Quando a Moreira da Costa fez 110 anos, em 2012, Miguel Carneiro receava que a livraria pudesse não durar muito mais tempo. As mudanças na baixa do Porto, no comércio e o desaparecimento que se começava a ver dos alfarrabistas não ajudavam a traçar um cenário positivo. Nessa altura, Miguel imprimiu uma folha com as cinco gerações da família que estiveram ao leme da livraria e a data redonda de “110 anos” e afixou-a numa das paredes junto à montra da livraria, localizada na Rua de Avis, bem junto ao edifício do Hotel Infante Sagres. Dez anos depois, a folha vai ser renovada: a livraria alfarrabista mais antiga do Porto celebra 120 anos de portas abertas e ainda 90 anos da sua primeira Feira do Livro do Porto.
Pelo meio, a Moreira da Costa assistiu e viveu diferentes momentos políticos e sociais em Portugal — desde a monarquia ao regime do Estado Novo –, passou por uma luta judicial para evitar o despejo da rua onde está há mais de 70 anos e sentiu na pele o impacto de uma pandemia que veio alterar muitos negócios. Susana Fernandes, que juntamente com Miguel Carneiro gere o negócio da Moreira da Costa, prometeu “lutar até não poder mais” para manter a livraria, que em 2017 foi considerada loja histórica e integrada no Porto de Tradição, o programa municipal que distingue e apoia lojas e marcas de interesse histórico, cultural e social na cidade.
– Sente só o cheirinho a livro antigo.
Sempre que os clientes habituais trazem alguém novo à livraria o conselho é o mesmo: não é só comprar um livro, é sentir todo o ambiente deste espaço centenário, com milhares de livros. A história do mais antigo alfarrabista do Porto começou em 1902, quando José Moreira da Costa, antigo caixeiro de Ernesto Chardron e Lungan & Genelioux e trisavô de Miguel Carneiro, decidiu tomar de trespasse uma livraria no número 48 da antiga Travessa da Fábrica. “A livraria inicialmente não se chamava Moreira da Costa, mas sim Centro Literário Marinho e Costa”, ressalva o atual proprietário.
Depois da morte de José Moreira da Costa, a livraria passou para as mãos da sua filha, Elisa Duarte da Costa Ferreira. Nesta época, a Moreira da Costa já surgia como um espaço de várias tertúlias e local de encontro de amantes de livros, sobretudo das obras de Camilo Castelo Branco. Foi aqui que terá começado parte da ligação particular desta livraria ao escritor. Além da venda, em 1962, da maior coleção Camiliana para a Biblioteca Municipal de Matosinhos, a ligação desta livraria a Camilo ficou ainda marcada por outro episódio.
“Um dos clientes que aqui vinha tinha uma edição original da ‘Infanta Capelista’, que tem apenas cinco exemplares — porque a edição não chegou a sair. Na altura, e segundo o que nos contam na família, as pessoas que cá paravam e gostavam de Camilo incentivaram a minha avó e a livraria a fazer uma edição fac-similada da obra, em 1952, destinada ao círculo de colecionadores”, explica Miguel Carneiro. No entanto, os descendentes de Camilo descobriram esta edição de 50 exemplares e intentaram uma ação judicial contra a proprietária da livraria.
A edição tornou-se ilegal e Elisa Duarte foi condenada a uma pena de prisão efetiva, que cumpriu com o pagamento de uma multa diária. “Foi uma das primeiras mulheres em Portugal a ter uma condenação de direitos de autor por uma situação destas”, explica ainda Susana Fernandes. Atualmente, a livraria tem guardados, para uso particular, dois exemplares desta edição e o processo está exposto na Antiga Cadeia da Relação do Porto.
Em 1965, a Moreira da Costa foi herdada por Maria Elisa Ferreira Dias Gonçalves, filha da anterior proprietária. Mais tarde, em 1987, os filhos fundaram uma sociedade. Em 1998 Miguel Carneiro, da quinta geração da família do fundador, fica encarregue dos destinos da livraria, onde permanece até agora.
A cave “secreta” com milhares de livros e a tarefa de reunir 120 anos de história
– Mesmo velho é um bom amigo.
Numa zona da montra da livraria, o mote de sempre está bem visível. Em 51 anos de vida, Miguel Carneiro nunca fez outra coisa que não estivesse relacionada com livros (sobretudo antigos) e com a Moreira da Costa — costuma até dizer que “o primeiro casamento foi com a livraria”. Com apenas seis meses ficava na livraria numa alcofa colocada em cima de um banco, aos seis anos já juntava os livros pelo símbolo do editor e aos 13 limpava e separava os livros que estavam na cave da livraria. “Aí sim o bichinho começou a crescer”. Para Miguel, os livros antigos e usados têm um significado especial.
Foi aos 18 anos que começou a trabalhar oficialmente na livraria, enquanto estudava à noite. “A minha vida foi sempre aqui, rodeado de livros e de pessoas. Continuo esta livraria e tenho esta paixão pelos livros, mas também pelo contacto com o público, porque as pessoas comunicam. Hoje as já não têm tanto tempo para vir às livrarias, mas antes falava-se de muitos assuntos, de todos os temas variados da sociedade. Não era só vender um livro, era todo o processo que estava envolvido e um atendimento próprio a cada cliente”, refere ao Observador, enquanto mostra a cave localizada no andar debaixo da livraria, com milhares de livros distribuídos por todo o lado.
Neste espaço, fechado à generalidade do público, vivem centenas de anos de história e muitas obras ainda por desvendar. Há livros, folhetos, revistas e jornais antigos pousados em algumas partes do chão, organizados em cima de uma mesa de madeira e guardados em prateleiras que tapam quase a totalidade das paredes. Para quem já fica surpreendido só com a entrada, ao fundo deste armazém surge um outro corredor com quatro saídas compostas por mais estantes com livros, divididos por várias temáticas — desde a religião à política e ao direito.
As visitas a esta cave são limitadas, mas quando acontecem Miguel Carneiro garante que a experiência é única. “A livraria acaba por ser um museu vivo. Houve um cliente que me disse que em cinco minutos percorreu 300 anos de história. E uma vez uma menina desatou a chorar compulsivamente, porque não imaginava que houvesse aquele espaço assim neste sítio”, recorda, sublinhando que quando leva algum cliente ou amigo a visitar este espaço tenta “estar calado pelo menos um ou dois minutos para as pessoas sentirem o espaço”.
Ao todo, a livraria tem cerca de 30 mil títulos, sendo que o mais antigo à venda é a obra “De Censu, et Emphyteusi Tractatus”, datada de 1681 e publicada em Évora. Já na lista dos mais caros está a Enciclopédia de Diderot D’alembert, com um custo de 5000 euros. Entre os mais requisitados estão livros de autores portugueses, sobretudo de Camilo Castelo Branco. Metade das obras ainda estão por catalogar, um processo que só acontece quando toda a coleção está completa. “Às vezes demoro seis meses, um ano para conseguir completar uma obra, mas lá consigo”, refere Miguel Carneiro. Muitas horas e dias são passados neste espaço com a tarefa de catalogar e há ainda vários livros por descobrir dentro desta cave.
Muitas vezes, refere o atual proprietário, o mais difícil é não se apegar a um determinado livro: “Estive 15 anos para vender um livro. Foi o primeiro livro que comprei com a autorização da minha avó. Era uma primeira edição d’Os Lusíadas. Apareceu-me um outro e meti em catálogo, vendi e depois houve um outro cliente que também me pediu. Eu disse que tinha um exemplar há já 15 anos e que foi o primeiro livro e ele só me disse: ‘Já usufruiu dele durante 15 anos, não me deixa usufruir nem que seja por mais 5 anos que eu viva?’ Acabei por vendê-lo. O que o livro representava para mim vai ficar comigo e a pessoa gostava mesmo de ter aquele livro”.
Com 120 anos, a tarefa de saber o que aconteceu ao certo em cada momento da livraria torna-se mais difícil. Miguel e Susana têm conseguido reunir todo o tipo de arquivos que vão desvendando mais um pouco da história da livraria e dos locais onde esta se instalou, mas ainda há documentos e informações novas que vão surgindo. “Faturas, documentos, fotografias cartas, postais, registos, passagens de sociedade, contratos de arrendamento…”, enumera Susana. Há ainda ajuda de clientes que vão aparecendo com novas informações, como o caso de um cliente que esteve durante 25 anos à procura de um teatro que existiu na zona e ajudou a descobrir uma outra morada desta livraria, na Travessa da Fábrica nº10.
A luta contra o despejo: “Sentia-se que as pessoas estavam connosco, que tinha sido uma injustiça tão grande”
Em 2016 a Moreira da Costa viveu uma das fases mais difíceis da sua história, quando o grupo Fladgate, dono do Hotel Infante de Sagres, reclamou aquele espaço onde a livraria funciona há mais de 70 anos para o incluir nas obras de remodelação do hotel e ali construir um spa. Só que as duas partes não chegaram a acordo e, em 2017, o grupo interpôs quatro ações judiciais: três contra a livraria e uma contra a Câmara Municipal do Porto.
“Foi um ano muito duro, em que estivemos aqui enclausurados, em que começaram as ações em tribunal. Foi um ano muito complicado”, desabafa Susana Fernandes, acrescentando que “foram muitas as noites sem dormir” com medo que acontecesse alguma coisa à livraria. Miguel Carneiro recorda-se bem desta altura: “Senti-me um sem-abrigo, uma pessoa que é olhada com desprezo. A forma como os proprietários tratam os inquilinos…não são todos, claro, mas senti-me um sem-abrigo”.
O alívio chegou a 29 de maio de 2019, quando o Tribunal da Relação do Porto decidiu a favor da Moreira da Costa. Nesse dia, o telefone da livraria não parou de tocar com clientes que queriam felicitar Miguel e Susana. Em todo o processo, os proprietários destacam o apoio que a cidade foi demonstrando, desde clientes habituais e amigos a desconhecidos que souberam da história e quiseram dar uma palavra de conforto.
“Houve um senhor que no dia em que soube que ganhamos, parou na rua e disse: ‘Esperem aí que eu quero dar-vos um abraço’. Sentia-se que as pessoas estavam connosco, que tinha sido uma injustiça tão grande”, desabafa Susana Fernandes, já com a voz embargada. Ainda hoje, acrescenta, a livraria sente o apoio da cidade: “Perguntam frequentemente se continuamos aqui, se está tudo bem, se as coisas estão calmas. Nunca pensei ter tanto apoio e tanto carinho por parte das pessoas”.
Durante esta luta judicial, a Moreira da Costa foi considerada loja histórica, a 21 de dezembro de 2017. Para Miguel Carneiro, a distinção é um marco e a concretização de um desejo antigo: “O que eu mais queria era que uma livraria com 120 anos não caísse no esquecimento facilmente, porque, infelizmente, com estas mudanças todas que houve na cidade do Porto muitas lojas, muito comércio desapareceu sem ficar a sua história na cidade ou ligada à cidade”.
Uma cidade em mudança, a pandemia que afetou o negócio e o futuro assegurado
Na Rua de Avis, a Moreira da Costa é a única livraria que resistiu. Miguel Carneiro tem visto a baixa do Porto mudar “quase de cinco em cinco anos”. Já assistiu à saída da rodoviária nacional da baixa da cidade, ao abandono dos estudantes e à saída dos poucos habitantes que ainda lá moravam. “E isso, em grande parte, acaba por prejudicar um pouco a atividade ao balcão. Continuamos a vender bem pela Internet, mas o contacto com o público acaba por ser essencial”, explica, sublinhando, no entanto, que ainda há leitores que gostam de vir à baixa e comprar livros.
Os turistas que ali entram levam quase sempre um pequeno livro de recordação. Há também clientes que sempre que visitam a cidade fazem questão de ir a este espaço: “Tive um cliente que me pedia para estar aberto ao sábado para o atender. Muito antes de o Porto ter este boom turístico”, recorda o responsável. Há ainda os clientes habituais que visitam a livraria todas as semanas, muitas vezes sem nenhum livro específico em mente, mas apenas para procurar e ver que histórias novas encontram.
Depois da batalha contra o despejo, o ano de 2019 estava a ser de recuperação, até que em março de 2020 a pandemia de Covid-19 veio dificultar as contas. O proprietário tem notado “cada vez menos pessoas a passar na rua”, apesar de as lojas continuarem a vender. No caso desta livraria, uma venda de grande dimensão que conseguiram fazer a um cliente permitiu aguentar financeiramente o período do confinamento. “A pandemia foi mais um desafio. Mas pronto, temos lutado, temos sobrevivido, cá estamos e cá continuaremos“, assegura Susana.
O marco dos 120 anos será assinalado com algumas iniciativas que ainda estão a ser planeadas. A data deverá coincidir com o aniversário dos 74 anos de morada na Rua de Avis, uma vez que não se conhece o dia específico de fundação da livrara. Já o futuro, explicam os responsáveis, vai passando também pelas vendas online, mas sempre com o foco no atendimento ao balcão.
Quanto à passagem de testemunho, há o desejo de que o filho de Miguel e Susana possa, um dia, tomar as rédeas do estabelecimento. Mas, garantem, não há pressão para que isso aconteça. “Ele é mais aluno de matemática, diz que quer ser professor, mas gosta da muito posse do livro e já disse que quer ficar com a livraria. O bichinho está-lhe lá dentro“, assegura Susana. Será, assim, a sexta geração da família Moreira da Costa e mais anos de existência da livraria mais antiga da cidade.