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Zoltan Balogh/EPA

Zoltan Balogh/EPA

"A situação foi sempre desesperada." Vítor Duarte foi o primeiro médico a morrer com Covid-19 em Portugal

Dois dias depois de enrouquecer foi internado nos Cuidados Intensivos e ventilado de imediato. Vítor Duarte trabalhava no Curry Cabral e era médico de família no privado. Tinha 68 anos e era saudável.

Começou a ficar rouco há pouco mais de sete semanas, na quarta-feira, dia 29 de abril. Dois dias depois, além da rouquidão, já tinha outros sintomas: cansaço e falta de ar. Médico de família, Vítor Duarte não quis esperar mais. Seria meio-dia, mais coisa menos coisa, quando chegou ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa, onde trabalhava, para fazer o teste à Covid-19.

Antes do final da tarde daquele 1.º de Maio, seria internado nos Cuidados Intensivos do Hospital de São José, onde se dirigiu depois de o seu estado de saúde se ter agravado. Foi imediatamente ventilado. Manteve-se assim, em estado considerado muito grave, até que esta quinta-feira, dia 18 de junho, acabou por morrer, vítima do novo coronavírus. Tinha 68 anos e não tinha quaisquer outros fatores de risco associados. Foi o primeiro médico a morrer em Portugal com Covid-19. Era casado, tinha dois filhos — um deles médico — e três netos.

A situação foi sempre desesperada, desde o internamento. Ele entrou a morrer“, conta ao Observador Júlio Veloso, gastroenterologista e hepatologista que trabalhou com Vítor Duarte durante mais de 20 anos.

A última vez que esteve com o amigo foi no dia 23 de abril, cerca de uma semana antes do internamento. “Nessa quinta-feira estivemos a fazer exames e eu achei-o caído. Estávamos a fazer um relatório e perguntei-lhe o que se passava e se ele estava com algum problema. Respondeu-me: ‘Não, mas já viste o que este vírus nos foi fazer? Antes fazíamos tantos exames e até agora só fizemos um’. Ele estava triste, porque a resposta que estávamos a dar não era suficiente para as necessidades dos doentes. Achei que ele não estava bem, estava em baixo psicologicamente. Não era o Vítor.”

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Na terça-feira da semana seguinte ligou ao amigo e “estava tudo bem”. Só no dia seguinte o seu estado de saúde começou a degradar-se. “Tínhamos uma relação muito próxima, trabalhávamos juntos há mais de 20 anos. O Vítor, além de ser um ser humano encantador, tinha uma disponibilidade a toda a prova“, diz o médico, emocionado . “Não consigo ultrapassar isto.”

"Tínhamos uma relação muito próxima, trabalhávamos juntos há mais de 20 anos. O Vítor, além de ser um ser humano encantador, tinha uma disponibilidade a toda a prova"
Júlio Veloso, gastroenterologista e hepatologista no Hospital Curry Cabral

Júlio Veloso conheceu o colega quando estavam ambos a formar-se no Hospital de Santa Maria, mais concretamente quando Vítor Duarte passou pelo serviço de gastroenterologia enquanto “jovem interno de Policlínica”. “Antes de ser clínico geral e familiar, naquela altura tinha de se fazer um estágio de Policlínica. Acabávamos o curso e tínhamos de passar dois anos em vários serviços”, recorda o gastroenterologista do Curry Cabral.

Foi nessa altura que Vítor Duarte se familiarizou com uma técnica que viria a exercer durante toda a sua carreira: a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), um exame de gastroenterologia de intervenção que, através de endoscopia, permite o acesso às vias biliares.

“O Vítor acabou por ir para o serviço, dirigido por um génio da gastroenterologia, o professor José Manuel Pinto Correia, quando o professor Ginestal da Cruz começou com esta técnica e ele começou a ajudá-lo — era o seu colaborador eleito. Eu também me formei nesta área com o professor Ginestal e fundamentalmente com o doutor Nuno Grima. A relação com o Vítor foi-se estreitando”.

De acordo com o gastroenterologista, foi Ginestal da Cruz quem iniciou a CPRE em Portugal e que formou uma equipa composta por Nuno Grima, António Pinto Correia e pelo próprio Júlio Veloso. Como “elemento comum”, havia Vítor Duarte. “Ele esteve sempre a trabalhar connosco.”

“É uma perda irreparável”

Enquanto médico de família, Vítor Duarte chegou a trabalhar num centro de saúde, no início da sua carreira, mas depois passou a exercer exclusivamente em dois consultórios, um em Lisboa e outro em Loures. “A carreira de Medicina Geral e Familiar é uma carreira de frustrações e ele acabou por abandonar a função pública e ficou como médico de família no privado”, contextualiza o colega e amigo.

Ao mesmo tempo, continuou a fazer exames de CPRE em várias unidades. Esteve no Hospital de Santa Maria, no Instituto de Urologia, no British Hospital e na Clínica de Santo António, na Amadora. Até que em 2005 chegou finalmente ao Hospital Curry Cabral, onde continuava a trabalhar. “Ele manteve sempre duas carreiras desde o início.

“Foi sob minha proposta que o contratámos”, diz Eduardo Barroso ao Observador. “Eu tinha o poder de fazer a administração perceber que este homem era fundamental e, como ele era pago com dinheiros da transplantação, nós tínhamos essa autonomia. Era também para isso que serviam os dinheiros que o Estado dava à transplantação, para podermos ter pessoas como ele a trabalhar connosco.”

O antigo diretor do Centro Hepato-Bilio-Pancreático e de Transplantação (CHBPT), do Hospital Curry Cabral, recorda ainda a “dupla excecional” e “fundamental” que Júlio Veloso e Vítor Duarte formavam, tendo realizado milhares de procedimentos juntos. “Nestes exames são precisas duas pessoas e o doutor Júlio gostava de fazer exames com ele, em vez de com um enfermeiro especializado. Era o braço direito deste gastroenterologista para fazer os exames, que eram realizados quer em doentes transplantados, quer em doentes com outras patologias das vias biliares e do fígado. Foram fundamentais para o sucesso do centro. O doutor Vítor era um homem excecional e um elemento decisivo do serviço”, elogia Eduardo Barroso.

Apesar de sermos só dois, demos sempre resposta ao fim de semana e à noite. As CPRE têm de responder a verdadeiras emergências. Não é a mesma coisa fazer uma CPRE à noite ou às oito da manhã do dia seguinte. A diferença pode ser entre a vida e a morte”, conta Júlio Veloso, indicando que atualmente a equipa era composta por si, por Vítor Duarte e Ricardo Gorjão.

Nesta foto de equipa aparecem Vitor Duarte (em primeiro plano, de barba preta) acompanhado por António Pinto Correia, Nuno Grima e Ginestal da Cruz

“Ainda que não tivéssemos compensação monetária, nunca deixámos de dar resposta e isso junta muito as pessoas. O Vítor estava sempre disponível, para além da sua amabilidade e empatia. Isto é um choque muito grande. Em termos de experiência, não havia ninguém em Portugal como ele. É uma perda irreparável.”

Júlio Veloso recorda o convívio diário com o amigo, ao longo de 15 anos no Curry Cabral, a sua simplicidade e bondade, destacando ainda a relação que Vítor Duarte tinha com os seus doentes. “Se alguém quiser fazer um modelo de médico de família, copiem a relação dele com os doentes, porque vão ter grande sucesso de certeza.”

“Quando temos a vida de um doente nas mãos, isso pede muito da nossa vontade. Às vezes, estávamos os dois ali a lutar e, quando conseguíamos, eu costumava dar-lhe uma palmada nas costas”, conta o gastroenterologista. “Falávamos de muita coisa, chorámos no ombro um do outro muita vezes. Celebrámos muitas vitórias.

"Ajudou imensa gente, era uma pessoa muito, muito humana. Tinha 68 anos, podia estar reformado, mas continuava a trabalhar"
Joana Gonçalves, 35 anos, filha de uma paciente

De acordo com Júlio Veloso, o amigo era saudável, pelo que nada fazia prever este desfecho: “O único fator de risco era a idade, era uma pessoa de 68 anos muito bem constituída, não era obeso, não tomava um comprimido, vivia no campo, comia comida biológica. Se havia algum colega que eu pudesse dizer que passava por uma coisa destas sem acontecer nada, era o Vítor”.

Já Eduardo Barroso espera que o serviço a que Vítor Duarte dedicou tantos anos da sua vida lhe preste uma homenagem. “Espero que, a curto prazo, o Centro Hepato-bilio-pancreático e de Transplantação lhe possa prestar uma homenagem muito sincera e muito querida, porque não é só as capacidades técnicas, são as qualidades humanas que ele tinha.”

O médico que estava sempre disponível para os vizinhos do Saldanha

Na zona do Saldanha, onde há anos mantinha consultório privado, no cruzamento da Avenida 5 de Outubro com a João Crisóstomo, toda a gente conhecia Vítor Duarte, o médico sempre pronto a ajudar, sempre sem cobrar nada e sem pedir o que quer que fosse em troca. “Fazia muitas consultas informais, não negava ajuda a quem o procurava a pedir aconselhamento ou mesmo receitas, e não cobrava esse tipo de serviços, aliás nem era preciso marcar na agenda. Ajudou imensa gente, era uma pessoa muito, muito humana. Tinha 68 anos, podia estar reformado, mas continuava a trabalhar, mesmo agora, no combate à Covid. Acho que isso diz muito do entendimento que ele tinha da medicina e do seu humanismo”, diz ao Observador Joana Gonçalves, 35 anos, filha de uma paciente.

Ele salvou a vida à minha mãe, basicamente ela só está cá porque ele existiu na vida dela”, conta, ainda em choque, escassas horas depois de ter falado com a mãe e de confirmar os seus piores receios — o primeiro médico morto com Covid-19 em Portugal era mesmo o “doutor Vítor”. Estava explicada a razão porque o seu telemóvel há mais de duas semanas não dava sinal.

O doutor Vítor era um homem excecional e um elemento decisivo do serviço”, elogia Eduardo Barroso

Paulo Spranger /Global Imagens

Vítor Duarte conhecia Hermínia, a mãe de Joana, de 54 anos, há 35. “E a mim conhecia-me literalmente desde que nasci. A primeira vez que se cruzaram foi no Hospital de Santa Maria, a minha mãe tinha sido operada, para retirar um tumor benigno de um joelho e eu, que só tinha três meses, fui internada com ela. Ele não era médico dela, mas de outra senhora que estava na mesma enfermaria. Só perceberam que trabalhavam na mesma zona depois, ele era cliente da loja, uma papelaria, com tipografia, onde a minha mãe trabalhava.”

Mais do que um médico, garante, Vítor Duarte era um amigo, sempre disponível e preocupado com quem o consultava, formal ou informalmente. Foi por isso que em 2019, depois de ser internada de urgência no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, na véspera do domingo de Páscoa, e de descobrir que tinha uma pancreatite aguda, Hermínia lhe pediu ajuda.

“Foi um susto enorme, a minha mãe tinha pedras na vesícula que saltaram para o pâncreas. No hospital disseram-lhe logo que 9 em cada 10 pessoas na situação dela não sobrevivem. Ia precisar de retirar a vesícula mas foi posta em fila de espera, só tinha consulta para fazer os primeiros exames em janeiro deste ano. Quando mostrou as análises ao doutor Vítor ele disse-lhe que os valores eram horríveis e que ela tinha de ir urgentemente à médica de família e de fazer uma ecografia”, recorda Joana.

"Ele salvou a vida à minha mãe, basicamente ela só está cá porque ele existiu na vida dela"
Joana Gonçalves, 35 anos, filha de uma paciente

Hermínia soube logo, pelo médico que fez o exame, que a situação era urgente, e que a vesícula podia rebentar a qualquer momento. Vítor Duarte, quando viu as imagens, disse-lhe o resto: “Tu vais morrer, não podes esperar até janeiro, isto é uma bomba que tu tens aqui, é muito pior do que qualquer tumor!”.

A seguir, revela Joana Gonçalves, com muitos pruridos mas ainda maior gratidão, esperou que houvesse uma desistência entre os doentes em lista de espera e chamou Hermínia para ser operada. “Há um conflito muito grande entre a burocracia e o dever médico. Ele era completamente desinteressado, nós não somos da família dele, não lhe somos nada, só fez o que fez porque era uma pessoa extraordinária, não era um médico comum.”

“No dia 22 de novembro a minha mãe foi operada no Hospital Curry Cabral, é por isso que a tenho aqui hoje”, resume. “O doutor Vítor era uma pessoa muito discreta e altruísta, daquelas que nunca têm o reconhecimento em vida. E não é só a minha mãe que diz isto, todas as pessoas que o conheciam dizem o mesmo. Morreu a fazer o bem aos outros.”

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