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“Há um velho ditado que diz que a vitória tem 100 pais e que a derrota é orfã (…) Mas as declarações e as discussões detalhadas que se seguirão não servem para esconder responsabilidades, porque eu sou o responsável máximo do governo e isso é óbvio.” Era 21 de abril de 1961 e John F. Kennedy respondia numa conferência de imprensa a questões sobre a falhada invasão na Baía dos Porcos. Com estas palavras, o Presidente dos Estados Unidos assumia a responsabilidade máxima pelo fiasco em Cuba. Os norte-americanos apreciaram o gesto: nos dias seguintes, os seus níveis de popularidade dispararam.
Saltemos para 31 de agosto de 2021. O atual Presidente norte-americano, Joe Biden, dirigiu-se ao país para falar sobre a retirada definitiva das tropas americanas do Afeganistão, depois de um mês marcado pelas imagens impressionantes de caos no aeroporto de Cabul — primeiro com as tentativas desesperadas de muitos afegãos de fugirem, depois com as explosões de um atentado terrorista do ISIS-K. “Assumo a responsabilidade pela decisão. Alguns dirão ‘Devíamos ter iniciado a evacuação em massa mais cedo e não poderia isto ter sido feito de forma mais ordeira?’ Respeitosamente, discordo.”
Foi o momento do discurso em que Biden assumiu a responsabilidade pelo que aconteceu em Cabul. O Presidente relembrou que a guerra no Afeganistão se arrasta há 20 anos, que a decisão de retirar as tropas americanas foi iniciada pelo seu antecessor (Donald Trump) e colocou o problema como uma escolha com apenas duas respostas possíveis: a retirada completa ou a escalada da guerra. Mas, por muitas explicações que Biden dê, as sondagens não enganam. A saída fez mossa ao Presidente, cuja taxa de aprovação desceu dos 53% registados em maio para os atuais 46%. O “efeito Kennedy” não se fez sentir. Porquê? E irá este tema prejudicar Biden daqui para a frente?
Americanos apoiam saída, mas criticam a forma como foi feita
“Penso que Biden fez o mesmo que Kennedy”, começa por afirmar ao Observador Barbara Perry, diretora do Centro de Estudos Presidenciais da Universidade da Virginia. “Ao longo das últimas semanas, ele não se tem cansado de citar Harry Truman com a expressão ‘A responsabilidade pára aqui’.”
Tal não significa, contudo, que Perry, autora de vários livros sobre outros presidentes, considere que a saída do Afeganistão correu às mil maravilhas — “Dou-lhe boa nota pela consistência, mas má nota na execução”. Só que, para a investigadora, Biden sairá por cima a longo prazo: “Vai haver uma série de investigações, como no 11 de setembro, que até podem concluir que houve imensas falhas. Mas, até depois das investigações da comissão do ataque às Torres Gémeas, George W. Bush foi reeleito e hoje em dia tem uma taxa de aprovação superior a 60%. Os Presidentes podem recuperar de desastres destes.”
Já Charles Franklin — professor de Políticas Públicas e um dos autores de uma das sondagens mais respeitadas dos EUA, a Marquette — não é tão otimista: “É claro que os historiadores têm uma visão mais completa que vê quem é responsável pelo quê no caso do Afeganistão. Mas os políticos vivem no presente: os efeitos do Afeganistão na presidência Biden relacionam-se com a forma como as coisas estão agora, não com uma análise do que aconteceu há 20 anos. E agora o Presidente está a ser responsabilizado — a questão é se daqui a seis meses essa visão negativa se mantém.”
Um ponto joga a favor de Joe Biden: a grande maioria dos norte-americanos concorda com a retirada das tropas do Afeganistão. Um estudo do Pew Research Center traça o retrato completo: embora 42% dos inquiridos considerem que o Presidente esteve mal na forma como executou a retirada (por oposição a apenas 26% que lhe dão nota positiva), 54% consideram que a decisão de sair é a acertada. J. Miles Coleman, um dos editores da newsletter “Sabato Crystal Ball”, que analisa comportamentos eleitorais, resume bem a unanimidade dos eleitores face ao tema. “Dou-lhe um exemplo: vi o primeiro discurso de Biden sobre a saída ao pé dos meus avós, ambos eleitores de Trump. O meu avô ouviu Biden e disse-me ‘Ele tem razão’”, conta ao Observador.
A decisão de sair do Afeganistão é, por isso, de total continuidade com a política do antecessor. Mas isso não significa que Biden se tenha adaptado a uma decisão “popular” — já há muito que o democrata considerava que a saída dos EUA do Afeganistão era urgente. Em 2009, Biden foi uma das únicas vozes dentro da Administração de Barack Obama a opor-se ao aumento do contingente de tropas no local, como revelou o jornalista Bob Woodward. Após a morte de Osama Bin Laden, dois anos depois, Biden voltou a sublinhar que já não havia razão para os EUA continuarem no terreno. E a sua convicção era firme: o diplomata Richard Holbrooke chegou mesmo a revelar no seu diário uma conversa com Biden em que, perante a responsabilidade dos norte-americanos para com as jovens afegãs, o à altura vice-presidente lhe terá respondido “Que se lixe isso. Fizemos o mesmo [sair] no Vietname e o Nixon e o Kissinger safaram-se”. Muitos norte-americanos, Trump incluído, assinariam por baixo.
O impacto de uma imagem
Outros, porém, ficaram chocados com as imagens dos afegãos desesperados por fugir e com os relatos de opressão sobre as mulheres pelos talibã. E é aqui — neste entendimento de que a evacuação não foi bem realizada — que as coisas se complicam para Biden. “Aquelas imagens prejudicam Joe Biden e prejudicam a sua imagem como um líder competente, algo que foi sublinhado durante a campanha presidencial por oposição a Donald Trump”, resume Charlie Franklin. Não faltam comparações com a evacuação de Saigão, que pôs fim à presença americana no Vietname.
“É uma derrota e as derrotas são complicadas, caóticas e letais”, concede a professora Perry. “Vivemos tempos muito diferentes dos de Kennedy e da Baía dos Porcos. Hoje temos redes sociais e notícias durante 24 horas, portanto as imagens de Cabul estão a passar ininterruptamente e isso prejudica Biden. Mas, apesar de ele estar preso neste momento mediático, isto vai passar. A notícia principal dos últimos dias aqui já não é o Afeganistão, é o furacão Ida. O foco de atenção dos norte-americanos é muito limitado.”
“Ao longo dos últimos 20 anos, os americanos não têm prestado muita atenção ao Afeganistão”, concorda Charlie Franklin. E eis que surge outra comparação com o Vietname, mas uma bastante mais favorável a Biden: “Saigão apareceu nas notícias e teve um impacto muito negativo, mas as pessoas deixaram de prestar atenção ao Vietname muito depressa e o assunto não foi sequer relevante nas eleições seguintes. Irá o Afeganistão ser tema em 2022? Não sabemos”, acrescenta o responsável por sondagens, referindo-se às eleições intercalares para o Congresso marcadas para o próximo ano.
Tal não significa que o desastre no Afeganistão não venha a ser usado como arma de arremesso contra o Presidente. “Não há nada tão poderoso como uma imagem”, relembra Coleman. “Mas tornámo-nos num país tão polarizado que acho que rapidamente isto se vai tornar uma questão partidária. Vejamos uma sondagem recente do Washington Post sobre o ataque do ISIS-K em Cabul, em que morreram americanos: a maioria dos democratas (70%) considera que o ataque não foi culpa de Biden; os republicanos quase todos (90%) culpam-no a ele.”
Uma oportunidade para o Partido Republicano
Não é por isso de admirar que muitos políticos republicanos tenham aproveitado este momento para atacar o Presidente adversário. “O discurso de vitória do Presidente Biden foi completamente alheado da realidade”, disse o senador Ben Sasse em reação ao discurso do dia 31 de Biden, onde o Presidente classificou a evacuação como “um sucesso”. “Este foi provavelmente o maior falhanço de um governo americano num palco militar desde que sou vivo”, acusou Kevin McCarthy, líder dos republicanos na Câmara dos Representantes. “O problema não foi termos saído do Afeganistão, foi a forma totalmente incompetente como saímos”, acrescentou o ex-Presidente Trump.
A estratégia do Grand Old Party (GOP) começa a definir-se: impedidos de criticar a decisão de sair do Afeganistão, depois de maioritariamente terem apoiado o plano de Trump, os republicanos focam-se em criticar a “incompetência” de Biden para gerir a saída. Uma estratégia que, como relembrou o Politico, pode ter mais sucesso do que as adotadas até agora porque Biden baseou a sua campanha na ideia de que seria “o adulto na sala” — o político responsável, por oposição a Trump.
“O GOP vai explorar esta imagem de Biden como incompetente ao máximo. Até agora, eles tentavam passar a ideia de Biden ter problemas mentais, de possivelmente ter demência, mas as sondagens mostram que as pessoas não concordavam”, resume Franklin. “Mas agora há uma nova vaga de críticas e com este falhanço os republicanos ganham uma nova oportunidade.” Para o especialista em opinião pública, a tática será a mesma do passado: se Hillary Clinton é frequentemente confrontada com o ataque à embaixada americana em Bengazi (na Líbia), Biden também será responsabilizado pelas imagens da evacuação em Cabul.
“Os republicanos têm agora a oportunidade de usar uma posição para o criticar que é mais aceitável do que as acusações bizarras de que ele tem um problema neurológico”, acrescenta o investigador da Marquette. Por outras palavras: o Afeganistão é a primeira arma de arremesso de peso que os republicanos têm para atirar a Biden. A lua-de-mel do Presidente chegou ao fim.
“A política externa é complicada — quem diria?”
Só que os especialistas consultados pelo Observador são unânimes em apontar que o fim da lua-de-mel presidencial não se transforma automaticamente numa queda em desgraça de um Presidente. “Apesar de a situação do Afeganistão estar a afetar a aprovação de Biden, os números já estavam a descer antes”, acrescenta Miles Coleman. “O período de lua-de-mel acabou e agora pode haver eleitores que lhe dão menos margem de manobra. Portanto embora o Afeganistão não tenha ajudado, não é o único fator”.
Ou seja, tudo pode não passar de uma reação natural à medida que um novo Presidente se instala definitivamente no poder. E, por muito desagrado que haja com o que aconteceu no Afeganistão, o certo é que as questões de política internacional não costumam ser aquelas que mais mobilizam os eleitores: “Não temos uma eleição a girar em torno de um tema internacional desde 2006, quando os democratas conquistaram o Congresso com uma campanha contra a guerra do Iraque”, relembra o editor da “Sabino’s Crystal Ball”.
Charlie Franklin aponta outros fatores: “As guerras ativas até mobilizam eleitores, mas o fim de uma guerra não. E, ao mesmo tempo, temos muitos assuntos internos como a pandemia ou o plano de infraestruturas de Biden. Os democratas tentarão colocar o foco nas questões internas”, explica, dando o exemplo do aborto, que promete mobilizar as manchetes das próximas semanas nos EUA, após a decisão do Supremo Tribunal sobre a restritiva lei do estado do Texas.
“Para além disso, a política externa costuma ser complexa e é um tema onde republicanos e democratas não se distribuem por linhas partidárias estanques. George W. Bush não queria envolver-se em guerras e acabou por iniciar duas das maiores da História do país; Barack Obama queria sair do Afeganistão e acabou a reforçar o número de tropas no terreno. A política externa é complicada — quem diria?”, diz Franklin de forma irónica.
A especialista em História presidencial, Barbara Perry, concorda. E traz o exemplo da História: “Quase todos os Presidentes ultrapassaram fiascos militares e conseguiram ser reeleitos e acabar por ser bem tratados pela História. Só me lembro de duas exceções: Jimmy Carter com a crise dos reféns no Irão e Lyndon Johnson com o Vietname. Se Joe Biden se focar nas questões internas e conseguir controlar a pandemia de Covid, creio que irá durar para lá disto e recuperar deste desastre.”