787kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

WELLCOME COLLECTION

WELLCOME COLLECTION

A mãe da enfermagem nasceu há 200 anos. Quem era Florence Nightingale?

Figura de referência em todo o mundo, ainda hoje inspira os enfermeiros, como o português que tratou Boris Johnson. Florence Nightingale esteve na Guerra da Crimeia e até D. Pedro V lhe escreveu.

    Índice

    Índice

Quando, a 12 de abril, o primeiro-ministro britânico deixou o hospital londrino de St Thomas, depois de uma semana de internamento devido à infeção pelo novo coronavírus, decidiu gravar uma mensagem de agradecimento publicada no Twitter e aí referiu pelo nome dois enfermeiros que o tinham tratado: a neo-zelandesa Jenny McGee e o português Luís Pitarma.

As palavras de Boris Johnson tiveram especial repercussão num momento em que os profissionais de saúde de quase todo o mundo são retratados como heróis frente à pandemia que ameaça mudar o curso do século XXI. Dias depois, através de um site do Serviço Nacional de Saúde britânico, o enfermeiro português, de 29 anos, natural de Aveiro, deu alguns pormenores sobre as conversas que tinha tido com o chefe do Governo britânico. Uma passagem tornou-se notada: “Disse-lhe que sonhava trabalhar em St Thomas desde que comecei a minha formação em Portugal, em 2009, por ter descoberto nessa altura a ligação entre o hospital e Florence Nightingale.”

Luís Pitarma referia-se à mãe da enfermagem moderna, conhecida como a Dama da Lamparina (ou da Candeia, como também se diz), que em 1860 criou a primeira escola de enfermagem baseada em normas científicas no hospital-escola que agora tratou Boris Johnson. Florence Nightingale nasceu há precisamente 200 anos, a 12 de maio de 1820, em Florença, norte de Itália.

Filha de pais britânicos, foi criada em Inglaterra, aí estudou, trabalhou e desenvolveu princípios filosóficos que ainda hoje norteiam a atividade dos enfermeiros. Continua a inspirar gerações de profissionais e o seu exemplo de abnegação e pioneirismo não está esquecido.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[mensagem de Boris Johnson:]

A data redonda tem até foros de celebração mundial. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou 2020 como Ano Internacional do Enfermeiro e uma das razões é a comemoração do bicentenário de Florence Nightingale. De resto, 12 de maio já é desde 1965 o Dia Internacional do Enfermeiro.

No quadro do Ano Internacional do Enfermeiro, dedicado à enfermagem em geral e também à enfermagem de saúde materna e obstétrica, a OMS lançou há dias o primeiro Relatório sobre o Estado da Enfermagem no mundo, que vem assinado, entre outros, pelo agora polémico Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. O relatório indica que os enfermeiros são o grupo profissional mais numeroso na área da saúde em todo o mundo, com 27,9 milhões de praticantes, dos quais 19,3 milhões são enfermeiros e enfermeiras profissionais. Apesar disso, há uma “escassez mundial” destes profissionais, sobretudo em países africanos, do Extremo Oriente e da América Latina, segundo a OMS, pelo que um dos objetivos dos estados deve ser o de “gerar pelo menos seis milhões de novos empregos em enfermagem” até 2030.

Um dos livros de Florence Nightingale alcançou tal prestígio que até o rei D. Pedro V lhe escreveu a pedir conselhos para o hospital que pretendia construir em Lisboa em honra da consorte D. Estefânia.

Aos 30 anos na Alemanha

Florence Nightingale foi a segunda de duas filhas e nasceu por mero acaso em Florença, na Villa Colombia, onde os pais se encontravam a passar uma longa lua-de-mel: William Edward e Frances Smith. Shore era o apelido dele de batismo, alterado para Nightingale quando recebeu a herança de um tio-avô, em 1815, regista a Encyclopaedia Britannica. O local de nascimento determinou o nome da rapariga (tal como o da irmã, que também nasceu em Itália e se chamou Parthenope, em referência ao nome grego de Nápoles).

Apenas regressaram a Inglaterra alguns meses depois, para viverem em Derbyshire e Hampshire, onde a família tinha casa, e desde cedo começaram a frequentar Londres, onde William e Frances faziam vida social. Filha da classe alta, foi em casa que teve aulas de literatura, história, filosfia e matemática, além de ter aprendido a ler e a escrever alemão, francês, italiano, grego e latim. O pai, homem bem relacionado, com brazão e títulos, fez questão de lhe dar uma educação esmerada. Florence terá desde cedo revelado forte apetência por temas filosóficos e políticos, que discutiria com William.

Uma marcante formação cristã, mais por influência materna, levou-a desde cedo a sentir um apelo para cuidar dos outros. A partir dos 16 anos, perante o que aparece descrito em biografias como “chamamento de Deus”, Florence decidiu que dedicaria a vida ao assistencialismo, assim se iniciando como enfermeira. O pai impediu-a, porém, de ingressar formalmente na profissão (se é que se pode falar de profissão à época), por entender que uma rapariga do estatuto social dela não o deveria fazer. Definitivamente, a enfermagem não gozava de prestígio.

Uma das casas da família Nightingale, em Hampshire, onde Florence cresceu

THE BRITISH MUSEUM

Só aos 30 anos conseguiu receber formação, em Kaiserswerth, na Alemanha, por um escasso período de cerca de três meses e meio (em duas ocasiões, 1859 e 1851), mas o suficiente para compreender os princípios básicos, descobrir a importância de observar os doentes e o funcionamento de um hospital. Conta-se que em 1853 contrariou a vontade da família e recorreu a conhecimentos pessoais para se tornar diretora da Institution for Sick Gentlewomen in Distressed Circumstances, em Londres. Logo aí terá revelado capacidades de liderança e desenvolvido técnicas que melhoraram os cuidados prestados aos doentes, as condições de trabalho e a eficiência da instituição.

A seguir, a Guerra da Crimeia, a primeira da era industrial, que se prolongou entre outubro de 1853 e fevereiro de 1856 e opôs os russos a uma coligação formada por britânicos, franceses e otomanos, foi o cenário onde Florence Nightingale se afirmou e conquistou o cognome Dama da Lamparina. Sem o empurrão da classe social em que nasceu, dificilmente teria alcançado os seus objetivos, notou a historiadora Linda Nochlin (num artigo da década de 70 compilado em Women Artists, de 2015)

"Toda a enfermeira deve ter o cuidado de lavar as mãos com frequência ao longo do dia", um dos conselhos pioneiros da mãe da enfermagem

Guerra da Crimeia

A guerra travou-se sobretudo em território russo, mas as bases britânicas situavam-se junto à atual cidade de Istambul, na Turquia. Aí também ficava o hospital de campanha que o correspondente de guerra William Howard Russell, do Times, descreveu aos leitores como um sítio tremendo, com falta de meios de socorro e uma incúria generalizada dos seus responsáveis. A opinião pública britânica reagiu, um membro do Governo chamou Florence Nightingale e pediu-lhe que fosse para Scutari, na Turquia, liderar a assistência aos soldados, no que a enfermeira juntou 38 mulheres e ali chegou a 5 de novembro de 1854. Deparou-se com condições ainda piores do que aquelas que a imprensa tinha relatado. “O reino dos infernos”, terá dito.

Chamou as mulheres dos soldados para as lavandarias, estabeleceu padrões de assistência e regras básicas de alimentação e higiene pessoal para os soldados. Com ela, as enfermarias passaram a ter asseio frequente e as enfermeiras começaram a receber tratamento digno, lê-se na Encyclopaedia Britannica. Apoio permanente aos doentes, incluindo do foro psicológico, foi uma das inovações que introduziu, sendo vista muitas vezes à noite, de lamparina na mão, junto da cama de soldados em sofrimento. Não é certo, porém, que a mortalidade se tenha reduzido naquele hospital, pois os números ainda hoje são disputados.

Nas enfermarias da Turquia, a Dama da Lamaprina começou também a aplicar pela primeira vez métodos estatísticos elementares, conseguindo provar que os soldados morriam mais por doenças do que na sequência de ferimentos de guerra. Mais tarde, já em Inglaterra, criou questionários que permitiram perceber a situação sanitária de militares na Índia ou a taxa de mortalidade das populações aborígenes na Austrália.

Durante o conflito, a rainha Victoria (1819-1901) terá mantido estreito contacto com Florence Nightingale, para se informar sobre o estado de saúde dos soldados britânicos, e depois disso ambas continuaram a relacionar-se, com pelo menos uma visita de Florence ao castelo de Balmoral (casa de férias da família real britânica, na Escócia).

Ironicamente, pouco depois do regresso, a enfermeira teve um grave problema de saúde que quase a deixou inválida (acredita-se que possa ter contraído brucelose) e a partir de então remeteu-se a uma vida quase reclusa, em casa, continuando a escrever e a intervir socialmente.

Ar pestilento e estagnação

Ao longo do século XX, a Dama da Lamaprina tornou-se uma personagem da cultura popular. Em 1989 foi inaugurado em Inglaterra o Museu Florence Nightingale. Referências ao trabalho dela surgiram em livros de divulgação hoje considerados clássicos, como A Mulher Eunuco, da feminista Germaine Greer, em 1970 — onde se diz com ironia que “a enfermagem começou quando Florence Nightingale empregou as filhas ociosas da classe média victoriana num trabalho de misericórdia, que as afastava da malevolência”. Ou no ensaio de Susan Sontag A Doença Como Metáfora, em 1978, onde se escreve que a tuberculose esteve por muito tempo associada à poluição e que Florence Nightingale supunha tratar-se de uma doença “induzida pelo ar pestilento do interior das casas”.

De facto, só muito tarde, na década de 1880, Florence Nightingale reconheceu que as doenças seriam causadas por micróbios. No entanto, no atual contexto de pandemia do coronavírus, há quem sublinhe que já no livro Notes on Nursing, de 1860, ela tinha defendido a importância da higiene das mãos. “Toda a enfermeira deve ter o cuidado de lavar as mãos com frequência ao longo do dia, e se também lavar a cara tanto melhor”, escreveu. Aliás, durante a Guerra da Crimeia tinha implementado a lavagem das mãos e outras formas de higienização, o que constituía relativa novidade, pois só nos anos 1840 o médico húngaro Ignaz Semmelweis tinha descrito a redução do número de mortes nas maternidades sempre que os profissionais de saúde lavavam as mãos.

O livro só em 2005 conheceu uma versão portuguesa, tanto quanto indicam os registos da Biblioteca Nacional — Notas Sobre Enfermagem: O Que é E o Que Não é, traduzido por Carla Ferraz, com prefácio do professor e antigo bastonário da Ordem dos Enfermeiros Germano Couto. É descrito mais como um conjunto de informações de saúde pública do que uma manual de enfermagem. A edição em 1860 vendeu mais de 15 mil exemplares só nos primeiros dois meses.

Dirigindo-se especialmente às mulheres, que tratavam do lar, o livro defendia que “cada canto e cada buraco” de uma casa deveriam ser limpos, para evitar a propagação de doenças. Aconselhava a instalação de esgotos, a fim de combater doenças transmitidas pelas águas, como a tifóide ou a cólera; pedia para se evitar excessiva produção de fumo dentro entre quatro paredes e para se substituir o papel de parede por tinta; e dizia ainda que as janelas deveriam ser abertas com frequência para que entrasse luz e vento contra a estagnação doméstica.

Florence Nightingale. Photograph by Millbourn. Credit Wellcome Collection.

MILLBOURN/WELLCOME COLLECTION

Florence Nightingale mantinha-se informada sobre os avanços científicos e essa terá sido uma das razões pelas quais se destacou no campo da saúde pública, dizem os especialistas.  Daí as suas recomendações para que a as pessoas lessem, escrevessem e convivessem umas com as outras na fase de convalescença, especialmente os soldados, assim evitando a depressão e o alcoolismo.

Aquele livro e um outro de título semelhante que tinha feito publicar em 1859, Notes on Hospitals, conheceram várias edições e granjearam-lhe projeção europeia, a ponto de receber solicitações de arquitetos e autoridades públicas sobre a melhor forma de gerir hospitais. Até o rei D. Pedro V lhe escreveu a pedir conselhos para o hospital que pretendia construir em Lisboa em honra da consorte D. Estefânia, como escreveu o biógrafo Mark Bostridge em Florence Nightingale The Woman and Her Legend (2008).

Provável celibatária na maior parte da vida, mas a quem alguns autores reconhecem amizades eróticas com outras mulheres, tem sido reabilitada nos últimos anos como pioneira dos movimentos feministas. Aos 20 anos iniciou um conjunto de textos sob o título genérico Cassandra em que criticava abertamente os valores da sociedade victoriana, sobretudo o “ambiente frio e opressivo” da instituição familiar face às mulheres. O livro foi publicado postumamente e terá influenciado a escritora Virginia Woolf. Florence morreu em Londres a 13 de agosto de 1913.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora