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Rita Ferreira

Rita Ferreira

A "maldição" da Nossa Senhora das Babosas. "Isto é ela a dizer que quer voltar para a sua casa"

Em 2010 a imagem de Nossa Senhora da Conceição que estava na Capela das Babosas foi levada nas cheias e nunca mais voltou. Há quem acredite que é por isso que tantas desgraças têm acontecido no Monte.

Uma turista entra apressada no elevador do parque do aeroporto do Funchal, carregada de malas para apanhar o avião que a vai levar de volta a Viena.

— Viste a árvore que caiu?, pergunta.

— Sim, horrível.

— Pois é, imagina… No 15 de agosto. Logo no dia 15 e logo ao meio dia. Isto para os madeirenses é inexplicável, é quase o inferno.

Nem houve tempo para lhe saber o nome, porque a porta abriu e ela saiu de repente. Mas o que disse não precisava de muitas mais explicações, pelo menos para quem nestes últimos dias andou pelo Largo da Fonte, na freguesia do Monte, a falar e a ver e a ouvir as pessoas que ali moram. É demasiado fácil encontrar quem, nos últimos sete anos, viveu tragédia atrás de tragédia. E é também por isso que, entredentes ou encolheres de ombros, a palavra maldição venha tantas vezes à boca de quem ali passa os dias, entre o café e o Largo, ainda sem respostas para o que aconteceu no dia da maior festa religiosa da Madeira, o dia da padroeira, o dia das festas da Nossa Senhora do Monte.

São poucos os que não acreditam em maldições, em coisas do além, em vontades do outro mundo que ali vêm zangar-se pela água ou pelo fogo, ou através de uma árvore que cai em cima de dezenas de pessoas que estão a rezar ou a pagar promessas.

“João, a capela?”

Estando no alto da Igreja da Nossa Senhora do Monte, virado para o mar, o Largo da Fonte fica do lado direito. Para a esquerda, mesmo junto ao teleférico, está o Largo das Babosas. E é aqui que vamos encontrar quem tenha uma “explicação” para tanta desgraça. É uma crença, é para alguns uma certeza muito grande, é uma angústia que começou no dia 20 de fevereiro de 2010.

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Ana Encarnação não tem vergonha de o dizer com todas as letras e ninguém lhe abala a convicção: tudo o que de mal tem acontecido está ligado à imagem da Nossa Senhora da Conceição, que foi levada da Capela das Babosas para a Igreja da Nossa Senhora do Monte. “Ela tem de voltar para aqui. Antes de 20 de fevereiro não havia estas desgraças. Isto é ela a pedir para voltar.”

Quando veio à porta de casa, Ana não se apercebeu de que a água e a lama tinham levado a Capela das Babosas

É uma casa térrea, branca com janelas verdes, vasos de flores à porta. Ana Encarnação vive ali desde os três meses; tem agora 57 anos e o cabelo todo branco. No terreno ao lado, há vegetação descontrolada, umas escadas, e uma espécie de cabana de madeira onde está uma tarja com uma imagem da Imaculada Conceição e uma promessa escrita a preto e branco: “Juntos vamos reconstruir a Vossa capela”. Um vaso de flores e um local para deixar velas acesas. Junto ao chão, outro vaso com as margaridas amarelas e brancas que Ana comprou no sábado.

Oferece uma cadeira da casa de jantar e começa a contar a história que remonta ao dia 20 de fevereiro de 2010, porque foi nesse dia que desapareceu a Capela das Babosas. “Já tinha vindo o fogo e ela ali ficou, veio o lume outra vez e a capela ficou. Só naquele dia desapareceu”, começa por explicar.

Chovia muito e Ana levantou-se, como todas as manhãs, para ir buscar o pão que tinha sido deixado à sua porta. Tomou o pequeno almoço com a filha, que saiu para trabalhar lá em baixo no centro da cidade. Mas a meio do caminho, a filha ligou. “Está aqui muita água, não sei o que se passa, mas vou continuar a descer”, disse-lhe. Ana alvoroçou-se e foi acordar o marido. Quando chegaram novamente à porta de casa, viram o impensável. “Era tudo a arrastar por aí abaixo, lenha, lama, pedras, tudo.” Salvaram uma vizinha do meio da lama e fugiram para o teleférico. Foi então que Ana perguntou ao marido:

— Ó João, e a capela?

— Passou à tua frente…

Esta era a Capela das Babosas, que foi destruída nos aluviões de 20 de fevereiro de 2010

Toda a família se salvou, as casas aguentaram o que puderam. No dia seguinte, ainda em casa de outros familiares, Ana recebe um telefonema da irmã:

— Mana, a Nossa Senhora foi encontrada. Está intacta. Só partiu um pé do menino Jesus e um pouco do manto dela.

Tinha sido um carreiro que, no meio da lama, resgatou a imagem num caniço não muito longe do Largo. Ana respirou de alívio.

A imagem de Nossa Senhora da Conceição resgatada por um grupo de homens no dia 21 de fevereiro de 2010

As fotografias do resgate estão agora na parede do restaurante Santa Maria, que fica mesmo junto à saída dos cestos e é frequentado pelos carreiros que ali trabalham todos os dias.

Passadas as enxurradas, sucederam-se as promessas de que outra capela nova seria construída no Largo das Babosas. Até hoje. E é isso que não deixa Ana dormir descansada. Nem Rui, nem João. Todos acreditam que a “santa” tem de voltar para o sítio dela e que, até lá, as desgraças vão continuar a acontecer.

“Façam uma capela mais pequena, mas façam. Ela tem de voltar para aqui”, diz Ana.

Por agora, o que lá está é um resto de um presépio. E é lá que Ana vai por flores que compra no mercado todos os sábados, sem falta. É lá que reza, porque recusa-se a ir ver a imagem original à Igreja do Monte. Deixou de ir às novenas e tudo. João, que entretanto chegou, vai acenando com a cabeça em concordância com Ana.

Ana Encarnação junto à casinha que ficou a "substituir" a Capela das Babosas

Depois entra Rui, irmão de Ana. A casa onde vivia, mais abaixo do Largo, ardeu toda no ano passado. Isto depois de ter conseguido salvar mulher e filhos dos aluviões, mesmo que a lama e a água lhe tivessem entrado por uma porta e saído por uma janela com todos lá dentro.

Rui não é de grandes conversas. Faz uma pausa antes de sair para ir ter com o filho, vira-se para trás e diz, amargo: “Já estou acostumado a perder. Só não perdi os filhos”.

Andar a fugir das desgraças e encontrá-las sempre no caminho

A crença de Ana, de Rui, de João e de outros habitantes do Monte não vai ser abalada, pelo menos enquanto a imagem da Nossa Senhora não voltar ao Largo das Babosas. Quem sabe será uma daquelas histórias que perduram no tempo e se tornam lendas, como tantas outras que já existem em torno da Nossa Senhora do Monte.

Uma festa que vem de 1500 e envolve três lendas

Uma delas, fala de outra imagem que caiu escadaria abaixo e matou um herege, em 1566. É conhecida como a Lenda dos Huguenotes. No livro “Saudades da Terra”, Gaspar Frutuoso conta que “os hereges franceses, nas suas fúrias de destruição foram à Igreja de Nª Senhora do Monte, e um deles pegando na imagem da Virgem despiu-a, atirando-a, pelos degraus de pedra, para a despedaçar. Porém, os degraus fizeram-se em pedaços e a imagem ficou intacta. Arremessando com fúria a Imagem aos degraus, pela terceira vez, uma lasca de pedra viva saltou, penetrando no coração do herege que ali morreu instantaneamente”.

Vista da Igreja da Nossa Senhora do Monte

Carlos Alves conhece todas estas crenças. Com 31 anos, já viu a casa onde vivia, no Monte, ser levada pelos aluviões de 2010 e de cada vez que foge de uma desgraça, outra atravessa-se-lhe no caminho. “Nos aluviões a minha casa desapareceu, salvaram-se algumas coisas e eu fui-me embora daqui, fui para São Roque”, conta. Fugiu à água, apanhou com o fogo. Salvou a casa nova nos fogos de 2013, mas no ano passado, as casas do pai e da avó arderam por completo. Estouraram sete garrafas de gás e não sobrou nada.

Carlos era carreiro, vestia de branco e empurrava os cestos pela encosta abaixo, quando em janeiro o seu chefe foi assassinado à queima roupa, em plena luz do dia, por um homem que queria ajustar contas com ele. Por isso, e por causa de uma dor nas costas, deixou o ofício.

Comprou uma roulote e passou a dedicar-se às festas e romarias, onde vende comida e bebida. Trabalha com a mulher e tem dois filhos, de seis e dez anos. Na terça-feira, dia 15, ali estava com a banca montada no Largo da Fonte quando a árvore caiu. “O que eu vi nem consigo contar. Ainda fico com as pernas a tremer quando me lembro. Fiquei paralisado, queria andar e não conseguia mexer-me.”

Vem à porta do café fumar um cigarro e olha para o Largo da Fonte.

— E para o ano? Acha que voltará a haver festa?

— Não sei se venho. Isto tem sido só desgraças, mas eu não acredito em maldições.

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