Não era a primeira vez que o cidadão alemão abatido pela PSP na madrugada de quinta-feira forçava a entrada num dos quartos arrendados numa vivenda em Algés. Já noutra estadia em Portugal, precisamente no mesmo alojamento, este homem tinha tentado fazer o mesmo ao mesmo alvo: uma mulher por quem se apaixonou, mas que agora estaria acompanhada pelo namorado. Desta vez, porém, a Polícia suspeita de que estivesse alcoolizado e eventualmente sob efeito de drogas, dada a agressividade com que atuou ao fechar-se num quarto da casa munido de facas, com as quais feriu um dos homens que manteve sequestrado e um agente que respondeu ao pedido de socorro.
A chamada que chegou à PSP pela 4h51, apurou o Observador junto de fonte policial, já indiciava que o cidadão alemão estaria agitado — nesse pedido de intervenção da Polícia, relatava-se a presença de um homem “bêbedo e agressivo” que estava munido de facas dentro de um quarto e que mantinha pessoas sob sequestro. A polícia suspeita, aliás, de que, além de alcoolizado, o agressor possa ter consumido algum tipo de drogas. “Estaria dopado, dada a agressividade”, segundo uma fonte da investigação — uma perceção que só a autópsia poderá vir a validar.
A chamada telefónica para a esquadra foi feita por um dos hóspedes do número 59 da Rua de Olivença, uma vivenda branca de três pisos, que apesar de não estar registada como alojamento local tem vários quartos arrendados a hóspedes casuais. Dentro da casa, aquele momento foi de pânico. O alemão, um homem descrito como sendo alto e pesando mais de 100 quilos, munido de facas, gritava e estava visivelmente alterado. Um dos residentes que se cruzaram com o homem contou ao JN que, nesse momento, correu para o seu quarto e trancou-se no interior depois de ter sido ameaçado. Foi a forma que encontrou para conseguir evitar a ira do alemão — a PSP só chegaria ao local mais tarde.
Os gritos deste turista alemão — ainda não se sabe quantas vezes já tinha vindo a Portugal, mas não era a primeira vez que ali ficava alojado — foram ouvidos por uma vizinha, que tinha acordado pouco depois das 5h da madrugada. “Começo a ouvir muitos gritos e a voz de um homem que dizia: ‘P***, p***, p***!’. Percebia-se que havia ali algum sotaque, que o homem não era português. Pensei: ‘Vou ligar para a esquadra porque deve haver uma mulher em apuros’.” Mas, quando fez essa chamada, percebeu que não era a primeira a dar o alertar. Maria relatou que conseguia ouvir sinais de um distúrbio com grande violência, uma discussão, uma rixa qualquer. “E que ouvia um homem a gritar e, naquele momento, já estava a ouvir tiros”, contou Maria Bertilia Clímaco, 44 anos, ao Observador.
Do outro lado, a polícia mostrou já ter conhecimento do caso, dando-lhe apenas uma recomendação: “Não saia de casa, por favor, e mantenha-se afastada da janela e da varanda“. Por esta altura, já estavam junto à vivenda “os meios policiais de serviço, que se encontravam mais próximos do local da ocorrência reportada”, como reporta o comunicado da PSP enviado ao início da manhã desta quinta-feira. E Maria ainda ouviu parte da intervenção policial.
“Baixa a arma, baixa a arma.” Sequestrador feriu um dos moradores e um polícia, mas acabou abatido pela PSP
Quando os elementos da PSP chegaram, segundo o comunicado, foram confrontados “com um sequestro em curso, no interior da habitação, executado por um suspeito de grande porte físico e armado com duas armas brancas“. No interior da casa, numa rua íngreme, o agressor já tinha feito pelo menos um refém que apresentava já “vários ferimentos graves resultantes de cortes por arma branca, infligidos pelo sequestrador”, detalha ainda o comunicado. As circunstâncias em que o sequestro aconteceu e o número exato de pessoas foram feitas reféns ainda não são claros. Certo é que a pessoa que o cidadão alemão atingiu com a faca foi a mesma que trancou num dos quartos da vivenda, confirmou fonte da PJ ao Observador. Desconhece-se, para já, se esta vítima, assistida depois no Hospital São Francisco Xavier e já livre de perigo, seria o companheiro da hóspede por quem o alemão se apaixonou.
Durante a primeira intervenção, a polícia tentou por “várias” vezes “dissuadir o suspeito”. O filho de Maria Bertilia Clímaco, que também estava acordado àquela hora da madrugada, ouviu uma dessas tentativas: “Contou-me que ouviu a polícia a dizer: ‘Baixa a arma, baixa a arma‘.” Os agentes tentaram primeiro imobilizá-lo com gás pimenta, mas sem sucesso. Por esta hora, já tinham sido “ativados os meios especializados, nomeadamente negociadores policiais, a Unidade Especial de Polícia da PSP e os meios de socorro médico adequados”. Um dos polícias que se terá aproximado do agressor na tentativa de o demover também sofreu ferimentos, “provocados pelo agressor por corte com arma branca”, informou ainda a PSP no comunicado.
Sequestrador abatido a tiro pela polícia em Algés. Refém e agente ficaram feridos
A PSP acabaria então por recorrer ao último dos meios disponíveis: a arma de fogo. Maria não viu, mas garante ter ouvido vários tiros. Contou mais de uma dezena. “Foram mais de 10 tiros, não estou a exagerar. Eram imensos e muitos seguidos.” Já estava quase a pegar no sono quando ouviu “mais um tiro ou outro, mas depois as coisas começaram a acalmar”, conta. Da sua perceção, os primeiros tiros poderão ter sido para o ar, os restantes serão aqueles que o Comando da PSP descreveu em comunicado: dirigidos aos membros inferiores e no abdómen, e que levaram à morte do sequestrador.
“Por a ameaça e agressões continuarem em execução, os polícias recorreram a arma de fogo e atingiram o suspeito que, infelizmente e apesar dos primeiros socorros que lhe foram imediatamente prestados, faleceu, devido aos ferimentos sofridos”, informou a PSP no comunicado.
Quase às 7h da manhã, porém, já “estava tudo em silêncio”. Marília Bertilia Clímaco acordou e, perante a indicação que recebida da polícia, decidiu voltar a ligar para a esquadra para saber se o filho de 14 anos, que começava as aulas às 8h, podia sair de casa em segurança. “A situação já está controlada, podem sair. Os meus colegas já cercaram a zona, mas dão-lhe todas as indicações”, responderam-lhe do outro lado. Nesse momento, Maria decidiu ir à varanda. E o silêncio era até estranho “Já não havia gritos, já não havia tiros, nada. Mas quando eu olho, vejo um grupo enorme de pessoas em silêncio e de carros: polícia, INEM, bombeiros, ambulâncias, ruas cortadas”, descreve, sem que na altura soubesse do desfecho da intervenção policial.
Maria terá sido das poucas a aperceber-se do que se passou. O Observador falou com vários vizinhos que garantem nada terem ouvido. Só se aperceberam do aparato já depois das 8h, quando começaram a sair de casa como se um dia normal se tratasse. Foi o caso de Teresa Torres, que chegou ao restaurante que gere perto da vivenda onde tudo aconteceu às 8h55. Foi por esta altura que se apercebeu de que algo se passara. “Passei de carro, estava uma grande confusão, mas nem sabia o que tinha acontecido. Pensei que era mais um acidente de viação. O meu filho é que depois me disse que tinha havido ali um tiroteio”, relatou ao Observador a mulher de 58 anos.
PJ vai pedir antecedentes criminais do sequestrador à polícia alemã. IGAI abriu um inquérito à atuação da PSP
Mesmo entre os vizinhos mais próximos, poucos conhecem o homem alemão abatido pela polícia. “Conhecia-o de vista. Era um homem forte, encorpado. Às vezes, encomendava pizzas e via-o a ir ao portão buscá-las“, conta ao Observador, Amadeu Silva, 79 anos. O relato deste morador do bairro indicia que o cidadão alemão se encontraria há algum tempo ali instalado, ainda que não tenha sido possível apurar exatamente há quanto tempo se encontrava em Portugal.
Também da parte da Polícia — tanto da PSP, que esteve no local, como da PJ, que agora ficou com o caso —, são poucos os pormenores sobre este homem e o contexto em que o crime aconteceu. A Polícia Judiciária vai pedir agora um levantamento de todos os antecedentes criminais, o que poderá implicar um pedido às autoridades alemãs; vai também reconstituir os seus dias até ao momento em que acabou abatido pela polícia.
Paralelamente, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) anunciou a abertura de um inquérito para apurar as circunstâncias da sua morte, uma vez que teve a intervenção da polícia. Sempre que a polícia dispara ou neutraliza alguém em serviço é aberto um inquérito para apurar se a atuação foi proporcional.
“A Inspeção-Geral da Administração Interna abriu um inquérito visando apurar as circunstâncias em que elementos da Polícia de Segurança Pública efetuaram, no dia de hoje [12 de maio], em Algés, disparos com arma de fogo, dos quais resultaram a morte de um cidadão”, refere a nota do IGAI.
Ao longo do dia, na Rua da Olivença, o aparato policial, chamariz de curiosos e da própria comunicação social foi perdendo fôlego. Por volta das 11h30, ainda mais de uma dezena de polícias estavam junto à vivenda para preservar o local do crime e várias ruas em redor da vivenda estavam encerradas ao trânsito. Só perto das 15h o perímetro de segurança foi levantado, embora durante a tarde dois polícias tivessem permanecido à porta da vivenda. Mas mesmo no interior da casa, no piso inferior, houve quem não se apercebesse daqueles momentos de tensão que resultaram na morte do sequestrador e que, agora, serão alvo de uma investigação detalhada.