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A advogada e jornalista Tania Crasnianski, nascida em França de mãe alemã e pai franco-russo, tem por avô materno um oficial da Luftwaffe, o que lhe terá conferido alguma sensibilidade adicional para tratar, no livro Os Filhos dos Nazis, o delicado assunto dos descendentes de dirigentes nazis – crianças que, durante a guerra, eram demasiado novas para estar a par das atrocidades ordenadas ou executadas pelos pais ou para se aperceberem da natureza do regime, e que só depois foram confrontadas com a realidade e, no caso daquelas cujos pais foram julgados em Nuremberga, com a dissecação detalhada e pública dos seus terríveis feitos.

Em vez de uma perspectiva abrangente, Crasnianski escolheu concentrar-se nos filhos de Heinrich Himmler (Reichsführer SS), Hermann Göring (comandante-chefe da Luftwaffe, presidente do Reichstag, vice-chanceler), Rudolf Hess (que foi, até 1941, o braço direito de Hitler), Hans Frank (autoridade jurídica do III Reich, advogado de Hitler e, na qualidade de Governador-Geral da Polónia, supervisor do extermínio de judeus nesse território), Martin Bormann (braço direito de Hitler a partir de 1941), Rudolf Höss (comandante do campo de Auschwitz-Birkenau), Albert Speer (arquitecto do regime e Ministro do Armamento) e Josef Mengele (médico e “anjo da morte” do campo de Auschwitz-Birkenau).

O livro de Tania Crasnianski está editado em Portugal pela Guerra & Paz

Cada capítulo abre com um episódio semi-romanceado, que servirá, supostamente, para seduzir o leitor para a parte factual, mas que nada acrescenta à compreensão das figuras envolvidas e, porque o talento ficcional de Crasnianski é limitado, acaba por resultar num floreado frívolo, pouco adequado à seriedade do assunto. A abordagem é um pouco superficial, o que, juntamente com a ausência de um índice remissivo, remete o livro mais para o domínio da divulgação light do que da obra de referência. Mas nem por isso deixa de ser merecedor de reflexão.

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Hitler, Eva Braun e Gerda Bormann com as crianças dos casais Bormann e Speer, Dezembro de 1939; as crianças tratavam Hitler por “Onk” (tio)

Os ausentes

Nas figuras de topo do III Reich há duas ausências: Adolf Hitler, que não teve descendência, apesar das suas exortações a que os nazis gerassem proles numerosas (mas que imbróglio seria se a tivesse tido e se ela tivesse sobrevivido à guerra!); e Joseph Goebbels, que teve, da sua esposa Magda, seis rebentos, a que foram atribuídos (certamente não por coincidência) nomes começados por “H” – Helga (n. 1932), Hildegard (Hilde) (n. 1934), Helmuth (n. 1935), Holdine (Holde) (n. 19379, Hedwig (Hedda) (n. 1938) e Heidrun (Heide) (n. 1940) – mas que tiveram uma vida curta.

Joseph e Magda Goebbels com os seus filhos, em 1942; o rapaz com uniforme da Luftwaffe atrás é Harald Quandt (n. 1921), filho do casamento anterior de Magda com Günter Quandt

No dia 1 de Maio de 1945, no bunker do Führer, em Berlim, dando cumprimento às determinações dos pais, as crianças dos Goebbels foram injectadas com morfina, de forma a adormecê-las antes de lhes serem administradas cápsulas de cianeto. Esta execução (não há maneira de empregar substantivo menos cru) dos próprios filhos foi vista pelo casal Goebbels (que a seguir poria também termo à sua vida) como a única forma de poupá-los a eventuais sofrimentos, face às histórias de horror que precediam o avanço do Exército Vermelho – ou talvez os Goebbels fossem tão fanáticos e obtusos que não pudessem conceber que o mundo continuaria após o fim do III Reich. Na verdade, os Goebbels nada fizeram para, atempadamente, enviar os seus filhos para fora de Berlim e rejeitaram todas as propostas de quem se ofereceu para fazê-lo, o que faz deste um dos mais sinistros episódios do crepúsculo do III Reich

Hitler com Helga, a filha mais velha dos Goebbels, 1936

Mesmo entre a descendência das oito figuras seleccionadas, Crasnianski faz escolhas: por exemplo, no caso de Himmler, centra-se na filha legítima, Gudrun (n. 1929), nascida do casamento com Margarete, e apenas menciona en passant Helge (n. 1942) e Nanette Dorothea (n. 1944), os filhos que teve da amante e ex-secretária Hedwig Potthast (1912-1997) e de quem se sabe muito pouco. No caso de Martin Bormann centra-se no filho mais velho, Martin Adolf, apesar de este ter tido nove irmãos (Ilse, Ehengard, Irmgard, Rudolf, Heinrich, Eva, Gerda, Fritz e Volker). Niklas (n. 1939) é o único filho de Hans Frank que é abordado, embora tivesse cinco irmãos (Sigrid, Norman, Brigitte e Michael).

Sendo o interesse principal da autora a maneira como lidaram os filhos com o fardo da monstruosa culpa paterna, compreende-se que as escolhas recaiam sobre os filhos que tiveram vida pública mais activa e que se destacaram por renegarem ou até condenarem a figura paterna ou, pelo contrário, por se empenharem activamente no branqueamento do seu passado, e que Crasnianski deixe de lado aqueles – a maioria – que optaram por refugiar-se no anonimato e tentar enterrar o passado, levando uma vida o mais discreta possível. Nem sempre foi tarefa fácil, pois quando os seus empregadores, clientes, senhorios, vizinhos ou colegas descobriam a sua identidade, os rostos e as portas fechavam-se, os convites eram retirados, o despejo ou o despedimento chegavam, as oportunidades de emprego esfumavam-se. Em 1955, um hóspede judeu da pensão em que Gudrun Himmler era recepcionista argumentou: “Como vou deixar-me atender por esta rapariga, quando a minha mulher foi queimada num forno em Auschwitz?”.

Hitler com as famílias Bormann e Speer e secretárias e empregadas, em 1943

Os negacionistas

É verdade que Gudrun Himmler foi dos “filhos de nazis” que não optaram pela discrição: manteve uma recordação idealizada do “pai amoroso e afectuoso”, “não consegue imaginar a sua participação activa numa das piores atrocidades da História” e continua, ainda hoje, “profundamente persuadida de que um dia se reunirão elementos suficientes para o ilibar”. Mas a atitude de Gudrun Himmler não pode apenas ser vista como o resultado da devoção cega por um pai de quem só conheceu o lado carinhoso. Gudrun cedo manifestou inclinação por movimentos de extrema-direita, tendo visitado Londres em 1955 para um encontro com Oswald Mosley (fundador da British Union of Fascists, em 1932), nos anos 60 casou-se com o jornalista Wulf Dieter Burwitz, de públicas inclinações nazis, é apoiante da Stille Hilfe, uma organização cuja missão é auxiliar ex-membros das SS a braços com a justiça, e tem assumido publicamente a defesa de nazis acusados de crimes de guerra. Gudrun, cujo apartamento em Munique “é um verdadeiro museu à glória do pai” (Crasnianski), defende que o pai não se suicidou com uma cápsula de cianeto, foi antes executado (como se os Aliados não tivessem todo o interesse em dispor de um Himmler vivo que fosse alvo de um julgamento exemplar e de nada lhes servisse um Himmler morto).

Curiosamente, a culpa que a filha rejeita em absoluto, assumiu-a a sobrinha-neta Katrin Himmler (n. 1967), filha de Ernst, o irmão mais novo de Himmler, que, apesar da sua vinculação remota, confessa “ser muitas vezes invadida por um sentimento opressivo e inexplicável de culpa”. Katrin, escreveu uma biografia dos irmãos Himmler – Heinrich, Gebhard e Ernst – em que “assume a culpa familiar” (Crasnianski) e casou com um descendente de uma família judia do gueto de Varsóvia, fazendo, porém, questão de manter o seu apelido de solteira, não por se orgulhar dele, depreende-se, mas para ter presente a sua terrível herança familiar (digamos que é um nome que Katrin faz questão de manter preso a si como um cilício).

Tal como Gudrun Himmler, também Edda Göring e Wolf Rüdiger Hess “dedicaram a sua vida à defesa [dos seus progenitores]”, não hesitando, para tal, em reescrever a história. Crasnianski menciona que Hess Jr. “foi multado em 2002 por ter declarado na Internet que não existiam câmaras de gás em Dachau” e que “estas só teriam sido instaladas, após a guerra, pelos americanos para serem mostradas aos turistas”. Teria sido oportuno que Crasnianski prestasse esclarecimentos adicionais, uma vez que o gaseamento em Dachau tem sido alvo de acesa controvérsia. Com efeito, existe no campo de concentração de Dachau uma estrutura integrada no edifício do crematório que, após a II Guerra Mundial, terá sido apresentada aos visitantes como sendo uma câmara de gás e um “centro potencial de assassínio em massa”.

Prisioneiros exemplificam procedimentos no crematório do campo de Dachau, em 1945, após a libertação

Há que notar que Dachau não era um campo de extermínio mas um campo de prisioneiros e, ainda que muitos destes tenham sucumbido aos maus tratos ou sido deliberadamente eliminados, a tiro ou à pancada (ao todo, 31.951, segundo as contas da administração do campo, mas é provável que muitas mortes não tenham sido registadas), não há indícios de que no campo tenha operado uma câmara de gás. Quando a administração de Dachau decidia eliminar prisioneiros em massa, por estarem demasiado fracos ou doentes, remetia-os para outros locais, como o Centro de Eutanásia de Hartheim, perto de Linz, na Áustria (onde foram também eliminados prisioneiros dos campos de concentração de Mauthausen e Ravensbrück). Há quem sugira que a câmara de gás de Dachau era antes uma câmara de desinfecção e que as tropas americanas que libertaram o campo interpretaram aquilo com que se depararam influenciadas pelas notícias de descoberta de câmaras de gás nos campos de extermínio e centros de eutanásia.

Mesmo que a câmara de gás de Dachau nunca tenha funcionado como tal, ou nem fosse uma câmara de gás, isso não faz de Dachau um campo de férias nem ameniza a desumanidade do campo de Dachau nem do sistema concentracionário do III Reich, nem a culpa dos que o conceberam e operaram – porém, os neo-nazis agarram-se tenazmente a equívocos como este para se lançarem nas suas cruzadas revisionistas.

Os acusadores

Alguns dos filhos de nazis eminentes tomaram posição oposta à de Gudrun Himmler, Edda Göring e Wolf Rüdiger Hess e consagraram muita da sua energia a confrontar a memória dos progenitores. É o caso de Niklas Frank, que, no livro O pai: Um ajuste de contas (Der Vater: Eine Abrechnung, de 1987), um condensado de décadas de pesquisa sobre o seu pai, desfere ataques tão ferozes contra Hans Frank, que suscitaram reacções da sua família e de outros filhos de nazis. Em 2005 Niklas Frank publicaria um segundo livro, em que escrutinou implacavelmente a vida e personalidade da mãe, a “Rainha da Polónia”. A obsessão de Niklas Frank com os seus progenitores assume aspectos malsãos e abunda em excessos, o que mostra quão difícil é lidar de forma equilibrada com uma herança tão monstruosa.

Hans Frank no seu gabinete no castelo de Wawel, em Cracóvia, quando era Governador-Geral da Polónia

Rolf Mengele, filho de Josef, o “anjo da morte” de Auschwitz, faz parte dos filhos “acusadores” que melhor geriram o seu tenebroso legado. Os pais da maior parte dos filhos deste livro saíram de cena após o término da guerra, ou porque se suicidaram ou porque foram executados, pelo que os filhos ficaram sem alguém a quem pedir contas. Dos oito, apenas três sobreviveram: Rudolf Hess, condenado a prisão perpétua, Albert Speer, que foi suficientemente ardiloso para se escapar com apenas 20 anos de prisão, e Josef Mengele, que fugiu para a América do Sul, onde viveu pacatamente, iludindo os esforços dos “caçadores de nazis”, até sucumbir em 1979 a um ataque cardíaco, quando nadava no mar, numa estância balnear brasileira.

Rolf encontrou-se uma primeira vez com o pai em 1956, quando tinha 12 anos, por ocasião de uma visita do pai à Suíça – mas este foi-lhe apresentado como o “tio Fritz” e só aos 16 anos Rolf soube da sua verdadeira identidade. Em 1977, Rolf foi ao Brasil encontrar-se com o pai, mas sem guardar dele uma imagem afectuosa análoga à de Gudrun Himmler ou Edda Göring e estando consciente das atrocidades por ele cometidas. Não revelaria o paradeiro do pai, mas livrar-se-ia do seu nome, adoptando o da mulher, por entender que “os seus três filhos merecem crescer sem ter de responder pelos actos do seu avô […] Segundo Rolf, o único interesse desta herança é ela obrigar a pensar na essência da vida, no conflito entre o bem e o mal”.

Josef Mengele, foto tirada em Buenos Aires, em 1956

Deve registar-se que, no capítulo sobre Rolf Mengele, Crasnianski gasta vários parágrafos a descrever as “experiências” que Josef Mengele empreendeu em Auschwitz com o intuito de “demonstrar as suas teorias raciais”, realçando a sua obsessão com gémeos, que Mengele imaginava encerrarem o segredo para a erradicação dos genes indesejáveis. Porém, em momento algum a autora denuncia que os estudos antropológicos e a pesquisa sobre hereditariedade de Mengele nada tinham de científico e mais não eram do que uma conjugação sinistra de preconceito, charlatanice, arbitrariedade, malevolência e estultícia. É claro que se as experiências obedecessem a um plano racional e conduzissem a um real aumento do conhecimento não seriam menos desumanas e condenáveis, mas seria bom deixar claro que Mengele não era um génio maligno – era um imbecil maligno e um exemplo paradigmático de como o regime nazi favoreceu a ascensão de medíocres e homens sem qualidades a altos cargos.

Crianças judias em Auschwitz, após a libertação do campo pelo Exército Vermelho, em 1945. As duas no extremo direito, com gorros, são as gémeas Miriam e Eva Mozes; os gémeos eram poupados ao extermínio imediato, de forma a serem usados como cobaias na “pesquisa” de Mengele sobre hereditariedade

Os cordeiros inocentes e os animais ferozes

O que a leitura de Os filhos dos nazis deixa evidente é que as figuras excepcionais (pelas piores razões) e sobre as quais gostaríamos de saber mais são os pais e não os filhos. Crasnianski acaba por admiti-lo, ao gastar muito mais espaço com os primeiros do que os segundos.

E bem mais interessante e revelador da natureza humana do que a forma como os filhos arcaram com os actos tremendos das figuras paternas é a forma como os pais não se pouparam a esforços para os justificar. Rudolf Höss explicou a sua actuação como resultando das instruções que Himmler recebera de Hitler: “O Führer deu ordem de proceder à Solução Final do problema judaico. Nós, os SS, fomos encarregados de executar a ordem […] Não havia que reflectir, mas executar a ordem. O meu horizonte não era suficientemente vasto para me permitir formar um juízo pessoal sobre a necessidade de exterminar todos os judeus”. Höss apresentava-se como uma mera peça na engrenagem, destituída de conhecimento e arbítrio: “Não nos cabe a nós pensar […] Foi determinado que os judeus eram responsáveis por tudo, nunca ouvi nada de diferente disso […] O que nos cabia era proteger a Alemanha”.

Mengele em conversa com o filho, em 1977, escudar-se-ia também com a cadeia de comando: “Apenas cumpria o seu dever […] obedecia a ordens para poder sobreviver”. Na sua autobiografia, Albert Speer também lavou as mãos: “Eu via-me como o arquitecto de Hitler. Os acontecimentos da vida política não me diziam respeito. Eu apenas organizava cenários impressionantes”.

A “Catedral de Luz” (Lichtdom): um dos “cenários impressionantes” concebidos por Albert Speer para os congressos do Partido Nazi em Nuremberga, Setembro de 1936. Directa ou indirectamente, Speer foi também o responsável por cenários igualmente impressionantes e muito mais macabros

A dar-se crédito a esta gente, os 12 anos de atrocidades do III Reich e as dezenas de milhões de mortos da II Guerra Mundial deveram-se a um único culpado: Hitler. Todos os outros foram apenas figurantes ou actores secundaríssimos. Afinal de contas, na lapidar definição de Martin Bormann, “o nacional-socialismo é a vontade do Führer!”.

E uma vez que se viam como inocentes, daí a sentirem-se injustiçados ia só um passo: Mengele queixou-se ao filho, em 1977, de que “não existe justiça. O que há é pessoas que pretendem vingar-se”. Höss, na sua autobiografia, tem este extraordinário momento de auto-comiseração: “Que o grande público me continue a considerar como um animal feroz, um sádico cruel, o assassino de milhões de seres humanos. As massas não poderiam ter outra ideia sobre o antigo comandante de Auschwitz. As massas nunca poderão compreender que eu também tenho um coração”.

Três homens, todos com coração, presume-se: Josef Mengele, Rudolf Höss e Josef Kramer, encarregado do gaseamento em Auschwitz-Birkenau e depois nomeado comandante do campo de concentração de Bergen-Belsen

Ainda mais inacreditável é a última carta que Höss dirigiu à família, em de Abril de 1947, antes de ser enforcado no campo de que fora comandante. Nela, o homem inocente, a quem não cabia pensar nem era capaz de “formar um juízo pessoal”, deixa este conselho ao filho mais velho, Klaus: “Deves traçar o teu próprio caminho na vida. Tens boas capacidades. Usa-as. Mantém o teu bom coração. Tornando-te num homem, deixa-te guiar pelo calor e a humanidade. Aprende a pensar e a julgar por ti próprio, em toda a consciência. Não aceites nada sem espírito crítico, ou como se fosse a verdade absoluta”.

Estas palavras sintetizam o drama essencial da Humanidade, da sua sombria e sangrenta história, de todos os seus conflitos, dos mesquinhos e domésticos, aos cataclísmicos e planetários: aos seus próprios olhos, nenhum canalha é capaz de ver-se como tal.