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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"A única coisa com a qual não sou capaz de conviver é com falta de profissionalismo". Fernando Santos nos "Imperdíveis"

Não gosta do "ego", mas gosta do "eu". Põe a humildade acima de todas as virtudes. Tem Deus como treinador. As chaves de Fernando Santos no futebol e na vida, que detesta perder.

Depois de mais uma conquista — a Liga das Nações — e quando se celebram três anos desde a histórica vitória no Euro’2016, Fernando Santos esteve no “Imperdíveis”, o programa de Laurinda Alves na Rádio Observador, transmitido todos os domingos, às 11h00. O selecionador falou da infância, do tempo em que teve de estudar para o pai o deixar ser jogador do Benfica, de como liderou a equipa do hotel Palácio e depois usou essa experiência quando se tornou treinador.

A entrevista fala da forma como se relaciona com os jogadores, de como lida mal com as derrotas, do papel de Ronaldo e Pepe e do futuro de João Félix, mas também de toda a estrutura que o ajuda. Mas também da sua tão pessoal forma de viver a religião e do peso de Deus a partir de um determinado momento da sua vida.

[O vídeo da entrevista de Fernando Santos a Laurinda Alves:]

Fernando, gostava de o apresentar, não como o Selecionador Nacional, mas por aquilo que acho que é o seu perfil: os seus traços de caráter, que têm que ver com a confiança, com o acreditar e fazer acreditar. Com as suas relações humanas e a maneira como as gere e como as orienta. Com a forma como gere um grupo — porque não trabalha sozinho –, e a sua capacidade de delegar. Tudo isto faz com que seja o selecionador de uma seleção campeã. Uma vez apresentado assim, e se calhar já um bocadinho embaraçado, gostava de saber como é que consegue fazer tanta coisa, e como é que consegue fazer com que eles acreditem, nós acreditemos e todos ganhemos — não só o jogo, mas esta confiança enorme?
Como é que se faz? Não sei, não há um compêndio que nos explique ou que nos diga como se faz ou como não se faz. Sei é que aquilo que é fundamental é a questão do grupo, e a questão do “nós”. Mais do que eles ou eu acreditar, o que funciona para que se possa atingir objetivos é acreditarmos todos no nosso projeto. Portanto, este projeto é nosso. Não é do fulano A, B ou C. No fundo, não é de ninguém e é de todos ao mesmo tempo. Quando cheguei à equipa nacional, tive essa preocupação imediata. Lembro-me perfeitamente de que, para além de criar objetivos e dizer ao que vinha, coloquei todos os pronomes pessoais num quadro e fui riscando o “eu”, o “tu”, o “ele” e só não risquei o “nós”.

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E ficou sempre o “nós”. É a lógica do “todos por todos”…
É como uma lógica de funcionamento. Porque se não for assim, se não conseguirmos construir este “nós”, em que todos trabalhamos com um objetivo comum e todos temos a mesma confiança, torna-se muito difícil. Porque este “nós” não é a equipa técnica, não são os jogadores… é todo um staff que começa no presidente da Federação, obviamente, e que termina naqueles que ajudam, como é o caso dos roupeiros, que são muito importantes neste “nós” global. Numa fase final estamos mais de 70 pessoas a trabalhar para um objetivo comum e é preciso articular tudo isso. Obviamente que muitas vezes quem ganha são os jogadores. Quem está dentro do campo são os jogadores.

Quem ganha são os jogadores… e Portugal…
Sim, claro. Obviamente. Porque estamos a falar da seleção. Se estivéssemos a falar de um clube, ganharia um clube, evidentemente. Neste caso, ganha Portugal. Mas são os jogadores que vão dar o corpo, na realidade, e vão manifestar dentro do campo a tradução daquilo que procuramos fazer. Mas para que isso aconteça tem de haver toda esta envolvência.

Normalmente uma seleção não tem nem muito tempo para fazer grandes estágios. Não há tempo para trabalhar e tudo isto tem de ser feito numa base de confiança e de gestão afinadíssima dos egos que ali se juntam…
Dos erros. Prefiro os erros do que os egos.

Mas há ali muitas marcas individuais dentro da marca seleção. Esta seleção parece sempre muito alegre e mostra que gosta de estar junta. Não é só a vitória, não é só o acreditar e a confiança, é também essa alegria. De onde é que isso vem?
Vem do prazer de estarmos juntos na vida. Acho que foi isso que conseguimos criar, porque a seleção nacional e um clube são coisas completamente distintas. É o dia e a noite. Desde logo nós não temos jogadores. Os clubes têm os seus jogadores. Contratualmente eles são dos clubes e aí há muitas formas de os agregar ou de não os conseguir agregar. A seleção não, os jogadores vêm por gosto. Isto enquanto eu, e todos os outros, temos um contrato, obviamente. Um contrato com a Federação.

Fernando Santos, no Stade de France, palco da conquista do EURO 2016 pela Seleção

Getty Images

Mas também está lá por gosto?
Sim, é verdade, estou lá por gosto, com muito gosto. Mas eles vêm apenas por isso. Qualquer jogador pode dizer não, não há aqui nenhuma relação de obrigatoriedade de ter que vir à seleção nacional. Ao longo dos ano há alguns momentos em que os jogadores ou não estão na forma desejada, ou estão lesionados. Ou têm um outro problema qualquer e não podem dar o seu contributo. Portanto isto é tudo feito sempre ao momento. E o momento é curto. Na maior parte dos momentos, com exceção das fases finais, em que temos algum tempo mais, todas as nossas concentrações são 2 a 3 dias antes do primeiro jogo. Quer dizer que normalmente não há treino. Há recuperação, os jogadores vêm de competições, onde estão em quadros competitivos muitos fortes.

Nem sempre vêm bem, do ponto de vista físico?
Sim, porque normalmente antes dos jogos das seleções há competições europeias. Os jogadores estão sujeitos a um esforço maior, e portanto há que os recuperar para que possa funcionar bem. Há, por um lado, que ter esse prazer enorme de estar na seleção, o que à partida é fundamental, mas depois também esta confiança mútua entre todos, esta relação que permite que num ou dois dias consigamos mudar o chip do clube para a equipa nacional, para representarmos o nosso país. Mas é tudo muito diferente daquilo que é feito num clube. Com a exceção das fases finais em que temos mais algum tempo de preparação e podemos afinar um bocadinho melhor.
Os “eus” são fundamentais porque num conjunto, num grupo, há sempre “eus”. Todos nós somos um “eu”. Não gosto da expressão “ego” por uma razão muito simples: porque em português olhamos para o egocentrismo. Se fosse em grego tudo bem porque “ego” em grego quer mesmo dizer “eu”.

Mas aqui tem a ver com egocentrismo?
Aqui há um sentido não tão positivo desta palavra, que é uma palavra grega. Antes de ir para a Grécia tinha muito essa ideia também, usava muito o “ego” de maneira depreciativa, ou pelo menos não com uma conotação tão positiva. Depois de lá chegar comecei a ouvir “ego”, “ego”, “ego”, e disse “isto aqui é mau para mim, que não me dou bem com isto”. Mas depois percebi. Acho que essa questão é central, conseguir eliminar essa expressão. Mas cada um tem o seu “eu” e se queremos criar uma relação forte entre todos também temos de perceber o “eu” de cada um. O “eu” no sentido da forma de estar, da maneira de ser.

Há uma unanimidade sobre a sua sensibilidade. Sobre a sua capacidade de analisar o jogo, de preparar o adversário. Não só na questão do trabalho, mas também ver em que estado é que os jogadores chegam, físico e emocional. Nessa leitura dos jogadores percebe que há ali uns pilares, pessoas com influência no balneário? Estou a pensar, por exemplo, no Bernardo Silva, uma pessoa que traz imensa alegria.
Sim, é o que digo. Num clube, essa questão vai sendo muito marcada ao longo de uma época, ao longo dos anos, porque há jogadores que, ou pela sua antiguidade ou pelo seu carisma, se tornam os verdadeiros líderes do balneário. Quando chegam jogadores novos eles estão a ali para apoiar. Na seleção, como isto não é contínuo, as coisas não funcionam tanto assim. É muito importante, na realidade, que cada um se expresse à sua maneira e não seguir outros. É preciso que haja esta “liberdade”, em que cada um seja verdadeiramente importante com as suas características. Não só no jogo, mas também dentro do próprio balneário, porque não podemos ser todos iguais. A nível da seleção é, aliás, mais importante estarmos bem fisicamente, porque isso a mim não me compete, não consigo fazer nada sobre isso porque eles vêm dos clubes como vêm. O que é mais importante é ter mentalmente os meus jogadores bem. Que estejam na realidade alegres, disponíveis. Depois há uns mais introvertidos, outros menos introvertidos, uns que fazem rir os outros. Toda a gente fala do peso do Cristiano no balneário, mas isso também tem muito a ver com o que os outros pensam dele, porque metade destes miúdos eram fãs dele.

Ainda bem que fala do Cristiano no balneário, porque é lendário o momento em que ele disse que foi o Fernando Santos que “os fez acreditar”. Isto foi numa palestra de balneário, onde se passa muita coisa. Há de facto uma grande influência desses momentos no balneário?
Seguramente que há. E essa influência pode vir ou pelas características naturais — há uns que gostam de brincar e puxam mais os outros — mas também por esse peso. Obviamente que falo em relação ao Cristiano, ao Pepe e a outros. Os jogadores mais jovens têm uma diferença de idades de 15, 16 anos deles. Quando eram miúdos, eles já eram grandes jogadores e se calhar eles os seus ídolos. E de repente verem-se envolvidos é muito importante. Tem sido o segredo da equipa nacional.

E dizem que esta geração que está a chegar é uma geração extraordinária…
É verdade, mas digo sempre isso…

Todas as gerações são extraordinárias?
Todas as gerações o têm sido, porque Portugal tem tido gerações extraordinárias. Se pensarmos bem, a de 1966 era uma geração extraordinária. Mas a de França [em 1984] era também extraordinária. Depois, a partir de 2000, tem havido sempre gerações extraordinárias. A de 2004 era. E esta tem sido. E tem futuro, na minha perspetiva. Desde que mantenham aquilo que é fundamental. Por um lado, uma grande confiança. Por outro, sem exagero. Com a humildade necessária para reconhecer que do lado de lá está gente capaz e que tem o mesmo objetivo que nós. Se tivermos sempre essa matriz de pensamento e a confiança plena para desenvolvermos o que podemos fazer em jogo, dificilmente alguém ganha a Portugal. E isso é o que eles têm feito ao longo destes quatro anos.

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À frente da seleção e em 64 jogos, Fernando Santos conseguiu:

  • 38 vitórias
  • 16 empates
  • 10 derrotas
  • 2 troféus

Chamou o João Félix à seleção, ele que acaba de chegar ao Atlético de Madrid com uma transferência milionária de 126 milhões de euros. Tudo isto por um rapaz de 19 anos. Conhecendo-o, acha que esta fama e este dinheiro podem prejudicá-lo?
Eles hoje estão muito mais preparados do que há 20 ou 30 anos. Não porque sejam melhores ou piores formados ou porque tenham um caráter melhor, mas sim por influência natural. Antigamente era raro sairmos, a experiência internacional era diferente. Não tínhamos contacto com outros países. Hoje não, isto é uma sociedade aberta. O mundo é aberto. Eles estão mais bem preparados para estes desafios.

Mas mesmo assim, ficar com fama universal de um momento para o outro pode ser complicado…
Sim, tem sempre o seu peso. Mas eles estão muito mais preparados agora. Por isso é que há 20 ou 30 anos vários jogadores portugueses muito talentosos saíram de Portugal e as coisas não correram bem. Nós pensamos muito na questão da saudade, da família, mas hoje estamos todos mais perto.

Mas a pressão é muito grande… cada vez que ele falhar pode ser brutal.
A expetativa é grande, mas ele tem de viver com isso. Essa é a questão central. Ele tem de preparar isso interiormente. E isso é muito dele. Claro que deve ser ajudado pelos outros: pela forma como o recebem ou como o irão ajudar nos momentos menos bons, que vão aparecer. Mas também nos momentos de superação. Muitas vezes, nesses momentos, é preciso saber apoiar. Não deixar que as coisas tomem um caminho que possa ser pior. No fundo é saber criar o balanço entre aquilo que é a pressão a que ele está sujeito neste momento, que é normal, e aquilo que será o decorrer natural da sua progressão.

Já que é um bocadinho pai do João Félix, porque o lançou na seleção, que conselho é que lhe daria como pai?
Que seja igual a ele próprio, nas suas caraterísticas. Na sua forma de estar, de pensar. Que tenha a consciência exata de que a vida não é um mar de rosas. Para alcançar o que se deseja, para além do talento, é preciso muito trabalho. E humildade. Atenção que humildade não é subserviência ou sentir-me inferior a ninguém! As pessoas confundem isso.

Por falar em humildade: acha que é o que falta a Neymar?
Talvez. Não sei se é humildade, se é pressão que vem de fora. O que sei é que a humildade, neste sentido de acreditarmos em nós e respeitarmos os outros, pode resolver as coisas. Mas seja o João Félix ou o Neymar, eles terão sempre de ter apoio. O talento é o talento, mas há uma fase de crescimento natural que não podemos pôr de lado. Já passámos todos por isto.

O João Félix tem 19 anos. Lembra-se do que fazia com essa idade?
Estava a estudar. Jogava no Benfica, penso. Ou no Estoril.

E lembra-se se tinha um pensamento estruturado?
Sim, tinha. Desde muito novo que tive um pensamento muito estruturado. Era responsável, porque fui para o Instituto [Superior de Engenharia de Lisboa] muito cedo, com 17 anos. E já tinha objetivos claros por causa das imposições (positivas) do meu pai. Fiz um acordo com ele em que se nunca chumbasse a nada ele deixava-me jogar no Benfica. Claro que houve momento difíceis. Na altura em que fui jogar para o Benfica e para o Estoril começava a ser conhecido. E como era jovem também festejava. Às vezes chegava mais tarde a casa e, mesmo assim, o meu pai acordava-me às sete da manhã para ir para o Instituto. Havia vezes em que ele me acordava e nem tinha aulas. E a resposta dele era sempre a mesma: “Não tenho nada a ver com isso”.

Mas isso deu frutos, não deu?
Claro que deu. E eu até tinha a noção exata que podia nunca ser jogador de futebol. Até por condições de família. Mas o meu objetivo foi sempre acabar o meu curso e ter uma profissão onde pudesse desenvolver toda a minha vida. Foi sempre esse o meu pensamento. Claro que houve momentos em que pus isso em causa, ainda mais tendo 18 anos e estando a ganhar mais do que aquilo que era comum para a idade. Em 1972 eu ganhava 4 contos, que era imenso dinheiro. Por isso há momentos em que abanamos um pouco. E é por isso que a nossa envolvente é muito importante.

Às vezes chegava mais tarde a casa e, mesmo assim, o meu pai acordava-me às sete da manhã para ir para o Instituto. Havia vezes em que ele me acordava e nem tinha aulas. E a resposta dele era sempre a mesma: “Não tenho nada a ver com isso”.

Um pouco mais à frente: depois dos estudos teve sempre profissão?
Tive. Aliás, tive duas profissões em simultâneo. Como engenheiro e jogador. Só fui exclusivamente jogador durante dois anos, entre 1977 e 1979. Apesar de as coisas até me estarem a correr bem e de estar estruturado para me manter no futebol, surgiu um problema familiar e sai. A minha mãe foi assaltada em Espanha, teve problemas e esteva a ser tratada por um psiquiatra no Funchal. Aí surgiu um convite que foi muito importante para a minha vida: o José Benito Garcia, que era o presidente do Estoril, convidou-me a regressar. Primeiro disse que não, porque economicamente não fazia sentido voltar ao futebol. Mas ao segundo convite, e perante essa situação da minha mãe, aceitei com a garantia de que arranjava um emprego na minha área. E foi aí que entrei para o Hotel Palácio, a 5 de janeiro de 1971. Fui diretor técnico do hotel durante 18 anos. Tudo o que era questões técnicas era eu o responsável. Durante esses 18 anos exerci duas profissões.

Gostava das duas profissões?
Gostava. Ainda hoje gosto, ainda tenho as licenças sem vencimento. E no hotel tenho muitos amigos. Até os meus patrões, sou amigo deles. Tenho uma ligação muito forte com o Hotel Palácio.

E quando é que começou a ser treinador?
Comecei por acaso. Tudo na minha vida começou por acaso. Há uma fase em que já estou para terminar a minha vida no hotel. Em 1984, com 30 anos. Já tinha dois filhos, porque casei muito cedo. Nessa altura o Estoril entrou numa fase mais difícil: estava na segunda divisão, com dificuldades económicas, e o presidente da altura, o Júlio Graça, convidou-me para treinador.

Achou o convite estranho?
Não. A minha vivência de balneário e a minha presença indiciavam que isso poderia acontecer. Disse que não podia e indiquei o António Fidalgo, que é meu afilhado de casamento e que era meu colega de equipa na altura. E assim aconteceu. O presidente convidou o António, só que ele pôs como condição que eu ficasse a ajudá-lo durante dois anos, na condição de jogador-adjunto. Eu ia lá poucas vezes, até porque nessa altura remodelei o hotel. Tinha 110 homens a trabalhar. Sempre que ligavam para lá para falar comigo, o meu secretário dizia sempre que estava “na pedra”, porque as obras eram todas em pedra e por causa disso tinha de ir todos os dias a Pêro Pinheiro. Aquilo foi sempre andando assim. Até que o António foi convidado para treinar o Salgueiros, que estava na primeira divisão. Faltavam uns seis meses para o fim dessa época. E o presidente do Estoril pediu-me para segurar a equipa até ao fim da temporada.

No estúdio da Rádio Observador. FOTO: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Depois do Paulo Bento e do Carlos Queiroz, sentiu-se que o Fernando Santos pôs todos a remar para o mesmo lado. Como é que se exerce essa liderança?
Como disse há pouco… não me dou bem com “excels”, apesar de ser engenheiro. A liderança é algo que está um pouco nas pessoas. Mas tem muito a ver com aquilo que foi a minha vida no Hotel Palácio, enquanto diretor. Aos 26 anos vi-me obrigado, entre aspas, por foi com muito gosto também, a gerir uma equipa muito mais difícil, porque convivia com miúdos de 18 até homens de 70 anos. Tínhamos objetivos, mas não eram propriamente os mesmos.
Quando cheguei ao hotel a secção estava dividida em três e a minha primeira preocupação foi deixar de ter três oficinas para ter uma e juntar toda a gente. Falar eles falavam, mas colaborar, colaboravam pouco. Para mim era muito estranho: tinha 26 anos e disse a um dos meus colaboradores que era preciso fazer alguma coisa e para ele falar com outro colaborador para o apoiar. E ele disse: “Ai não, não lhe digo o que vai fazer, tem que ser o engenheiro a dizer”. E eu disse: “Eh pá!, calma lá, não é?”. E portanto a primeira coisa que fiz foi fazer uma oficina nova em que toda a gente foi trabalhar para dentro daquela área.

E aí a delegação também é mais fácil?
Sim. Congregar as pessoas é fundamental. Para que não sintam que aquilo é do outro e isto é meu. Tomo aqui conta do meu quintal, o outro toma do dele. Todos ganhamos e todos perdemos. E isso é uma questão central.

Tinha 26 anos e disse a um dos meus colaboradores que era preciso fazer alguma coisa e para ele falar com outro colaborador para o apoiar. E ele disse: "Ai não, não lhe digo o que vai fazer, tem que ser o engenheiro a dizer". E eu disse: "Eh pá!, calma lá, não é?". E portanto a primeira coisa que fiz foi fazer uma oficina nova em que toda a gente foi trabalhar para dentro daquela área.

Como é que lida com o erro e com o falhanço para além daquilo que nos é dado a ver na televisão?
Mal, lido mal… naturalmente. Muito mal. Tenho muita dificuldade em perder. Mas ao longo da vida vamos começando a perceber melhor a derrota e a ter capacidade e armas para voltar para cima.

Quais são essas armas?
É pensar no que fiz. A seguir ao jogo, mesmo quando ganho, nunca durmo. Acho que não sou só eu, qualquer colega meu não dorme, vai pensar naquilo que fez. E quando perde obviamente vai pensar ainda mais. Mas tenho confiança em mim próprio e acredito naquilo que faço.

Mas porque acredita que é o melhor do mundo ou porque acredita naquilo que faz?…
Não tenho que andar a dizê-lo. Mas acredito muito naquilo que faço e nas minhas capacidades. Nunca podia ter conseguido alcançar aquilo que foi conseguido senão fosse assim. Mas todos os meus colaboradores e os meus antecessores — e esses particularmente são dois amigos meus — procuraram o mesmo. Só que cada um tem a sua forma de estar, de pensar.
Às vezes falam-me até na questão do Paulo [Bento]: se estivesse no lugar do Paulo se calhar teria tomado a mesma opção que ele. Porque cada caso é um caso, em cada momento.
Quando cheguei à seleção o que fiz foi: “Ok, houve estes casos, não tenho que os julgar em nada”. Não sei o que faria se estivesse lá, naquele lugar, portanto não houve nem crítica nem julgamento. Houve uma tomada de posição diferente. Perguntei à Federação: há algum jogador que não possa ser chamado à seleção? Disseram-me que havia um jogador que teria sido castigado mas que já tinha terminado o castigo. Havia os casos do Ricardo e do Tiago, que agora até vai trabalhar para a Federação: é uma pessoa espetacular, como homem e como jogador também.
Ele em tempos tinha escrito uma carta, e não era o primeiro a dizer que a partir de determinada altura renunciava à chamada à seleção. Perguntei-lhe se mantinha essa condição ou se a queria alterar. Ele disse-me que  alterava, portanto a partir dali todos os jogadores estavam disponíveis para ir à seleção. E tomei as opções que tinha de tomar. Isto não encerra o mínimo de…

Crítica, como disse…
Não é só crítica, é também pensar “ah, se estivesses lá naquela altura, se calhar tinhas feito o mesmo”. Ah, pois, se calhar tinha… não sei.

Voltando à questão de como se lida com o erro, com o falhanço: estas conquistas são sempre feitas de falhanços, não é?
Sim, evidentemente… o futebol é um jogo de erros! Quem errar menos, vai ganhar. Porque se não houvesse erros, os jogos ficavam sempre 0-0. Se ninguém falhasse, nem coletivamente nem individualmente, o jogo seria sempre 0-0.

Ou 20-20…
Há sempre a parte individual que pode alcançar um objetivo sem ter que haver falha do adversário.

Ou seja, um Éder…
Uma bola parada…

Ou aquele Éder que chega só para marcar…
Sim, mas alguém deixou que o Éder chutasse. Tem muito sempre que ver com o falhanço. Quanto menos errarmos, melhor. Coletivamente devemos ser muito fortes para prevenir os estragos que nos podem causar. O adversário tem uma estratégia clara: marcar um golo à minha equipa. A minha obrigação é criar com os jogadores uma estratégia que não permita que o adversário faça isso. Essa é a primeira condição.
Depois há uma segunda condição para quem quer ganhar, porque se só ficarmos por esta estamos a jogar para empatar e isso é muito pouco. Para ganhar temos de fazer algum golo. Se cumprirmos bem a primeira parte e não sofrermos, basta um. Mas se pudermos fazer dois golos, três, melhor. Porque se houver algum erro, continuamos com uma margem para ganhar.
E aí entra também a relação estratégica entre os jogadores, e na seleção é muito difícil criar estes mecanismos e automatismos, porque não há tempo. Há que tirar também proveito do talento individual de cada um deles. Daí a liberdade para que cada um possa criar.

É essa confiança que dá aos jogadores, que eles possam ser quem são?
Sem perder a noção exata de que fazem parte deste grupo de trabalho, ou seja, não podem passar para o lado de lá. Ok, então agora só faço a minha parte e não quero saber do resto. Não! Incluído neste grupo, e nesta estratégia, há sempre duas coisas que temos de fazer, com todos os que chegam: confiança uns nos outros, cada um acreditar no colega, não é só nos que jogam, mas em todos os que ali estão. E confiança mútua entre mim e eles: têm que acreditar em mim e eu acredito neles. Se não conseguirmos isto…

Uma vez que disse que o futebol é um jogo de erros: aprende com os erros?
Sim. Temos de olhar para eles e não fazer de conta.

Há muita luz no erro…
Pois, porque muitas vezes o que acontece é que nós olhamos para lá e…

Ficamos em culpabilização e vitimização…
Ou então achamos sempre que os outros é que fizeram mal, porque eu disse assim e aquele não cumpriu e tal… é importante olhar para tudo isto num plano mais global, eu incluído. Podia ter feito isto, podia ter feito aquilo, não o fiz, o que é que posso melhorar?

Mas sem excesso de culpabilização…
Quando tomamos uma decisão, tomamos uma decisão com consciência de que estamos a fazer bem. Quando nos vamos culpabilizar é porque não temos consciência ou não tínhamos a certeza de que estávamos a fazer bem.

Quais são os erros, então, que não perdoa a si próprio?
Falta de profissionalismo. É a única coisa com a qual não sou capaz de conviver comigo próprio. Ou com os meus jogadores. Quando digo falta de profissionalismo, refiro-me a não darem tudo o que têm em campo. Podem jogar mal, as coisas podem não sair bem, mas deram o seu melhor. Isso é das coisas que mais me agrada nesta equipa, para além das vitórias e da qualidade enorme que os jogadores têm. Só uma ou duas vezes me chateei com eles a sério por isso. Ou seja, houve um ou dois jogos em que os repreendi sobre isso, porque sou muito frontal e digo aquilo que penso. Disse-lhes: “É a primeira vez que estou aqui a meio de um jogo a gritar, a dizer que vocês não deram o que tiveram para dar”. Porque nós podemos ganhar ou perder, não podemos é deixar de fazer e de dar o que temos para dar.

Fotografado nas instalações do Observador. FOTO: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Já falámos de João Félix e de vários jogadores ao longo desta conversa. Podíamos falar do Rui Patrício, importantíssimo em 2016, podíamos falar do Gonçalo… do Bruno Fernandes… mas se calhar agora preferia perguntar o que é que valoriza mais no seu braço direito, no Elídio Vale?
Eles para mim são fundamentais: o Elídio Vale, o João Costa, o Rosário, o Ricardo, o Justino… são gente fundamental, muitos deles a trabalhar comigo há muitos, muitos anos.
O Rosário trabalha há mais anos comigo. O Elídio trabalhou comigo no FC Porto. O Elídio trabalhou comigo pela primeira vez no FC Porto. Era o coordenador da formação e depois durante um ano trabalhou comigo e sempre mantivemos uma relação de amizade forte, de troca de opiniões e ideias durante muitos anos. Depois, quando vim para a equipa nacional, tive a sorte de o ter como coordenador de formação e entendi logo que era uma chave importante para mim. Pelo seu conhecimento profundo deste núcleo de jogadores com determinada idade, que me tinham passado um pouco ao lado. Vivi muitos anos na Grécia, houve um conjunto de jogadores que não acompanhei no dia-a-dia. Aqueles mais jovens. E essa informação era fundamental.
Mas a questão central era a sintonia entre mim e o Elídio Vale e entre mim e os outros que vieram comigo e trabalhavam na Grécia. Esta é muito importante.

É uma questão de gestão de expetativas…
Ao contrário das outras profissões, é uma regra que não podemos alterar.

E essa gestão de expetativas é um trunfo também da sua equipa técnica, ajudá-lo a gerir as suas expetativas e a dos jogadores…
É fundamental. É funcionar como uma verdadeira equipa, termos liberdade total para expressar as nossas opiniões e discordar algumas vezes em relação à estratégia ou ao treino. Mas depois, quando disser que “isto é branco”, já ninguém pode dizer que é preto. Aí acabou.

Aí é que o Fernando Santos vai buscar os jogadores e ser um dos melhores do mundo…
Sempre foi assim. Sempre fiz isso.

Queria só aqui usar os últimos 3 ou 4 minutos para falar de Deus, porque passa a vida a dizer ”graças a Deus”. Já falou muito sobre a sua fé publicamente e é impossível nesta fase, depois da Liga das Nações e de outra grande conquista, não ir voltar ao tema. Deus é uma palavra difícil no mundo e muito adversa no mundo do futebol e da alta competição ou não?
Não sei. Acho que não…

Quem é esse Deus em que acredita?
Acredito no Criador. Mas enquanto católico apostólico romano, acredito muito neste Deus que é trino e uno. Que é Pai, que é Filho, e que é Espírito Santo.

O que é que Ele faz em si? O que é que Ele trabalha em si?
Trabalha tudo.

Onde é o que leva?
Onde me quiser levar. Deus para mim está acima de tudo.

Ou seja, a sua relação com Deus, a sua intimidade com Ele, é de uma abertura e entrega totais. É dizer “Faz de mim o que quiseres”…
Foi de há 20 anos para cá. Antigamente nem sabia que existia.

A sua conversão foi há 20 anos?
Nem foi conversão. Acho que sempre estive convertido desde o meu batismo. Não dava é por isso. Nunca dei por isso, ou passava muito ao lado, ou não queria ver. Mas a verdade é que estava. Não tenho dúvidas. Quando olho para trás hoje, vejo muitas coisas que aconteceram ao longo da minha vida, mesmo quando andava nessa zona mais escura da minha relação com Deus. Mas sempre estão lá os sinais d’Ele.
Acho que é um bocadinho como as pegadas de areia de Santo Agostinho, não é? Quando ia na praia e via só um par de pegadas, achava que eram as minhas e não eram. Eram exatamente as d’Ele, que me estava a levar ao colo. Hoje percebo isso. Na altura passava-me completamente ao lado. Tinha uma questão que me deixou sempre afastado durante esses anos. Aliás, não diria afastado, porque casei pela Igreja, batizei os meus filhos e pu-los em colégios católicos. Mas sempre tive desde miúdo algo que me fazia confusão: Deus como castigador.

Controlador?
Qualquer coisa ”vais para o Inferno”. Isto foi criando em mim sempre qualquer coisa.

Isso é o que se diz ”ficar na 4ª classe da catequese”, não é? Nesse Deus controlador e castigador.
É verdade, mas como fiquei na 3ª classe deve ter sido por isso. Até para descobrir que Ele está vivo e não estava morto. Achava que Ele estava morto e bem enterrado e não está. Está vivo em cada um de nós. E costumava perguntar muito aos meus amigos que eram mais católicos ou mais convictos se Deus estava em todo em lado. Se estava lá no quintal da minha avó. E eles diziam-me todos com grande convicção que sim e respondia: ”Pois, mas a minha avó não tem quintal, portanto não pode lá estar”. Eles ficavam um bocadinho desarmados, e tal, mas o que é verdade é que não é preciso quintal para nada porque o quintal somos nós próprios.

O templo somos todos nós…
Claro… o templo somos nós.

Se pudesse ter uma conversa com Deus, o que é que lhe perguntava?
Há sempre algumas questões que devíamos colocar e que têm a ver com algo que para nós é tremendamente difícil. Não é a morte em si. O católico, o cristão, aliás, não pode ter medo da morte.

Uma coisa é não poder ter… outra coisa é ter. Tem medo da morte?
Não tenho. Acredito na ressurreição. Senão não era cristão. Seria outra coisa qualquer. Podia acreditar em Deus, mas não era cristão. Ao ser cristão, obviamente que tenho acreditar na ressurreição. Essa é que é a pedra basilar e São Paulo diz isso de uma forma muito clara.

Tenho a certeza absoluta de que um dia me hei-de encontrar lá em cima com os meus amigos e com o meu pai, que lá está agora. E depois com os outros. Havemos de lá estar!

E isso dá-lhe muita paz em relação à vida?
Dá-me muita paz. Tenho a certeza absoluta de que um dia me hei-de encontrar lá em cima com os meus amigos e com o meu pai, que lá está agora. E depois com os outros. Havemos de lá estar!

E que as coisas não acabam aqui…
Não! Não fazia sentido. Agora, algumas questões sim, porque humanamente há sempre algumas questões que nos colocam. Ainda ontem fui a um funeral de um amigo com 30 anos. Isto é um pouco anti-natura em relação aos pais. Estas coisas mexem muito connosco. E fazem-nos questionar. Porquê? Só Ele é que sabe. Só quando lá chegarmos é que perceberemos.

Portanto não se revolta. Não pergunta ”porquê”?
Perguntar pergunto. Às vezes pergunto. E Ele também me responde. E  depois há uma coisa que para mim é fundamental e que talvez tenha fortalecido muito a minha relação com Ele ou a d’Ele comigo. É muito mais fácil nós amarmos a Deus do que deixarmos de amar. Deixar de amar é que é difícil. Há uma questão central nesta relação com Ele, nós temos esta confiança.
Perceber isso foi muito importante para mim. Olhar para o lado humano de Cristo. Ontem pensava sobre esta questão durante a Eucaristia. E lembrava-me de uma passagem do Evangelho, quando o Seu amigo Lázaro morre e a irmã dele lhe conta. Ele chora, não é? E aqui há na realidade um momento humano também do próprio Deus, que tomando a nossa condição passa por essas questões também. Revolta-se no templo. Chora quase no dia da partida.

Com Laurinda Alves. FOTO: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Sofre na cruz…
Sim. E há uma passagem que me marca muito, que é quando Ele está no Getsemani [o local onde Jesus Cristo repousou com os discípulos antes de ser capturado pelo romanos] e diz: ”Pai, se quiseres afasta de mim este cálice”. E Ele está a chorar. É isso que é relatado. Portanto, há ali o quê? Um sentimento de dificuldade de partir e de deixar os seus amigos e saber também da saudade que vai provocar aos amigos que ficam. E esta parte humana de Deus cativou-me muito.

O que é que agradece a Deus?
Tudo. Principalmente o dom da vida. É o que faço quando chega a noite, quando me vou deitar. É agradecer o meu dia. Mas aí incluo tudo. Quando de manhã me levanto entrego-Lhe o meu dia e o da minha família, mas principalmente o dom da vida. Porque se não fosse Ele, nós não estávamos aqui a conversar.

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