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A história dourada de Adhemar Ferreira da Silva

A maior glória olímpica do Brasil foi também músico, actor e escultor. Bruno Vieira Amaral conta a história do homem que pôs duas estrelas douradas no equipamento do São Paulo.

A história mais dourada do atletismo brasileiro começa nos versos iniciais de “Sampa”, a declaração de amor de Caetano Veloso à cidade de São Paulo: “Alguma coisa acontece no meu coração / Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João.” Foi numa esquina da Ipiranga e da Avenida São João, em 1947, que alguma coisa aconteceu no coração de Adhemar Ferreira da Silva. Em conversa com um amigo, o jovem Adhemar, então com vinte anos, perguntou-lhe o que é que fazia nas horas livres. O outro respondeu que era atleta, praticava atletismo. Adhemar gostou tanto da palavra atleta que também quis experimentar a modalidade.

Adhemar já era um atleta nas horas vagas, que eram poucas. Filho único de um ferroviário e de uma lavadeira, começara a trabalhar cedo para ajudar a família. À noite tinha aulas de escultura na Escola Federal de São Paulo e ainda arranjava tempo para jogar futebol num pequeno clube de bairro. Naquele dia, o tal da conversa na esquina de uma canção que Caetano haveria de compor, a sua vida começou a mudar. No primeiro treino de atletismo no São Paulo Futebol Clube, viu alguém praticar triplo salto, sem saber que disciplina era aquela. Pediu para experimentar. Uma vez mais, tinha gostado do som de “salto triplo”. Na primeira tentativa, Adhemar voou uns impensáveis 12,84m. O treinador alemão Dietrich Gerner, que o iria acompanhar até ao final da carreira, percebeu que tinha tropeçado num pote de ouro. Só não podia ter a certeza que fosse olímpico. O fenómeno continuou a conciliar trabalho e aulas nocturnas. Treinos, só na hora do almoço. Dois meses depois do primeiro treino, Adhemar tornou-se campeão paulista com um salto de 14,77m.

Menos de um ano após a estreia, já era recordista brasileiro do triplo salto. Reservou passagem para os Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, os primeiros depois da II Guerra Mundial. Valeu pela experiência. O atleta brasileiro ficou em 14º lugar. Em 1949 continuou a voar, batendo por nove centímetros o recorde sul-americano que estava na posse do argentino Luis Antonio Brunetto há 25 anos, ainda Adhemar não tinha nascido. A 3 de Dezembro de 1950, em São Paulo, com um salto de 16,00m igualou o recorde mundial do japonês Naoto Tajima. Em Setembro de 1951, desta vez no Rio de Janeiro, ficou com o recorde só para si. Bastou-lhe saltar mais um centímetro. Nessa altura, também já consagrado como campeão pan-americano, Adhemar só pensava nos Jogos Olímpicos, agendados para o ano seguinte, em Helsínquia.

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Música com uma locomotiva humana

Na chegada à capital finlandesa, levava na bagagem o estatuto de recordista mundial, o sonho do ouro olímpico e um violão, outro dos seus múltiplos talentos. Logo no aeroporto surpreendeu quem o esperava falando na língua local e cantando ao violão uma canção popular finlandesa. Foi em tom musical que nasceu a sua grande amizade com o meio-fundista checoslovaco, Emil Zatopek, a “locomotiva humana”. Além de brilhar nas pistas – em Helsínquia conquistou três medalhas de ouro, nos 5000, 10000 e maratona, um feito único que dificilmente será igualado – Zatopek era um exímio tocador de balalaica e ensinou algumas canções tradicionais checas ao atleta brasileiro. A descontração de Adhemar na aldeia olímpica contrastava com a sua absoluta concentração na pista. No seu dia triunfal, a 23 de Julho de 1952, no estádio olímpico da capital finlandesa, bateu quatro vezes o recorde olímpico e duas vezes o seu próprio recorde mundial, que fixou nos 16,22m. Era a primeira medalha de ouro do atletismo brasileiro nos Jogos Olímpicos e a segunda da história do país. A primeira tinha sido conquistada em 1920, em Antuérpia, por Guilherme Paraense, na prova de pistola rápida.

De regresso ao Brasil, um jornal, a Gazeta Esportiva, promoveu uma recolha de fundos para oferecer uma casa ao campeão. Numa época em que os atletas eram profissionais do amadorismo – ou seja, rigorosamente amadores – o comité olímpico brasileiro alertou Adhemar para o risco de lhe ser retirada a medalha de caso aceitasse o “prémio”. E ele não aceitou. Anos mais tarde, diria que jamais viveu do desporto, que foi sempre 100% amador.

Nos anos seguintes, Adhemar acumulou vitórias nas mais diversas competições, incluindo novo triunfo nos Jogos Pan-Americanos, em 1955, na Cidade do México, onde recuperou o recorde mundial que, entretanto, fora batido pelo soviético Leonid Scherbakhov. Foi o melhor salto da sua carreira, um voo de 16,56m na altitude da cidade mexicana e também a sua última prova internacional enquanto atleta do São Paulo Futebol Clube. Nesse ano, em que Adhemar foi para o Rio de Janeiro representar o Vasco da Gama, o clube paulista acrescentou duas estrelas ao seu escudo, simbolizando o ouro coroado pelos recordes do mundo do seu atleta em Helsínquia e no México. Em 1997, as estrelas douradas passaram a fazer parte do equipamento oficial do São Paulo.

O “canguru brasileiro” e mais ouro olímpico

Mas a história de Adhemar ainda não tinha acabado. Olimpicamente, estava a meio. Em 1956, os Jogos realizaram-se em Melbourne, na Austrália. Adhemar chegava com a responsabilidade de defender o seu título e fê-lo de forma brilhante com um salto de 16,35m, novo recorde olímpico. Ganhou a alcunha algo previsível de “canguru brasileiro” e, mais importante, uma segunda medalha de ouro: foi o primeiro brasileiro a sagrar-se bicampeão olímpico. A sua última participação olímpica ocorreu quatro anos depois, em Roma, mas aí, debilitado por uma tuberculose (fumava um maço de cigarros por dia desde os 16 anos) nem sequer passou das eliminatórias. Semanas antes, o astro brasileiro tinha participado na 1ª edição dos Jogos Luso-Brasileiros disputados em Lisboa.

Quando o realizador francês Marcel Camus partiu para a adaptação cinematográfica da peça mudou o título (passou a “Orfeu Negro”), os actores principais (Breno Mello, jogador de futebol, e Marpessa Dawn, musa de Camus, foram os escolhidos) e as canções originais, mas manteve Adhemar (nos créditos do filme aparece como Adhemar Feirrera da Silva) no papel que este já desempenhara no teatro.

Provavelmente já afectado pelos problemas pulmonares, o seu resultado não foi estrondoso. Segundo o “Diário de Lisboa”, Adhemar nem sequer se esforçara. Ainda assim, o seu salto de 15,86m, foi suficiente ganhar a competição realizada no Estádio Nacional. A grande figura da competição acabou por ser outro brasileiro, José Telles da Conceição, que conquistara a medalha de bronze no salto em altura em Helsínquia, a primeira medalha olímpica do atletismo brasileiro. Telles da Conceição venceu os 100 metros, o salto em comprimento e os 110 metros barreiras, este com recorde nacional brasileiro. Quanto a Adhemar, o jornal brasileiro “Correio da Manhã” relatava assim a sua presença em Lisboa: “O salto de Ademar Ferreira da Silva não correspondeu, mas isto não influiu na sua popularidade, pois o bicampeão olímpico esteve sempre (como na foto acima) assediado pelo público.”

Poucos meses depois, o grande atleta encerrou a sua carreira numa prova disputada no Rio de Janeiro. Nessa altura, também já inscrevera o seu nome na história do cinema, não com o protagonismo das pistas, mas literalmente como actor secundário.

Ouro negro no cinema

A história tinha começado em 1956 e é mais famosa por assinalar o início da parceria musical entre Vinicius de Moraes e António Carlos Jobim. Ruy Castro narra os detalhes no seu livro Chega de Saudade. De regresso ao Rio de Janeiro, depois de um período na embaixada do Brasil em Paris, o “poetinha” Vinicius procurava alguém para compor a música de uma peça que escrevera na Europa, uma versão negra e carioca do mito de Orfeu. Esse alguém acabaria por ser Tom Jobim. Clássico como “Se Fossem Todos Iguais a Você” e “Lamento no Morro” faziam parte da banda sonora da peça “Orfeu da Conceição” que estreou a 25 de Setembro de 1956, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (com cenários do já então célebre Oscar Niemeyer), dois meses antes do início dos Jogos Olímpicos de Melbourne. O elenco era todo composto por actores negros, como Haroldo Costa, no papel de Orfeu, e Léa Garcia, a sua Eurídice. O papel da Morte foi desempenhado por um jovem de 29 anos, Adhemar Ferreira da Silva.

Quando o realizador francês Marcel Camus partiu para a adaptação cinematográfica da peça mudou o título (passou a “Orfeu Negro”), os actores principais (Breno Mello, jogador de futebol, e Marpessa Dawn, musa de Camus, foram os escolhidos) e as canções originais, mas manteve Adhemar (nos créditos do filme aparece como Adhemar Feirrera da Silva) no papel que este já desempenhara no teatro.

No cinema, o papel da Morte já tinha sido desempenhado por Fredric March (“A Morte em Férias”, 1934), por Orson Welles (na curta-metragem de 1934, “The Hearts of Age”, a sua estreia na realização) e, inesquecivelmente, pelo sueco Bengt Ekerot, em “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman. Em 1998, foi a vez de Brad Pitt dar corpo à morte ou, para sermos mais exactos, a Joe Black, num filme que não ficou para a história, ao contrário de “Orfeu Negro” que, em 1959, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, batendo a concorrência fortíssima de “Hiroshima, Meu Amor”, de Alain Resnais, e de “Os 400 Golpes”, de François Truffaut. No ano seguinte, o filme ainda conquistou o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Mais de cinquenta anos depois, pode dizer-se que “Orfeu Negro” não só envelheceu mal como foi uma espécie de maldição dourada para os principais intervenientes. Foi o único filme relevante do realizador Marcel Camus e as carreiras dos protagonistas no cinema não conheceram outros capítulos dignos de nota. Hoje, é mais uma curiosidade histórica e etnográfica do que um clássico do cinema, embora não se possa apagar o seu palmarés dourado. Curiosamente, as canções da banda sonora encomendada pelo produtor Sacha Gordine tiveram, no longo prazo, um destino mais feliz do que o filme. “Samba de Orfeu” e “Manhã de Carnaval”, da autoria de Luiz Bonfá (que tocara violão na encenação da peça em 1956), tornaram-se clássicos da Bossa Nova. E Adhemar Ferreira da Silva reentra na história.

Manhã de Carnaval no Midas

Em 1987, durante os mundiais de atletismos de Roma (onde a nossa Rosa Mota se sagrou campeã mundial), a Federação Internacional de Atletismo (IAAF), que comemorava o 75º aniversário, promoveu uma gala para homenagear as maiores figuras da história da modalidade. Entre elas estava o brasileiro Adhemar Ferreira da Silva. O jornalista brasileiro Benê Turco, que acompanhou esses mundiais, contou ao site oficial dos Jogos de 2016 como todas as noites, no Hotel Midas, na Via Aurelia, Adhemar pegava no violão, seu eterno companheiro, e cantava uma das suas canções preferidas, precisamente “Manhã de Carnaval”, de Luiz Bonfá e letra de António Maria, impressionando todos os que o ouviam.

Depois de abandonar a carreira desportiva, Adhemar não viveu do violão. Essa era apenas uma das suas paixões. Continuou a estudar (formou-se em Direito, Educação Física e Relações Públicas), foi adido cultural da embaixada brasileira em Lagos, na Nigéria, entre 1964 e 1967, trabalhou para o Estado brasileiro em organismos ligados à promoção do desporto e, além da referida distinção nos 75 anos da IAAF, integrou o lote de doze atletas que, em 2012, inauguraram o Hall of Fame da Federação, ao lado de, entre outros, Jesse Owens, Carl Lewis e do seu amigo Zatopek. Esse reconhecimento internacional não o impedia de considerar que, no Brasil, as suas medalhas de ouro valiam lata.

A morte, que encarnara em palco e no cinema, levou-o a 12 de Janeiro de 2001. Por coincidência, sublinhada por Benê Turco, nesse mesmo dia morreu Luiz Bonfá, o autor de “Manhã de Carnaval”, a canção que Adhemar cantava no hotel Midas, nome do rei mitológico condenado a transformar em ouro tudo o que tocava. Adhemar Ferreira da Silva, ainda hoje o maior atleta olímpico da história do Brasil, também transformava em ouro tudo o que tocava. No caso dele, era uma bênção.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015

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