Kvicha era um dos quatro homens que trabalhava para o clã Tbilisi — originário da Geórgia e um dos mais poderosos grupos da Máfia pós-soviética, com ramificações e esconderijos em quase todos os países europeus. As ruas de várias cidades europeias foram, aliás, palco de inúmeras disputas travadas ao longo de anos entre o clã de Kvicha e o seu rival: o clã Kutaisi. A cidade europeia de Bari, em Itália, foi um desses palcos — mas de uma disputa que terá acabado com Kvicha a disparar contra um georgiano do clã rival, em janeiro de 2012, para deter o título de topo na hierarquia da máfia georgiana.
Fugiu, então, para Portugal, onde acabaria por ser intercetado pelas autoridades portuguesas, um ano mais tarde, por ter um passaporte falso. Só depois a polícia percebeu que pendia sobre ele um mandado de detenção europeu, emitido por Itália, pelo crime de homicídio. Enquanto esteve detido e aguardava extradição para Itália, Kvicha — que não era membro da máfia georgiana: apenas trabalhava para um clã — foi iniciado pelo Avô Khazan, o seu chefe, que organizou, mesmo à distância, uma cerimónia de iniciação na prisão. Kvicha tinha cumprido a sua missão e recebeu o título vor-v-zakone, via Skype.
Kvicha foi uma das muitas pessoas ligadas à máfia que o italiano Federico Varese entrevistou para o seu livro Mafia Life, lançado este mês pela editora Saída de Emergência — e cujos direitos para o transformar em série já foram comprados. Foi também a entrevista que levou a crer que a máfia e os mafiosos “estão em Portugal também”. Em entrevista ao Observador, o autor explicou que a presença destes mafiosos em Portugal “é semelhante à presença deles em Espanha”. “São altamente organizados e são famosos por fazerem roubos em residências. Por isso, sim, há alguns em Portugal”, conta.
No voo para Lisboa, confessa, esteve até a ler sobre algumas detenções e casos levados a tribunal, em território português. Um deles diz respeito a um grupo de 36 georgianos —15 deles encontram-se em prisão preventiva — que no ano passado foram acusados, pelo Ministério Público português, pelos crimes de furto qualificado, furto qualificado na forma tentada, associação criminosa, branqueamento e recetação — cometidos entre finais de 2015 e março do ano passado.
Federico Varese era um estudante universitário “quando algo extraordinário aconteceu”, começa por dizer. Situa esse “algo” entre o “final dos anos 80 e início dos anos 90”: o fim da União Soviética. “Para mim, foi uma transformação massiva, social, económica, política, que queria observar desesperadamente. Sentia que era a oportunidade da minha vida para poder observar as coisas mais importantes que estavam a acontecer na altura”.
Varese começou por estudar a língua russa e ciências políticas. Depois, mudou-se para a cidade de Perm, na Rússia, onde viveu durante um ano, enquanto escrevia a sua tese. “Quando estava na Rússia, eu e os meus orientadores decidimos focar-nos na transição para a economia de mercado, no surgimento do capitalismo na Rússia, mas também em como esta transição não era eficiente, eficaz e justa”, explicou ao Observador, acrescentando: “E como as pessoas começaram a usar meios alternativos para resolver litígios económicos e criminais”. Isto é: a máfia.
“Quando as conheço, não pergunto quem matou quem. Não estou interessado nisso”
Demorou vários meses até que o jovem italiano recém-chegado à Rússia conhecesse o chefe da máfia de Perm: os mafiosos não estão propriamente no Facebook. “É uma organização secreta e é muito difícil falar com eles. É por isso que levou tanto tempo até conseguir encontrar estas pessoas”, diz, adiantando que depende do país: “Na Rússia, na altura, era tudo muito aberto e estas pessoas não andavam escondidas. Também conheci algumas em Hong Kong, mas foi mais difícil na Itália”.
Começou por abordar pequenos empresários e donos de quiosques — estes últimos, viria a perceber, tinham de pagar uma taxa a um gangue que controlava o bairro, em troca de proteção. Era a oportunidade perfeita: esperar que um desses cobradores de taxas viesse ao seu encontro. Assim fez. Eram duas da madrugada quando apareceu, de carro, um homem “de pescoço largo”: um antigo pugilista. Não era “dado à conversa”, descreve Varese no livro, mas confirmou o que já tinha lido sobre ele: Nikolai Stepanovith Zikov era o chefe da máfia de Perm.
Duas semanas depois, Zikov aceitou encontrar-se com o jovem estudante — o encontro que viria a moldar todo o seu trabalho não só para a tese, mas para os outros dois livros que escreveu sobre a Máfia: The Russian Mafia e Mafie in movimento. O encontro aconteceu no Gornyi Khrustal, um restaurante nos arredores de Perm e um dos maiores da cidade. “Foi o encontro que mais me tocou. De alguma forma, porque eu não sabia o que esperar. Ele era muito carismático e tinha muitas coisas para dizer sobre a Rússia e pareceu-me bastante sensível”, explica Varese ao Observador, acrescentando que o que o mais o surpreendeu “foi perceber o quão semelhante era a tantas outras pessoas na sociedade.”
O que pensa sobre o caos moral que parece ter-se apoderado da Rússia? Foi esta a primeira pergunta que Varese fez ao chefe da máfia de Perm. E foi algo deste género que perguntou a todos os mafiosos com quem se encontrou. “As entrevistas começam normalmente de uma forma muito vaga e depois eles começam a falar sobre si próprios. É uma tendência natural e humana, penso eu. Eles tendem a abrir-se, mas lá está, quando os conheço, não pergunto quem matou quem. Não estou interessado nisso. Não sou polícia. Quero percebê-los, quero perguntar-lhes o que eles veem de manhã, quando acordam, quem pensam que são. Quero mais entender a visão que têm sobre o mundo. Aí, acho que eles estão livres para falar sobre isso”, diz ao Observador.
É que este não é um livro sobre como funcionam as máfias, mas sobre quem são os mafiosos enquanto seres humanos. “Eles são criminosos, mas também são pessoas normais”, descreve Varese, acrescentando: “O livro é sobre o dia a dia deles, como é que eles se comportam, se apaixonam, cometem erros, têm opiniões, como nem sempre fazem as coisas bem. Eles são como nós de muitas, muitas formas”. Uma delas é a forma como usam a tecnologia: os mafiosos usam o Facebook, o WhatsApp ou o Skype “como nós — nem mais, nem menos”. “Por exemplo, “os chefes da máfia que são jovens, com 30 anos de idade, veem a mesma televisão e usam os mesmos telemóveis”, diz.
“Se alguém tiver um conflito, vai à máfia e, em uma ou duas semanas, eles resolvem”
Varese não quer ser apresentado como o “Indiana Jones do crime organizado” e admite que, em alguns momentos, teve medo e teve de ser cuidadoso. “Há algumas regras que tive de seguir: dizer a verdade sobre o que queria fazer, que não ia pagar-lhes para nada, tornar claro quem eu era, que era só um estudante, que não tinha nenhum segundo objetivo, que não queria fazer negócios com eles nem prendê-los”, conta ao Observador, acrescentando: “No fundo, eles são pessoas normais. Não são loucos”.
As entrevistas foram apenas parte do material recolhido por Varese. O autor analisou depoimentos prestados em tribunal, escutas telefónicas, provas judiciais, estudos e relatórios inéditos. No final, ficou ainda “mais consciente das semelhanças entre as pessoas normais e estas“, as da máfia. Os mafiosos não só não estão separados da sociedade como são um “produto final das mudanças sociais e económicas.”
Varese começa por dar um exemplo: “Em Itália, um caso de tribunal demora, em média, 8 anos para que seja resolvido. Obviamente, se alguém tiver um conflito com os vizinhos ou com um colega de trabalho, vai à máfia e, em uma ou duas semanas, eles resolvem as coisas”, diz, explicando que este é um elemento chave do funcionamento da máfia em Itália.
É por isso que o autor defende que a máfia deve ser combatida em duas frentes. “Uma é, obviamente, prender e reprimir os mafiosos, mas em alguns países, como a Rússia e a Itália, temos de fazer algo mais: atacar as causas sociais para a sua existência. Se não eliminarmos as razões pelas quais a máfia existe, nunca a iremos vencer.”, explica. Não nega que tem vindo a reter um certo “fascínio por este fenómeno”. Mas não é por isso que escreve sobre este tema: escreve porque “estudar a máfia é uma forma de estudar o que está de errado com a sociedade”. Lembrando que é um sociólogo e não um criminologista, Varese afirma que a máfia é “um produto do estado da sociedade”. “As desigualdades e as injustiças podem levar a algumas pessoas a juntar-se à máfia”, admite.
“A máfia é um Estado, resumidamente” e Varese vai continuar a estudá-la. Para já, há uma série à vista
Este não é o único livro de Federico Varese sobre a máfia. O autor de 53 anos lançou o The Russian Mafia, o seu primeiro livro sobre a máfia, em 2011 — que era apenas sobre esta máfia russa. Em 2017, escreveu sobre como as máfias se movimento de um país para o outro, no livro Mafie in movimento. “O meu primeiro livro, que foi sobre o tempo que passei na Rússia, não revelava muito sobre os meus encontros. Este livro, Mafia Life, é então sobre alguns dos eventos mais íntimos que não contei há 20 anos porque era, obviamente, um pouco perigoso — algumas das pessoas com quem falei estão agora mortas e, por isso, é mais fácil de falar sobre isso agora do que na altura”, conta ao Observador.
Federico Varese já pensa sobre o futuro. Neste momento, está a fazer figas. “Há uma produtora bem grande que comprou os direitos para transformar o livro em série”, contou ao Observador. O que significa que Mafia Life pode muito bem vir a ser uma série televisiva. “Até agora, já demos o primeiro passo”, disse. Enquanto espera, o escritor italiano já está a pensar no seu próximo livro. “Penso que será à volta do mesmo tema“, adiantou sem revelar mais pormenores.
É óbvio que será à volta do mesmo tema. Varese admite que não se interessa pelo crime, na sua essência. “Se não escrevesse sobre isto, escreveria sobre outra coisa, mas não crime”, diz, reconhecendo que “há grandes académicos e autores que escrevem sobre crime”. Mas o autor está interessado em escrever sobre a sociedade: “Para mim, estudar a máfia é uma forma de estudar a forma como a sociedade interage. A máfia é um Estado, resumidamente”.