A Venezuela podia ser o país mais rico do mundo — tem recursos naturais para isso —, mas a miséria nas ruas e nos serviços públicos agrava-se de dia para dia. Ainda assim, “não podemos garantir que a situação não irá agravar-se ainda mais”, receia Russ Dallen, um profundo conhecedor do país que tem uma firma de investimentos que opera em Caracas e Miami. O norte-americano é considerado pelo regime um “perigoso sicário” e “inimigo do povo venezuelano”, apesar de confessar que a coisa que mais lhe tira o sono é garantir que consegue acompanhar a inflação gigantesca nos salários dos seus colaboradores, para que eles “se aguentem” nestes tempos incrivelmente difíceis.

Em entrevista telefónica com o Observador, Russ Dallen, que comprou um jornal a que mudou o nome para Latin American Herald Tribune, lamenta que a Venezuela, outrora um país próspero, cheio de oportunidades e com um povo caloroso, hoje se tenha transformado no “sonho de Pablo Escobar”, pela mão de “pessoas muito más que sabem perfeitamente que no dia em que este regime terminar vão acabar na prisão ou pendurados na ponta de uma corda”.

Russ Dallen, que anda de blindado e segurança pessoal, sobretudo desde que foi alvo de uma violenta tentativa de sequestro, não desiste do país porque, entre outras razões, acredita que se um dia o regime for derrubado a Venezuela voltará a ser um El Dorado e existirá algo “semelhante à corrida ao ouro no início do século XIX, nos EUA”. O “perigoso sicário financeiro”, que já aconselhou a Casa Branca e testemunhou no Congresso norte-americano sobre o tema da Venezuela, lamenta, também, que nos EUA haja algum “pejo” entre os políticos em punir a Venezuela, porque isso poderia fazer subir o preço que os americanos pagam na bomba de gasolina.

Como é que é gerir uma empresa de investimentos num país como a Venezuela?
É deprimente. Não há capitalismo aqui — não há capitalismo saudável, quero eu dizer, porque existe algum capitalismo que se pode considerar selvagem. Mas não há muito investimento a entrar no país, sobretudo desde as expropriações, e as empresas locais não têm conseguido ter atividade suficiente para que possamos trabalhar com elas. Obviamente a vida não tem sido fácil, mas tenho uma empresa e vivo a minha vida sempre preocupado em garantir que não falta nada aos meus funcionários, que consigo pagar os ordenados e acompanhar o aumento do custo de vida de forma a que eles consigam aguentar-se — são funcionários que estão comigo há muitos, muitos anos.

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Quem é Russ Dallen?

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Norte-americano, formado em Oxford (Inglaterra), fez carreira na área financeira com um enfoque especial na América Latina. Comentador frequente na imprensa internacional, foi um dos primeiros a alertar, em 2013, para o colapso económico iminente (e a falar sobre a escassez de produtos essenciais, como papel higiénico). Conseguiu antecipar de forma certeira falhas de pagamento de dívida não só pelo Estado venezuelano mas, também, na Argentina, como reconheceu o Financial Times. Passa a maior parte do tempo em Caracas, onde gere a firma Caracas Capital Markets e é publisher do Latin American Herald Tribune, um jornal histórico que anteriormente se chamava Venezuela Daily Journal e que Dallen comprou em 2003, sendo um apaixonado pelo jornalismo desde a faculdade (ou, melhor, desde que trabalhou como paper boy, na distribuição de jornal com bicicleta, em Nova Orleães).

Divide o seu tempo entre a Florida e Caracas. Porque é que continua na Venezuela?
Vim para cá em 2000. Casei com uma venezuelana, temos filhos e temos negócios nos quais continuamos a ter fé de que podem vir a correr bem, muito bem mesmo. A verdade é que a Venezuela é um país absolutamente maravilhoso, abençoado com todos os recursos naturais que se podem pedir — petróleo, ouro, minério de ferro, diamantes. Temos mais petróleo do que a Arábia Saudita e paisagens maravilhosas, uma cultura rica e gente naturalmente calorosa. E não existem dúvidas na minha cabeça de que no dia em que este país deixar a ditadura em que vive, dominado por gente muito má e perigosa, vai voltar a ser um paraíso na Terra. Para já, contudo, a Venezuela é mais um exemplo da situação em que pode cair um país — mesmo um que tem as maiores reservas de petróleo do mundo — quando é tomado pelo comunismo, ao estilo cubano — como se precisássemos de mais exemplos, depois das Coreias ou das Alemanhas…

Falou sobre a queda do regime. Acredita que esse dia chegará? Ou, melhor, acredita que esse dia está próximo?
É difícil dizer porque, por um lado, se olharmos para o ciclo natural das coisas, há muito chegámos ao momento em que, historicamente, uma mudança de regime já teria acontecido ou estaria muito próxima de acontecer. Mas nem sempre isso acontece, e Cuba é um exemplo de um país onde isso não aconteceu nem parece estar prestes a acontecer, apesar de todas as dificuldades. Portanto, podemos ter esperança mas não podemos garantir que haverá mudança de regime na Venezuela tão cedo, porque quem está no poder são pessoas que não têm para onde ir. Sabem perfeitamente que no dia em que este regime terminar vão acabar na prisão ou pendurados na ponta de uma corda.

E, já agora, como é gerir um jornal num país como a Venezuela?
Também é muito difícil, obviamente o negócio dos jornais não é o melhor negócio que existe, em lado nenhum, mas num país onde falta eletricidade, comida e as coisas mais básicas, obviamente que a informação passa a ser vista como um luxo. Vimos recentemente o El Nacional acabar com a edição impressa e potencialmente acabar nas mãos de acólitos do regime — este era um dos principais críticos do chavismo. É mais um prego no caixão da democracia, que obviamente há muito deixou de existir na Venezuela.

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Na sua página de Twitter, ostenta uma imagem de alguém que lhe chamou algo como “perigoso sicário financeiro”, um sanguinário inimigo do povo venezuelano…
Fiz alguns inimigos, é verdade, ao longo dos anos. Presenciei e soube de muitas coisas que não agradam ao regime. Testemunhei no Congresso dos EUA e colaborei, como conselheiro, com a Casa Branca sobre o tema da Venezuela. Ando com um [carro] blindado e com segurança pessoal, para todo o lado onde vou em Caracas, sobretudo depois de há uns anos ter sido alvo de uma tentativa de sequestro. Ia a entrar no meu carro, na baixa de Caracas, com o meu motorista, e houve uma emboscada em que um grupo de homens rodeou o carro e conseguiu partir o vidro traseiro do carro, apesar de ser um vidro à prova de bala, para me levar. Conseguimos escapar, felizmente, mas é daquelas situações em que a adrenalina dispara. Mais tarde, soube que o meu motorista tem um familiar que é da guarda civil. E esse polícia contou ao meu motorista que apanharam um dos responsáveis pela tentativa de sequestro. O homem explicou que lhe tinham pago para me apanhar — não sabia o que iam fazer comigo, por sinal não lhe foi dito qual era a intenção última, só sabia que seria pago por me apanhar e me levar.

Quanto? Soube?
O equivalente a qualquer coisa como 100 ou 200 dólares, na altura. As pessoas vivem em desespero, absoluto desespero, portanto não é surpreendente que muitas escolham o crime. Outras emigraram: ganha-se mais num dia a conduzir um Uber em Miami do que em vários meses a trabalhar em Caracas. Antigamente a Venezuela tinha uma vida noturna ótima, as pessoas iam para as ruas comer e cantar, hoje ninguém sai à rua à noite porque a qualquer momento podemos ser assaltados… ou pior. Há muita gente que se dedica ao crime e até alguns polícias chegam a casa, mudam de camisa e vão para a rua assaltar. Alguns nem sequer se dão ao trabalho de mudar de camisa: fazem assaltos mesmo com a farda policial. Transformámos este país num narco-Estado que corresponderá ao sonho de Pablo Escobar, com um sistema judicial completamente corrupto e sem qualquer réstia de democracia.

Russ Dallen ostenta, no cabeçalho da página no Twitter, o retrato que alguns fazem dele na Venezuela.

As receitas do narcotráfico estão a substituir a perda de receita com o petróleo?
Não estarão a substituir em termos fiscais, porque não é propriamente uma atividade taxável. Mas estão a financiar a corrupção e a rechear as contas em bancos suíços e offshores de muita gente aqui, gente com poder. É por isso que o regime continua a sobreviver, porque enquanto homens, mulheres e crianças morrem à fome nas ruas, há um conjunto alargado de pessoas na política e noutras áreas, como militares e juízes, que estão a beneficiar deste regime.

Vê com algum otimismo os desenvolvimentos recentes, como a eleição de uma Assembleia Nacional onde a oposição tem a maioria?
O poder na Venezuela sai do cano de uma arma. E a oposição não tem armas. Quem tem armas são os militares, e esses continuam a apoiar o regime de Maduro. Um derrube do regime pela via democrática, como aconteceu com Pinochet no Chile, em certa medida, é possível mas não parece muito provável nesta fase, porque não há democracia nem eleições sérias na Venezuela, como se viu nas eleições no ano passado. E o caso do juiz Christian Zerpa trouxe à luz do dia muitas coisas que, naturalmente, nós já sabemos que são assim mas que é bom ver serem faladas publicamente.

Está a referir-se ao juiz do Supremo Tribunal, antigo apoiante do regime, que desertou para os EUA.
Sim, ele contou como os juízes recebem ordens diretamente do regime de Maduro (e, antes de Hugo Chávez). E falou de como quem dá as ordens ao regime na Venezuela é o regime cubano, que envia os seus diplomatas para ditar as políticas que o regime venezuelano deve tomar.

E a influência russa? Que tipo de suporte a Maduro dá a Rússia, que ainda agora se soube que vai instalar uma base militar a 200 quilómetros de Caracas?
Não tanto quanto, por vezes, se pensa. A Rússia só se interessa pela Venezuela na medida em que ela lhe der dinheiro a ganhar. A Venezuela está muito longe da Rússia, geograficamente, e a Rússia aprendeu com a União Soviética que não vale a pena querer dominar em demasia algo que está muito longe. É verdade que a Rússia gosta de esfregar o dedo na cara do Ocidente mas a realidade, na minha opinião, é que o interesse da Rússia na Venezuela, mais do que político, é económico e está relacionado com o facto de a Venezuela ter ativos petrolíferos apetecíveis que neste momento é incapaz de aproveitar.

O interesse da Rússia na Venezuela, mais do que político, é económico, defende Russ Dallen. Foto: MAXIM SHEMETOV/AFP/Getty Images)

Não tem “know how”?
Dou-lhe este exemplo: todas as manhãs quando chego ao escritório tento perceber se o cargueiro Energy Triumph já saiu do porto [Jose Terminal]. Mas estão há várias semanas a tentar enchê-lo, para levar para a PetroMonagas, da russa Rosneft, carregado de petróleo [Morichal blend], e não conseguem. Simplesmente a petrolífera estatal, a PDVSA, não tem capacidade para produzir em quantidade suficiente porque está completamente falida e com enormes problemas de sub-investimento e problemas operacionais, sobretudo desde que o regime expulsou os trabalhadores experientes que trabalhavam neste setor e que foram substituídos por pessoas ligadas ao regime. E, também, desde que as multinacionais como a Exxon Mobil e a ConocoPhillips foram expropriadas sem qualquer compensação — só anos mais tarde após uma longa batalha judicial.

Por isso é que a empresa PDVSA está endividada.
Sim, e é uma empresa absolutamente central para a inversão que um dia possa existir na política venezuelana. Hoje a Venezuela está a produzir cerca de um terço do que produzia quando Chávez tomou o poder, pouco mais de um milhão de barris de petróleo por dia. Têm-se demonstrado incrivelmente incompetentes: produzem tanto hoje quanto produziam em 1947. A boa notícia é que os investidores internacionais veem a Venezuela como tendo um problema de liquidez e não de solvência. Ou seja, é clara a perceção de que se o regime mudasse seria relativamente fácil fazer um reboot na PDVSA e pagar todas as dívidas que o país tem e ainda sobrava muito para relançar o país.

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É um otimista?
Sou um realista: temo que a Venezuela ainda não tenha tocado no fundo e que este novo ano seja ainda pior. Modero as expectativas, porque o regime está muito enraizado, mas não tenho dúvidas de que com o governo certo seria possível arrumar o caos que tomou conta do país. Costuma-se dizer que “quando há sangue nas ruas é porque chegou o momento de investir” — não tenho a certeza de que assim seja, neste caso, mas veremos. Há muito potencial na Venezuela porque, passe o exagero, anda-se com um guarda-chuva na mão, fura-se o chão e sai petróleo. Se o país desse a volta, seria como a “corrida ao ouro” do início do século XIX, nos EUA. Bastaria para isso que Maduro e os seus acólitos aceitassem o acordo que está em cima da mesa, que seria abandonar o poder a troco de um tratamento mais favorável e uma casa à beira da praia, em Cuba, para passar os que restam dos seus dias.

Não quer aceitar esse acordo porquê?
Porque deve acreditar que tem alternativa e que se consegue aguentar. E porque não está a ser suficientemente pressionado a fazê-lo.

Os EUA não conseguem pressioná-lo? Acha provável que usem a “opção nuclear” de banir todas as importações de petróleo da Venezuela?
Eu já falei com muitas pessoas na Casa Branca e, como disse, já testemunhei no Congresso norte-americano, falando sobre este tema, e a sensação que fico é que há algum pejo na política norte-americana em avançar para esse tipo de sanções, porque isso poderia desequilibrar o mercado petrolífero e fazer todos os americanos sentirem, quase de imediato, na pele, preços dos combustíveis mais elevados cada vez que fossem a uma gasolineira. Mas se essa mudança de regime algum dia vier a Venezuela pode voltar a ser um El Dorado para quem está disponível para trabalhar, como os portugueses — que, aqui, têm uma ótima reputação e fama de andarem sempre com um lápis na orelha e a dar o litro no trabalho.

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