmes e produtos derivados muito rentáveis, e exerceu pressões desenfreadas para que os direitos de autor fossem prolongados.

O número de patentes aumentou consideravelmente ao longo dos últimos anos devido a um determinado número de factores: maus incentivos dos serviços de patentes, em particular nos Estados Unidos, onde, antes da reforma America Invent Act de 2011, o serviço de patentes (Patent and Trademark Office) era indirectamente incentivado para a atribuição das patentes, em vez de as recusar; o alargamento do âmbito das patentes a novos domínios: os programas, a biotecnologia e as ciências da natureza, os métodos comerciais.

Esta proliferação das patentes não seria muito grave se as patentes supérfluas não tivessem consequências, tal como a patente concedida àquele relógio para cães que anda sete vezes mais depressa do que um relógio normal com o intuito de reflectir a esperança média de vida da espécie canina… A Internet está cheia de páginas que enumeram patentes ridículas. No entanto, as consequências económicas da proliferação das patentes podem ser consideráveis. Algumas patentes têm o potencial de captar o valor económico sem, por isso, constituir um avanço significativo para a sociedade. Por exemplo, a patente One Click da Amazon, que tornava sua a ideia de que um comerciante da Internet pudesse guardar as informações (moradas para expedição e facturação, número do cartão de crédito…) do cliente com o intuito de não ter de lhes voltar a pedir esses dados aquando da compra seguinte, era uma verdadeira réplica das práticas já bem conhecidas de inúmeras lojas físicas, ou seja, de empresas de venda tradicional que têm a porta aberta para a rua.

E mesmo que esta prática não existisse, era suficientemente clara para não merecer uma patente. Se bem que, dos três critérios de patenteabilidade, a patente satisfaz apenas um, a utilidade. A patente foi, felizmente, rapidamente invalidada por um tribunal, mas imagina-se o rendimento que a Amazon poderia ter beneficiado em caso contrário, tornando-se, desse modo, o guardião de todo o comércio electrónico!

Economia do Bem Comum, editado em Portugal pela Guerra e Paz, está à venda nas principais livrarias. FOTO: Neusa Ayres/Guerra e Paz