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A origem da ópera, a música para amansar feras

O mito de Orfeu serviu de inspiração a alguns dos mais sublimes momentos da história da música - alguns dos quais são objecto de lançamentos recentes da Alia Vox e Harmonia Mundi.

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A importância do acaso

No mundo da ciência e da tecnologia têm sido frequentes os casos em que um avanço revolucionário ocorre por mero acidente: entre os mais célebres contam-se as descobertas da penicilina por Alexander Fleming e das aplicações culinárias das micro-ondas por Percy Spencer quando trabalhava no desenvolvimento de radares militares.

No mundo da música os desenvolvimentos nascidos do acaso são mais invulgares, mas também a ópera surgiu na Itália da viragem dos séculos XVI-XVII devido a um equívoco. Mas a preceder o equívoco, houve um factor que tantas vezes tem desencadeado as rupturas nas artes: a sensação de que uma forma consagrada atingira, senão o esgotamento, pelo menos os limites do seu potencial expressivo. Foi por volta de 1580 que alguns eruditos começaram a manifestar insatisfação com o madrigal polifónico, que atingira então o pináculo da elaboração e era a forma em que todos os compositores se esforçavam por exibir o seu talento. Um desses “insatisfeitos” era Vincenzo Galilei (c.1520-1591), um alaúdista, cantor e compositor que além de ter dado decisivos contributos para o progresso da música foi pai do astrónomo Galileo Galilei.

No seu tratado Dialogo della musica antica e della moderna (1581), Galilei argumentava que “a música polifónica de hoje é de escassa serventia na expressão das paixões da mente através de palavras”. Em alternativa à música polifónica, Galilei advogava um regresso ao drama grego da Antiguidade Clássica, baseado na convicção de que este teria sido cantado. Galilei era acompanhado nestas especulações pelos seus colegas da Camerata de’ Bardi (também conhecida como Camerata Fiorentina), um grupo de intelectuais e artistas, onde se contavam os músicos Pietro Strozzi e Giulio Caccini, devotados à discussão de arte, literatura e música, sob o patrocínio do conde Giovanni de’ Bardi (1534-1612), homem de múltiplos interesses, que não só era músico e poeta amador como foi responsável pela fixação, em 33 artigos, das regras do calcio, que são, na essência, as que hoje ainda regem o jogo. Uma vez que o rigor historiográfico e musicológico eram coisas alheias ao espírito da época e pouco ou nada se sabia sobre a música da Grécia Clássica (ainda hoje pouco se sabe) ou sobre o seu teatro, os membros da Camerata deixaram que a imaginação os guiasse.

Um dos mais faustosos intermedi da época foi apresentado em Florença, em Maio de 1589, no casamento de Ferdinando de’ Medici, um evento que começou a ser preparado um ano antes e incluiu vários banquetes e até uma batalha naval simulada

O canto monódico – uma voz com acompanhamento instrumental relativamente simples, por oposição ao entrançado de vozes de igual importância do madrigal polifónico – não era desconhecido em Itália, desfrutando a frottola e a villanella de grande voga e tendo alguns compositores conceituados consagrado algum do seu talento a estes géneros mais populares. Por outro lado, os grandes eventos nas cortes italianas costumavam ser abrilhantados por intermedi, espectaculares produções envolvendo música, teatro, poesia e dança e cenários elaborados e efeitos especiais. Um dos mais faustosos intermedi dessa época foi apresentado em Florença, a 2 de Maio de 1589, por ocasião do casamento de Ferdinando de’ Medici com Christine de Lorraine, um evento que começou a ser preparado com um ano de antecedência e que incluiu uma sucessão de banquetes, bailes, peças de teatro e até uma batalha naval simulada no pátio interior, preenchido com água, do Palazzo Pitti.

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Ferdinand_I_de_Medici

Ferdinando de’ Medici em vestes cardinalícias – fora nomeado cardeal aos 14 anos, mas nunca foi ordenado padre. Abandonou o cardinalato em 1589, a fim de suceder ao irmão como Grão-Duque. Quadro de pintor anónimo, 1588

Nunca se saberá se este esplendor se destinou apenas a deslumbrar as cortes europeias com o poder e requinte dos Medici, ou se Ferdinando também procurava fazer esquecer os rumores rodeando as mortes simultâneas do seu irmão Francesco I e da sua esposa Bianca, em Outubro de 1587, oficialmente atribuídas à malária mas em que alguns viram um envenenamento perpetrado pelo irmão mais novo.

O encarregado de conceber e coordenar este intermedio florentino de 1589, que ficou conhecido como La pellegrina, foi o conde Bardi, que confiou a componente musical a gente do seu círculo, como Giulio Caccini (1551-1618), Emilio de Cavalieri (c.1550-1602), Cristoforo Malvezzi (1547-1599) e o seu discípulo Jacopo Peri (1561-1633), bem como ao afamado madrigalista Luca Marenzio (c.1533-1599), ficando os versos por conta de Ottavio Rinuccini e do próprio Bardi (que talvez tenha também composto alguma da música). Se nunca saberemos a que soava a alternativa à música polifónica que Galilei advogava, já que toda a sua obra musical se perdeu, sobraram páginas suficientes do intermedio de 1589 para que se perceba que este já prefigura algumas características da ópera, se bem que, em vez de uma narrativa, exista uma sucessão desconexa de quadros, de temática mitológica e pastoril, como era usual no género, e falte unidade estilística (para descobrir La pellegrina recomenda-se a reconstituição levada a cabo em 1997 pelo Huelgas Ensemble, dirigido por Paul van Nevel, e editada pela Sony).

Quem inventou afinal a ópera?

Mas não tardaria que alguns dos músicos que contribuíram para La pellegrina dessem passos decisivos na direcção da ópera: Cavalieri terá composto música (perdida) para um divertimento pastoril sobre a Aminta de Torquato Tasso, apresentado em 1590 no palácio de Jacopo Corsi, o grande rival de Bardi como mecenas das artes em Florença, e para outro divertimento pastoril, com texto de Laura Guidiccioni, apresentado em Florença em 1595 (também perdido).

A não ser que emerjam partituras desaparecidas, Peri poderá reivindicar a autoria da primeira ópera, a Dafne com libreto de Rinuccini, apresentada nos festejos de Carnaval de 1598 no Palazzo Corsi, já que Bardi partira entretanto para Roma e Jacopo Corsi acolhera sob o seu manto de mecenas os membros da Camerata de’ Bardi; e sendo também Corsi um músico amador, são de sua autoria dois dos seis fragmentos da ópera que chegaram aos nossos dias.

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Dafne, perseguida por Apolo, pede socorro ao pai, Ladon, deus dos rios, que a metamorfoseia num loureiro. Quadro de Giovanni Battista Tiepolo, 1744

Peri e Rinuccini voltariam à carga com uma Euridice, que é a primeira ópera a ter chegado na íntegra aos nossos dias. Estreou a 6 de Outubro de 1600 no Palazzo Pitti, abrilhantando o casamento de Maria de’ Medici e Henrique IV de França, e foi o próprio Peri que cantou o papel de Orfeu. Apenas três dias depois, e integrada nos mesmos festejos de casamento, Caccini estrearia Il rapimento di Cefalo (com contributos pontuais de Piero Strozzi e outros), mas, por a sua partitura se ter perdido, é raramente mencionada quando se evoca a génese do género. Ainda assim, Caccini colheu também louros do sucesso de Euridice, já que parte da música é de sua autoria.

“Enquanto a minha música comove as pessoas, induzindo-lhes sentimentos de prazer e melancolia, a deles provoca o tédio e a repulsa”

Porém, a relação entre Caccini e Peri estava, por esta altura, a converter-se numa rivalidade acesa, com o primeiro a reclamar para si a “invenção” do stile rappresentativo (assim era denominada a nova variante do canto monódico) e da ópera. E, para reforçar as suas reivindicações, seis semanas após esta estreia fez publicar uma outra Euridice sobre o mesmo libreto, mas com música inteiramente de sua lavra (embora a estreia só tenha tido lugar em 1602).

Porém, Cavalieri, que entretanto estreara em Roma, a 10 de Novembro de 1600, Rappresentatione di anima et di corpo, um híbrido entre ópera sacra e oratória, também reclamava para si a invenção do stile rappresentativo e fazia comparações pouco lisonjeiras com os seus rivais: “Enquanto a minha música comove as pessoas, induzindo-lhes sentimentos de prazer e melancolia, a deles provoca o tédio e a repulsa”.

Entra em cena um profissional

Entre os convidados do casamento de Maria de’ Medici e Henrique IV de França que assistiram à Euridice de Peri a 6 de Outubro de 1600 no Palazzo Pitti estava Vincenzo Gonzaga, Duque de Mântua e um dos maiores conhecedores de arte e mecenas do seu tempo.

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Vincenzo Gonzaga, retratado por Jean Bahuet, 1587

O que viu e ouviu deve tê-lo impressionado favoravelmente – e, quiçá, talvez o tivesse recordado de que, mais de um século antes, a corte de Mântua fora palco de um momento decisivo na história da música, com a apresentação de outro precursor do género operático, La favola d’Orfeo, com trechos declamados alternando com trechos cantados, compostos por vários membros da cappela ducal e texto do humanista Angelo Poliziano (1454-1494), um homem que poderia ter mudado o curso das artes e letras portuguesas, já que escreveu uma carta a D. João II, em que, considerando que os feitos deste tinham superado os de Alexandre e de César, se propunha para redigir, mediante adequada remuneração, um poema épico que imortalizasse as descobertas portuguesas (o que, a concretizar-se, teria deixado Camões sem trabalho).

Por outro lado, Vincenzo Gonzaga tinha ao seu serviço, desde 1590, Claudio Monteverdi (1567-1643), um compositor tão dotado que, a seu lado, Caccini, Cavalieri e Peri faziam figura de meros dilletanti, pelo que tratou de encomendar-lhe algo no mesmo género.

Bernardo_Strozzi_-_Claudio_Monteverdi_(c.1630)

Claudio Monteverdi por Bernardo Strozzi, 1630

Prova do empenho do duque na empresa foi o facto de ter confiado ao seu secretário, Alessandro Striggio Jr. (filho do prestigiado compositor Alessandro Striggio) a preparação do libreto (cuja fonte principal foram as Metamorfoses de Ovídio) e ao filho Francesco a “produção executiva” do evento. Ao contrário das óperas anteriores, associadas a espectaculares festividades de corte, L’Orfeo: Favola in musica estreou, a 24 de Fevereiro de 1607, numa pequena sala do palácio ducal, para um público restrito de membros da Accademia degli Invaghiti, uma elitista agremiação de intelectuais da cidade, presidida por Francesco Gonzaga. O cuidado posto no evento é atestado pelo facto de o libreto ter sido impresso e distribuído a todo o público.

O acolhimento favorável da obra levou a que o duque determinasse que se fizesse nova apresentação, desta feita “para as damas da cidade”, a 1 de Março. Foi programada uma reposição para a Primavera de 1607, para receber Carlo Emanuele, duque de Sabóia, que pretendia discutir o casamento da sua filha com Francesco Gonzaga, mas esta récita não chegou a ter lugar.

O mito de Orfeu

A recorrência do mito de Orfeu – e em particular do episódio que envolve Eurídice – no enredo das primeiras óperas não é fruto do acaso. Orfeu surge na mitologia greco-romana como poeta e músico de excepcionais talentos, atribuindo-se-lhe a invenção (ou, pelo menos, o aperfeiçoamento) da lira. Os seus atributos e as peripécias da sua vida variam consoante as fontes, mas há unanimidade quanto à natureza e efeito dos sons que produzia com o canto e a lira: eram capazes de amansar feras, fazer as plantas inclinar-se para ele, acalmar o mais destemperado dos homens e até de suster o curso dos rios.

John_Macallan_Swan_-_Orpheus_(1896)

Um Orfeu adolescente rodeado de feras subjugadas pela sua música. John Macallan Swan, 1896

Um relato que faz Orfeu participar nas aventuras dos Argonautas mostra-o a usar a música para aplacar uma tempestade e para desviar a atenção dos restantes tripulantes do encantatório canto das sereias. De regresso à Trácia natal, a sua paixão pela ninfa Eurídice tem, porém, um trágico destino, quando esta é vítima da mordedura mortal de uma serpente. Desesperado, decide ir ao Inferno resgatar a amada e consegue, pelo seu canto, comover até as potências infernais – nalgumas fontes, até os padecimentos a que estavam sujeitos os danados são momentaneamente suspensos pela acção da música de Orfeu.

Hades (Plutão na mitologia romana), por intercessão da esposa, Perséfone/Proserpina, concede-lhe que leve Euridice consigo, mas na condição de não olhar para ela até ter saído do submundo. Orfeu acede, mas, quando está quase a regressar à superfície, não estando seguro de que Eurídice siga atrás dele, volta-se e assim condena a amada a regressar às profundezas, desta vez irrevogavelmente (no sentido original do advérbio de modo). Um coro de espíritos explicita, no libreto de Striggio, a moral da história: “Orfeo venceu o Inferno, mas foi depois vencido pelas suas próprias paixões. Só será digno de glória eterna aquele capaz de triunfar sobre si mesmo”.

Apenas uma versão não faz intervir trácias tresloucadas: é a que pretende que Zeus/Júpiter ficou furioso por Orfeu andar a revelar aos homens os segredos a que tivera acesso – o que faria de Orfeu um precursor de Edward Snowden.

O destino do inconsolável Orfeu varia consoante as fontes: embora haja consenso sobre ter acabado estraçalhado às mãos de mulheres trácias, que atiraram os seus pedaços a um rio, os motivos para tal divergem apreciavelmente. Uma versão propõe que a inquebrantável fidelidade de Orfeu à memória de Eurídice foi tomada como insulto pelas mulheres trácias – “Não há fúria no Inferno que se compare à de uma mulher despeitada”, já advertia o dramaturgo inglês William Congreve.

Uma variante faz o despeito feminino nascer de Orfeu ter encontrado consolo pela perda de Eurídice apenas na companhia de rapazes (inclinação que tem antecedentes na sua ligação ao jovem Cálais, filho de Bóreas, na viagem dos Argonautas). A crer nesta fonte, Orfeu teria sido pioneiro não só na música, poesia e medicina, como na introdução da pederastia na Trácia.

Outra versão pretende que, na sua incursão ao submundo, Orfeu tivera acesso a segredos que passou a partilhar em cerimónias herméticas em que apenas eram admitidos homens e que as mulheres, furiosas por serem excluídas dos mistérios, chacinaram Orfeu e os seus correligionários.

Outra, faz intervir ressabiamentos antigos: a deusa Afrodite/Vénus, tendo em tempos sido prejudicada pela musa Calíope, mãe de Orfeu, decidiu vingar-se no filho, incutindo nas mulheres da Trácia uma paixão tão assolapada por Orfeu que este acaba por ser alvo de uma disputa feroz – todas as mulheres o querem para si e o infeliz acaba esquartejado.

Outra tradição ainda conta que, após a sua traumática perda, Orfeu abandonou o culto dos deuses, com excepção de Apolo (pai de Orfeu, nalgumas fontes), e foi atacado por adoradoras trácias de Dionísio/Baco (as Bacantes), que ficaram indignadas por Orfeu ter deixado de beber vinho e ter renegado Dionísio/Baco – o que faria de Orfeu uma das primeiras vítimas do fundamentalismo religioso.

Apenas uma versão não faz intervir trácias tresloucadas: é a que pretende que Zeus/Júpiter ficou furioso por Orfeu andar a revelar aos homens os segredos a que tivera acesso na sua excursão ao Inferno e que eram exclusivos dos deuses, pelo que o fulminou com um raio – o que faria de Orfeu um precursor de Edward Snowden.

A versão suavizada do mito

Fosse qual fosse a versão considerada, nenhuma era adequada a festas de corte e cerimónias de casamento, pelo que o libreto de Rinuccini, usado por Peri e Caccini, introduziu um final feliz: Hades/Plutão não impõe condições ao resgate de Eurídice e Orfeu e a sua amada regressam à superfície e são felizes para sempre.

A versão de Striggio/Monteverdi é mais dramática, uma vez que Eurídice é forçada a regressar ao Tártaro; porém, Orfeu, após dar largas à sua dor num lamento a que só o eco responde e jurar que nunca mais dará o seu coração a mulher alguma, recebe a visita de Apolo, que desce de uma nuvem e reprova os seus queixumes: “Regozijaste-te demasiado com a tua boa fortuna e agora lamentas excessivamente a tua sina cruel e dura. Não sabes que na Terra prazer algum perdura?”. E então Apolo convida Orfeu a subir com ele ao Céu, que é “o único lugar onde a felicidade é duradoura e o sofrimento não é conhecido”.

Monteverdi terá revisto o final quando da terceira récita, na recepção ao duque de Sabóia: a versão do libreto da estreia seria demasiado sombria como prelúdio à negociação de um casamento entre as casas de Sabóia e Mântua.

Este final em que Orfeu ascende aos céus em apoteose é o que consta da partitura que Monteverdi fez publicar em 1609, mas o libreto da estreia conclui-se de forma diversa: Orfeu é ameaçado pelas Bacantes e sai de cena a correr, uma solução dramaticamente trapalhona. Não é certo se foi este, efectivamente, o final utilizado em 1607, mas ainda que tenha sido, tudo indica que Monteverdi achou mais satisfatório o final que publicou em 1609 – que é o que, obviamente, todas as interpretações modernas usam. Há quem sugira que Monteverdi terá revisto o final quando da terceira récita, prevista para a recepção a Carlo Emanuele, duque de Sabóia: a versão do libreto da estreia seria demasiado sombria como prelúdio à negociação de um casamento entre as casas de Sabóia e Mântua.

Uma revolução

Hoje, com quatro séculos de ópera atrás de nós, é difícil perceber quão inovador foi L’Orfeo no seu tempo. Striggio e Monteverdi tinham escassos antecedentes em que buscar exemplo, mas conseguiram erguer uma obra cuja solidez dramática e perfeita aliança entre palavras e música deixa a grande distância as Euridices de Peri e Caccini. L’Orfeo não surge do nada, mas representa um salto qualitativo tremendo e define linhas-mestras para o que viria a ser a ópera nos séculos vindouros, embora o próprio Monteverdi, ao longo da sua extensa carreira, em que compôs mais 17 óperas e obras cénicas (todas perdidas, com excepção de duas) ainda viesse a dar mais contributos decisivos para a linguagem operática – sobretudo com L’incoronazione di Poppea (1643), composta aos 76 anos (por esta altura a ópera começava a ser conhecida por tal nome – a primeira referência data de 1639 – pois, até aí, o género era referido como favola).

L’Orfeo resulta da conjugação do génio de Monteverdi com os generosos recursos postos à sua disposição por Vincenzo Gonzaga, que raramente hesitava em dissipar fortunas quando se tratava de ofuscar os seus pares no patrocínio das artes. Enquanto o instrumentário da Dafne se resumia a uma viola, um cravo, um alaúde, um arqui-alaúde e uma flauta, a partitura de L’Orfeo prevê 38 instrumentos – uma orquestra colossal, para os padrões da época.

Não poderia haver tema mais apropriado do que o poder da música para presidir ao nascimento de um género que iria, nos séculos seguintes, exercer um irresistível fascínio e despertar as mais desabridas paixões na Europa.

Mas Monteverdi não recorre a este vasto instrumentário por exibicionismo ou “porque pode”, antes explora judiciosamente os recursos postos à sua disposição, combinando instrumentos e silenciando outros de forma a produzir os efeitos desejados a cada momento e realçar a expressividade. Na emblemática ária “Possente spirto”, em que Orfeu tenta convencer Caronte a deixá-lo entrar no Inferno, Monteverdi usa acompanhamento de cordas quando Orfeu fala de si mesmo, usa cornetti (instrumento com conotação fúnebre) quando Orfeu menciona o Inferno, e uma harpa (instrumento com conotações celestes) quando alude ao Paraíso.

[Ouça aqui “Possente spirto”, pelo tenor Ian Bostridge, na versão dirigida por Emmanuelle Haïm (Virgin/Erato)]

Monteverdi seguiu as convenções do seu tempo quando fez os cornetti, trombones e o áspero orgão-regal dominar os trechos passados no submundo e deu protagonismo às flautas nas cenas com ninfas e pastores, mas revelou invulgar atenção ao detalhe quando especificou, passo a passo, que instrumentos deveriam integrar o baixo contínuo – aqui apenas órgão de câmara, ali três chitarroni. A diversidade de formas musicais – do “antigo” madrigal polifónico ao novo stile rappresentativo – também contribui para criar a impressão de uma tapeçaria de riqueza caleidoscópica, mas cuja coerência estilística afasta o risco de poder ser confundida com uma manta de retalhos.

Não poderia haver tema mais apropriado do que o poder da música para presidir ao nascimento de um género que iria, durante os séculos seguintes, exercer um irresistível fascínio e despertar as mais desabridas paixões pela Europa fora.

L’Orfeo por Savall

L’Orfeo dirigido por Jordi Savall, com La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations, no Gran Teatre del Liceu, de Barcelona, a 31 de Janeiro de 2002, já tinha conhecido edição em DVD, mas esta edição da Alia Vox é a sua estreia em CD (e também em SACD, para os poucos munidos de tecnologia e ouvidos suficientemente sensíveis para desfrutar deste suporte de alta definição).

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Desde o início da sua carreira que Savall usa instrumentos de época, mas esta récita destaca-se por o rigor historicista se ter alargado aos cenários e figurinos e – o que é inusitado – aos trajos do maestro e dos músicos.

[Ouça aqui a exuberante Toccata que abre a ópera (e que seria reciclada por Monteverdi três anos depois, para abrir as Vespro della Beata Vergine)]

Savall é profundo conhecedor da obra de Monteverdi, tendo rubricado para a Astrée/Auvidis uma versão inultrapassável das Vespro della Beata Vergine, de 1610, e uma excelente leitura de excertos dos Madrigali guerrieri et amorosi do VIII Livro, de 1638 (ambas reeditadas na série Heritage da Alia Vox), pelo que não é de admirar que nos ofereça um L’Orfeo de irreprensível elegância e colorido sumptuoso.

Para tal contribui uma orquestra liderada por dois exímios violinistas, Manfredo Kraemer e Pablo Valetti, e um baixo contínuo opulento, em que uma dúzia de instrumentistas de primeira água (como Andrew Lawrence-King, Marco Mencoboni, Eduardo Egüez ou Luca Guglielmi) se ocupam de uma panóplia de harpas, cravos, órgãos, órgãos-regal, claviorgani, tiorbas, chitarroni, guitarras, violas da gamba, lirones.

[ Ouça aqui “Vi ricorda, o boschi ombrosi”: no Acto I, os bosques e prados partilham da felicidade de Orfeu, que acaba de dar o nó com Eurídice]

O elenco vocal também tem a qualidade a que Savall nos tem habituado, mas ao seu Orfeu, o barítono Furio Zanasi, falta intensidade e arrebatamento nos momentos cruciais, como em “Tu se’ morta” (quando recebe a notícia da morte de Eurídice), pelo que perde na comparação com Anthony Rolfe Johnson (na versão de John Eliot Gardiner) e, sobretudo, com Victor Torres (na versão de Gabriel Garrido).

[Ouça aqui “Tu se’ morta”, por Furio Zanasi]

https://www.youtube.com/watch?v=8ll_u870PG8

O facto de se tratar de uma gravação ao vivo faz com que o som nem sempre seja ideal: a distância variável dos cantores aos microfones prejudica, por exemplo, Cécile van de Sant (Esperança) em “Ecco l’atra palude”, e são audíveis ruídos de palco e tosses. Todavia, o som, espaçoso e límpido, cumpre os padrões da Alia Vox.

Num elenco em que também brilham Montserrat Figueras (A Música), Antonio Abete (Caronte) e Gerd Türk, Francesc Garrigosa e Carlos Mena (Pastores), a voz que mais se destaca é a da contralto Sara Mingardo (Mensageira), exprimindo plenamente a desolação avassaladora que a toma por trazer a Orfeu tão infaustas notícias. A direcção de Savall é, como sempre, um modelo de elegância e refinamento, o que significa que não há lugar para dramatismos exacerbados – o que, na ópera, nem sempre é desejável.

Feitas as contas, trata-se de uma versão recomendável, embora não desafie a supremacia de Gardiner (Archiv) e Garrido (K617). O domínio em que a versão de Savall bate toda a concorrência é na apresentação, com os 2 CDs inseridos num micro-livro de capa dura com 400 páginas.

Outros Orfeus

A popularidade de Orfeu entre os compositores italianos dos alvores do barroco, manteve-se ao longo do século XVII – com relevo para as óperas de Stefano Landi (1619), Luigi Rossi (1647) e Antonio Sartorio (1672) – e alastrou à Alemanha – Heinrich Schütz (1638, partitura perdida) e Johann Philipp Krieger (1683).

Orfeu chegou à cantata no último quartel do século XVII, desabrochando plenamente no início do século XVIII. É a este período que pertencem as quatro cantatas dos italianos Alessandro Scarlatti (1660-1725) e Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736) e dos franceses Louis-Nicolas Clérambault (1676-1749) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764) incluídas no CD Orfeo(s), pela soprano Sunhae Im e a Akademie für Alte Musik Berlin (Harmonia Mundi).

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Dos quatro compositores apenas Clérambault não se dedicou à ópera – o ballet pastoral Le triomphe d’Iris (1706) foi o mais perto que esteve do género – concentrando a sua produção na música sacra e na cantata. Já os outros três contam-se entre os maiores compositores de ópera do seu tempo, com produção residual de cantatas no caso de Pergolesi e Rameau e com Scarlatti a revelar-se assombrosamente prolífico em ambos os campos: cerca de 100 óperas e 800 cantatas.

As quatro cantatas centram-se no episódio do resgate de Eurídice, mas, dada a brevidade do formato, tratam-no apenas parcialmente. Assim, não é de estranhar o tom positivo que encerra o Orfeo de Pergolesi, já que mostra o herói, após a desolação causada pela perda da amada, a manifestar a determinação de descer ao Inferno para a resgatar. Também o Orphée de Clérambault termina em exultação, já que avança na cronologia dos eventos até ao ponto em que Plutão concede a Orfeu que leve Eurídice de volta ao mundo dos vivos.

“No amor há um momento certo para obter a recompensa e se bem que haja quem, por indolência, deixa escapar esse ponto delicioso, são mais os amantes que o falham por não controlarem os seus desejos impetuosos”

L’Orfeo de Scarlatti é narrado em retrospectiva após o herói ter ficado sem Eurídice pela segunda vez. Enquanto as outras cantatas exploram sobretudo os registos de lamentação e exultação, Scarlatti alarga o leque emocional, com a ária “Se mirando, occhi perversi” a exprimir uma áspera auto-recriminação, por ter condenado Eurídice com o seu olhar. Ainda mais notável é a ária “Sordo il tronco”, em que o acompanhamento instrumental, embalador e hipnótico, se suspende judiciosamente em “fermó il passo” (“[a fera] suspendeu o passo”) e em “cessò il pianto e il duol eterno” (“cessou o choro e a lamentação eterna” [dos danados no Inferno]).

O Orphée de Rameau centra-se na viagem de regresso à superfície e na impaciência fatal que leva Orfeu a olhar Eurídice antes de tempo. A derradeira ária fornece a moral da história: “No amor há um momento certo para obter a recompensa e se bem que haja quem, por indolência, deixa escapar esse ponto delicioso, são mais os amantes que o falham por não controlarem os seus desejos impetuosos”. Dir-se-ia que, sob as dignas e sofisticadas vestes da cantata de câmara, um entretenimento sofisticado para salões aristocráticos, e da evocação erudita da mitologia clássica, se aborda um assunto que é, afinal, do foro carnal: como lograr o clímax simultâneo durante os transportes amorosos (os tempos mudam e hoje há menos botões, rendas, folhos e espartilhos a servir de empecilho, mas as Grandes Questões Existenciais atravessam os séculos).

A voz ligeira, focada, precisa e ágil da soprano sul-coreana Sunhae Im (que já foi Eurídice nos Orfeus de Monteverdi e Gluck) é o instrumento perfeito para estas quatro cantatas e tem apoio seguro da Akademie für Alte Musik Berlin, aqui em efectivos mínimos, como convém ao tom intimista das obras e às circunstâncias para que foram concebidas.

Depois do barroco

Ao longo do século XVIII, Orfeu continuou a ser assunto de óperas –Telemann (1726), Graun (1752) – e esteve mesmo por trás de uma obra que marca uma decisiva renovação do género, o Orfeo ed Euridice (1762) de Gluck. O interesse dos compositores pelo tema declinou acentuadamente no final do século XVIII – Haydn foi o único grande compositor do Classicismo a recorrer a ele, em L’anima del filosofo (1791), mas esta nem sequer chegou a ser apresentada em vida do compositor e hoje tem apenas o estatuto de curiosidade. No século XIX, Orfeu ressurgiu sob a forma de ópera bufa pela mão de Jacques Offenbach, com um Orphée aux enfers (1858) em que se dança o can-can e em que Orfeu e Eurídice não só se detestam como ela não suporta ouvi-lo tocar violino.

No século XX Orfeu continuou a alimentar óperas, mas quase sempre de compositores menos conhecidos, como Malipiero, Milhaud, Krenek ou Casella. O pai da música concreta, Pierre Schaeffer, usou-o na sua única ópera, Orphée 53 (1953, em colaboração com Pierre Henry) e o mestre da música-a-metro, Philip Glass compôs (remastigou) um Orphée (1991) baseado no filme homónimo de Jean Cocteau. Entre os nomes cimeiros da música do século XX, há a registar o Orpheus (1978) de Henze e The mask of Orpheus (1986) de Birtwistle.

Porém, é mais recomendável que a iniciação ao mito de Orfeu na música se faça pela ordem cronológica, com L’Orfeo de Monteverdi, pois é aquela em que o poder sedutor da música é mais patente. Não se garante é que as melodias do cantor trácio sejam capazes de dissuadir o gato de afiar as unhas no sofá e o cão de roer sapatos.

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