Casais que se formaram sem saberem os nomes verdadeiros um do outro, casais que foram juntos para a clandestinidade, casais que tiveram filhos mesmo sabendo que a qualquer momento podiam ser presos, torturados ou pior. Durante todo o período de ditadura em Portugal, a oposição antifascista foi perseguida, mas nem por isso os seus protagonistas deixaram de cultivar relações afetivas, muitas surpreendentemente felizes, outras cheias de dor. “Amores na Clandestinidade” é um espectáculo de teatro documental baseado em testemunhos reais e encenado no Museu do Aljube. Estreia-se esta sexta-feira online e poderá ser visto de forma gratuita até ao dia 21 de Abril, entre as 19h e as 22h.
Ao longo de mais de um ano, o português André Amálio e a checa Tereza Havlíčková, fundadores da companhia de teatro Hotel Europa, e eles próprios um casal, entrevistaram mais de duas dezenas de resistentes, incluindo nomes como Isabel do Carmo e Margarida Tengarrinha. A partir daí criaram um espectáculo em que não só contam essas histórias, mas também questionam o tipo de relação que surge em contextos de opressão. Depois de “Amores Pós-coloniais”, ”Amores na Clandestinidade” é a segunda peça da trilogia. “Muitas vezes tenta-se passar a ideia de que o amor não existiu nestes contextos”, explica o autor, “mas nunca passou pela cabeça destas pessoas abdicar dessa possibilidade de ser feliz.”
O colonialismo e a ditadura costumam ser encarados como questões políticas, económicas e sociais, e não a partir de um ponto de vista de relação. Porquê este interesse?
Existe o discurso do sofrimento, da luta, das prisões, das torturas. Quando lemos livros de história, parece que o amor não existe. É esse o engano. Como se o lado mais íntimo das pessoas não tivesse lugar. Aquilo que depois de conversar com as pessoas se percebe é que estas circunstâncias condicionam as vidas e as relações, no sentido de dificultarem que se amem, estejam juntas, tenham filhos, mas nenhuma desistiu desse seu direito de ser feliz. A intimidade é uma porta que se abre para olhar de outra forma questões como a PIDE, a prisão e a opressão. E que também nos mostra como estes resistentes eram pessoas como nós. Que precisavam de ter junto a si aqueles que amavam.
No espectáculo, aparecem em destaque as relações que se construíam entre duas pessoas que não se conheciam mas que se juntavam na clandestinidade como disfarce.
Tentámos abordar vários tipos de relação, desde os casais juntos na clandestinidade, a uma vingança, em que o homem denuncia a ex-namorada à PIDE, mas um tipo de relação e talvez a mais comum entre as pessoas que militavam no Partido Comunista era a de pessoas que iam para a clandestinidade juntas e fingiam que eram marido e mulher, mas nem se conheciam. A ideia era passar despercebido. Um casal evocava uma ideia de normalidade. Por isso é que muitas vezes também conseguiam manter com eles os filhos durante alguns anos. Só quando as crianças começavam a falar e passava a haver o risco de, sem querer, denunciarem as atividades dos pais é que eram muitas vezes entregues a outros membros da família. Este lado da separação é uma coisa ainda hoje muito dolorosa.
Como foi a reação das pessoas quando lhes pediram para falar destes temas?
Depois da pesquisa documental, chegámos à fala com cerca de 25, 26 pessoas. Houve muita gente que se recusou. Um casal, por exemplo, disse que não se importaria de falar sobre histórias de resistência, mas que não queria falar de histórias de amor. Que se sentia devassado. De forma geral, havia sempre algum desconforto, pelo menos de início. É um sintoma também do poder que o conservadorismo do Estado Novo tinha sobre a forma como as pessoas olhavam para as relações amorosas.
Como se o amor não fosse um tema suficientemente sério?
Existe esse preconceito e poderá ter existido na cabeça de algumas pessoas. Mas para outras pessoas até fazia parte da luta deles. Era mais uma das dificuldades da clandestinidade. Uma mulher estar grávida e não poder ser acompanhada por um médico. A luta destas pessoas não era apenas escrever jornais e fazer panfletos. Às mulheres muitas vezes não era dado um papel de ação na luta. Houve poucas mulheres que conseguiram romper com este paradigma. A Isabel do Carmo é um exemplo. Foi fundadora e dirigente das Brigadas Revolucionárias, uma organização em que talvez por isso também havia muitas mulheres.
Em algumas cenas do espectáculo nota-se um certo machismo. O homem acorda e pergunta à mulher o que há para o pequeno-almoço, por exemplo. Foi intencional?
Da mesma maneira que tentamos olhar para a ditadura fascista de forma crítica, fazemos o mesmo em relação à resistência. O papel da mulher é um ponto a questionar. Aquelas mulheres, na clandestinidade, passavam dias a fio sozinhas em casa – a dureza que deve ter sido. Outro exemplo é a dupla censura que a Isabel do Carmo refere. Por um lado, a censura da ditadura fascista. Por outro, a censura do Partido Comunista, que não revelava o que estava a acontecer no Bloco de Leste. A resistência não foi revolucionária a toda a linha.
Em todo este processo, o que é o surpreendeu mais?
O facto de, apesar de arriscarem ser presos ou torturados, nunca terem desistido de procurar o amor, de ser felizes.
Usavam esse termo, “felizes”? Ou isso já é uma elaboração?
O termo já é meu. Enquanto alguém que já nasceu no pós-25 de Abril, não esperava que alguém que tivesse ido para a clandestinidade lutar continuasse à procura do amor, a pensar em ter filhos. Que nunca olhasse para a sua circunstância como um entrave. Esperava encontrar alguns casos, raros, mas não, aconteceu em todos. Ao comentar isso com eles, diziam-me, “por que havia de assumir um papel de herói solitário?” “Por que havia de abdicar da possibilidade de ter alguma normalidade, dentro daquela anormalidade?”
Ao longo da peça, vai lançando várias perguntas. Uma delas é, como é possível as pessoas apaixonarem-se sem sequer se conhecerem, nem conhecerem os nomes verdadeiros. Encontrou uma resposta?
Aí, em particular, estou a falar da Isabel do Carmo e do Carlos Antunes, um casal quase mítico na resistência. Conheceram-se na clandestinidade, usavam nomes falsos, fora dali eram casados com outras pessoas, e apaixonaram-se. Formaram as Brigadas Revolucionárias e, depois do 25 de abril, um partido [Partido Revolucionário do Proletariado – PRP]. Na sociedade portuguesa, havia muito poucas pessoas a lutar de forma ativa contra a ditadura. Por isso, para elas, encontrarem parceiros intelectuais e de acção era uma coisa muito forte. A Margarida Tengarrinha fala disso. O primeiro marido era anti-fascista, mas nunca iria passar à ação. Já ela queria tomar parte na resistência e foi o que fez [acabaria por se casar com o pintor José Dias Coelho, assassinado pela PIDE quando estavam ambos na clandestinidade, e que inspirou a canção de José Afonso “A Morte Saiu à Rua”]. Há um lado de compreensão e aceitação uns dos outros. Estas relações também seriam uma experiência de exercício de liberdade.
E experiências negativas? Não se corre o risco de uma idealização destas relações na clandestinidade?
Há um caso do homem abandonado pela namorada e que, não sendo capaz de aceitar isso, vai denunciá-la à PIDE. Um caso de machismo. Outro lado importante é o dos filhos. Sentirem-se abandonados, preteridos. É difícil uma pessoa reconciliar-se com isso. Muitos têm dificuldade em falar sobre o assunto. Alguns, já mais crescidos, voltavam à família, ainda na clandestinidade. Depois, havia caso de pessoas enviadas para escolas em Moscovo. Chegavam a ficar dez anos separados dos filhos. Os sacrifícios que muitos fizeram por esta luta são avassaladores.
A dada altura, diz que se fala demasiado em Salazar. Porquê?
Continuamos a dizer coisas que não correspondem à verdade histórica: que tivemos uma ditadura “português suave”, que Salazar foi um ditador brando, que as coisas nunca foram assim tão más. Continuamos a branquear a história. É importante dar um nome às coisas. Salazar foi um criminoso. Foi responsável pela criação de campos de concentração, pelo exercício de tortura, por assassinatos políticos. Continuamos a usar a propaganda fascista para descrever um regime de 48 anos e quase 500 anos de colonialismo, como se fossemos crianças a precisar de acreditar em contos de fadas. Para mim, torna-se problemático quando uma sociedade não consegue olhar-se nos olhos.
Já passaram quase 50 anos do 25 de Abril. Se se fala demasiado de Salazar, que temas é que ainda temos de explorar?
Ainda há muita investigação histórica por fazer. Por exemplo, os campos de concentração espalhados pelo império colonial. É importante abrir estas gavetas e mantê-las abertas. É preciso investigar os esforços de resistência. A nós, na companhia Hotel Europa, interessa-nos dar visibilidade às pessoas que resistiram. De forma a que os espectadores queiram ir tentar saber mais. Portugal não foi só o país do fascismo, foi também o país dos resistentes.
A dada altura usa a expressão “agentes secretos amadores”. O que queria dizer com isto?
Ao ouvir os relatos em que contavam como pintavam o cabelo e tentavam mudar a aparência, várias vezes tive a sensação de que eram pessoas que iam improvisando à medida que precisavam. Muitos deles sem qualquer tipo de treino. A imagem do agente secreto que temos na cabeça é a do James Bond. Estes agentes na clandestinidade não tinham nada a ver. Valia-lhes a imensa vontade de mudar as coisas.
Que papel desempenharam estes amores na história do 25 de abril?
Pensamos muitas vezes no 25 de abril como um ato isolado. Como um único dia. Esquecemo-nos que para ali chegarmos houve um caminho trilhado não só em Portugal, mas também por pessoas no exílio e nas ex-colónias. A Revolução é também ela uma prova de amor. Há uma senhora com quem falámos cuja família durante três gerações abdicou de tudo para tentar derrubar um regime. Um esforço feito por todos nós que aqui estamos e não sabemos o que é viver em ditadura. E essa força foram buscá-la provavelmente aos amores que tinham à sua volta.
Há mais amores no horizonte? A série vai continuar?
Estamos a preparar um espectáculo chamado “Amores de Leste” que vai olhar para as pessoas que em Portugal estavam a lutar contra a ditadura e que iam para o Bloco de Leste para estudar e trabalhar. Que amores surgiam nesse período? O que aconteceu a esses amores? Quem ficou num lado e noutro? Famílias destroçadas. Estreia em Novembro na Alemanha. Em 2022 vem para Portugal, para a Culturgest, e depois vai para França.